Discurso durante a 154ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem ao Círio de Nazaré, denominado "Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira" pelo transcurso dos seus 240 anos.

Autor
José Nery (PSOL - Partido Socialismo e Liberdade/PA)
Nome completo: José Nery Azevedo
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem ao Círio de Nazaré, denominado "Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira" pelo transcurso dos seus 240 anos.
Publicação
Publicação no DSF de 12/09/2007 - Página 30914
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, FESTA, CERIMONIA RELIGIOSA, IGREJA CATOLICA, MUNICIPIO, BELEM (PA), ESTADO DO PARA (PA), IMPORTANCIA, PATRIMONIO CULTURAL, BRASIL.

            O SR. JOSÉ NERY (P-SOL - PA. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Senador Efraim Moraes, quero cumprimentar todos que compõem a Mesa: Prefeito de Belém, Duciomar Costa; D. Orani João Tempesta, Arcebispo Metropolitano de Belém; Drª Ann Pontes, Presidente da Paratur; Padre Vigário de Nazaré; quero cumprimentar os Deputados Federais que se encontram aqui no plenário, participando desta sessão de homenagens ao Círio de Belém, a Nossa Senhora de Nazaré: Deputado Paulo Rocha, Deputado Zenaldo Coutinho e Deputado José Geraldo; quero cumprimentar as Srªs e os Srs. Senadores que participam desta homenagem e abraçar todos os paraenses, representantes da diretoria da festa, de instituições e de entidades que nos dão a honra da presença no plenário do Senado Federal, para compartilharmos desta homenagem, deste tributo da fé ao povo de Belém, ao povo paraense, ao povo amazônida; quero cumprimentar desta tribuna todo o povo do Pará, que neste instante acompanha, com bastante interesse e viva fé, a homenagem que o Senado Federal dedica ao Círio de Nazaré e, sem dúvida, à padroeira maior dos paraenses, Nossa Senhora de Nazaré.

            O sentimento do caboclo amazônico do Pará, na ficção do escritor Benedicto Monteiro, é, na minha opinião, a essência do Círio de Nazaré, que este ano completará 215 anos. Falar do Círio é ser tomado por uma forte emoção, e quero partilhar um pouco das dimensões tangíveis e intangíveis que devem chamar a atenção da sociedade brasileira para aquela que é, sem dúvida, umas das maiores e mais singulares manifestações religiosas e culturais do povo da Amazônia.

            Comecemos pelo início de tudo. Comecemos pelo caboclo Plácido. Cito o grande Ernesto Cruz, um clássico da historiografia paraense. É ele que nos descreve e nos traça o perfil daquele que teve o privilégio de iniciar esta secular devoção. Plácido, então, nos é apresentado da seguinte maneira:

[...] um homem pardo, morador da estrada do Utinga (ontem Independência, hoje Magalhães Barata, no centro de Belém), o primeiro devoto da Santa, na colônia, isso em meados do século XVIII. Na sua modesta habitação, Plácido rezava, contritamente, todos os dias, as suas orações à Virgem. Outros devotos vieram fazer-lhe companhia. Muitos sofrimentos foram mitigados dessa maneira. Em breve, os milagres estavam no comentário de toda gente. Percorrendo longos e tortuosos caminhos, chegavam fiéis de todas as partes. [Ernesto Cruz in Procissão dos Séculos, 1952].

            De quem mesmo estamos falando? De um caboclo, “o quem vem da floresta”, na acepção mais antiga dessa palavra de origem tupi. Caaboc, ou ainda, segundo outros, kariboca, “filho de homem branco”. De um ser dividido, mesclado, fruto de um choque entre civilizações distintas e, não raro, antagônicas. Plácido, caboclo, meio índio, quase branco, mas sempre pobre, de pés descalços e mãos calejadas em sua “modesta habitação”, na Belém dos Setecentos, clivada por contradições sociais enormes, com a maioria de seu povo escravo da miséria, pouco importando a cor da pele - “parda” ou acobreada, ou simplesmente negra -, pois era peça da engrenagem colonial que, desde aquela época, drenava riqueza para uma elite de um egoísmo sem quaisquer escrúpulos.

            Assim, a devoção à Nossa Senhora de Nazaré nasceu da fé inabalável do povo pobre, que tantos sofrimentos tinha a mitigar. Só bem depois, no final daquele século, é que o Estado se apoderou da devoção popular, cobrindo-a de ritos e regras. Coube ao fidalgo D. Francisco de Souza Coutinho, governador e capitão- geral do Estado do Grão-Pará e Rio Negro, em 1793, num oito de setembro, oficializar a procissão, cuja corrente humana, de lá para cá, não faz senão crescer, multiplicar-se, expandir-se até os limites mais improváveis, como expressão de um povo que caminha “por longos e tortuosos caminhos” em busca da terra sem-males, do Reino de Deus na terra, de uma planície de igualdade, fraternidade e justiça para todos e para todas.

            Para além da história oficial e dos ilustres doutos senhores que dispuseram, em mais de dois séculos, da procissão, interessa-me aqui ressaltar os anônimos, os fiéis que continuam a “chegar de todas as partes” e, uma vez ao ano, sempre no segundo domingo de outubro, inundam a Belém metropolitana, cosmopolita, mas sempre e para sempre amazônica, com milhões de gestos de fé e de esperança.

            O Círio é uma manifestação totalizante, que tem na procissão propriamente dita o evento principal. Reúne mais de um milhão de pessoas, quase dois milhões de pessoas, que, acreditem ou não nas coisas lá do céu, como diria Gilberto Gil, ficam sujeitas ao afloramento de suas emoções, transformam-se, ajoelham-se no asfalto das ruas, permitem-se, nesse momento único, o reconhecimento da fraqueza humana e a necessidade da interferência do sagrado.

            Ao falar do Círio, não poderia deixar de me referir à corda, um dos principais elementos constitutivos dessa manifestação. Mais que um forte trançado de sisal, instituído para proteger a Santa em sua berlinda, num movimento involuntário da multidão ao longo da procissão, a corda passou a ser a acolhedora da força presente, embora invisível, que move os músculos retesados, os rostos comprimidos, os pés descalços, os corpos banhados de suor, inteiramente colados uns aos outros. É a expressão maior da atitude solidária. A única distinção que se faz na corda é a de gênero. À direita vão as mulheres, e, à esquerda, os homens. A coreografia ondulante que daí resulta é uma apoteose de fé religiosa, ou simplesmente a metáfora de que a condição humana, se unida, pode mudar a vida.

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, distintos participantes convidados desta sessão especial, quero fazer referência especial à presença dos artesãos de Abaetetuba, no Pará, que, na festa do Círio de Nazaré, conduzem os brinquedos de miriti na procissão ou, como acontece nos últimos anos, na feira que promovem na Praça do Carmo e na Praça da Matriz.

            Os nossos artesãos paraenses levam brinquedos e imagens para a procissão. São brinquedos de uma singeleza, mas não há quem não se encante com eles, com a criatividade e com a criação do nosso povo. Movidos pela fé, são capazes de fazer com que cada brasileiro, cada turista, cada irmão nosso do nosso Estado, acompanhe com o coração cheio dessa alma amazônica, da alma do nosso povo, expressada na beleza e na singeleza daqueles brinquedos, que constituem parte importante dessa manifestação cultural de fé do povo paraense, manifestação da qual os abaetetubenses, o povo do Baixo Tocantins, participam com desvelo, fé e esperança.

            Senhores e senhoras, homenagear o Círio é, ao mesmo e a um só tempo, homenagear o povo paraense em suas múltiplas faces e em sua imorredoura certeza de que caminhar sempre vale a pena.

            Para concluir, trago mais um trecho do escritor, lutador social e ex-Parlamentar, ex-Deputado Federal, Benedicto Monteiro, em seu premiadíssimo livro Carro dos Milagres:

...Mas o senhor que é caboco acostumado nestas festas sabe muito bem, que o Círio de Nossa Senhora de Nazaré não tem começo nem fim (...) deixe o povo ingrossar. Deixe tomar parecença e solenidade justa de uma digna procissão. Quando este poder de povo tiver unido-unido, carne-e-unha, ombro a ombro, cabeça com cabeça, esprimido nas paredes, que zolho não mais for zolho, cara não for mais cara, e cor não for mais cor... é porque vem vindo o Carro dos Milagres.

            Salve a fé do povo paraense!

            Salve a vontade de sempre seguir adiante!

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Srs. Deputados, senhoras e senhores convidados, não nominei o nosso Delegado Vicente Salles, que, por muitos anos, serviu ao Estado do Pará, que hoje está em Brasília, irmanado a essa enorme comunidade paraense aqui no Distrito Federal.

            Queria fazer menção, ao final, ao momento grave que vivemos nesta Casa. Com certeza, não por acaso, a sessão em homenagem ao Círio e à Nossa Senhora de Nazaré ocorre um dia antes em que as Srªs e os Srs. Senadores, que ocupam cada uma dessas 81 cadeiras neste plenário, têm sobre si a difícil missão de participar de um processo que o Brasil todo acompanha com muito interesse e com muito desejo de que sejamos capazes de fazer aquilo que manda a verdade e a justiça; que sejamos capazes de aqui, com a nossa participação, com o nosso voto ajudar o Brasil a enterrar uma certa sensação de impunidade que reina em muitos lugares, nas instituições públicas, nas instituições de Estados - seja no Poder Executivo, seja no Legislativo, seja no Judiciário.

            Sabemos que os olhos da Nação estão voltados, Sr. Presidente, para esta Casa, não porque queiramos que assim seja, mas fatos graves colocados ao exame dos nossos Pares através do Conselho de Ética, dos processos que podem ser feitos aqui neste próprio ambiente. Aqui, devemos todos estar imbuídos do melhor propósito de fazer o bem, trabalhar em benefício da maioria do nosso povo, especialmente em favor dos mais empobrecidos e dos mais marginalizados.

            Portanto, queremos rogar a bênção e a luz de Nossa Senhora de Nazaré. Aqui não interessa cor partidária, credo político, interessa-nos tentar agir de acordo com o que pensam e querem a sociedade e a maioria do povo brasileiro. Mas precisamos de bênçãos, de luzes para orientar nosso caminho, nossas decisões, às vezes, tão graves e tão difíceis, muitas vezes dolorosas. Decisões das quais, com certeza, nenhum dos senhores e das senhoras gostaria de participar. Preferíamos não ter que tratar de certas questões que, às vezes, nos constrangem, dificultam nosso caminhar, nosso trabalho. Precisamos de muita luz, de muita fé para ser, primeiro, honestos; precisamos ser justos como homens com suas virtudes e defeitos, mas precisamos, sobretudo, de luz. E rogamos a Nossa Senhora de Nazaré essa luz, bem como a luz que vem da força do coração e do pensamento de cada brasileiro e de cada brasileira; de cada paraense, de cada devoto para que tenhamos luz e transparência para fazer cumprir aqui o nosso papel.

            Ao homenagear Nossa Senhora de Nazaré e o Círio de Belém, quero agradecer a presença de cada um e de cada uma. Queremos, também - e muito -, ser abençoados por essa luz, por essa fé, para cumprir, Senador Mozarildo Cavalcanti, a nossa missão, as nossas tarefas aqui no Congresso Nacional, no Senado Federal, preservando e lutando por aquilo que seja mais justo e mais digno para resgatar a cidadania, garantir a cidadania, o respeito ao povo brasileiro, e, aqui, também, ao povo paraense, tão bem representado neste plenário, nesta sessão em homenagem ao Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Bênção especial para todos nós, todos os paraenses e todo o povo brasileiro.

            Muito obrigado. (Palmas.)

 

            


Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/09/2007 - Página 30914