Discurso durante a 192ª Sessão Especial, no Senado Federal

Homenagem à memória de Ernesto Che Guevara.

Autor
Geraldo Mesquita Júnior (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AC)
Nome completo: Geraldo Gurgel de Mesquita Júnior
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem à memória de Ernesto Che Guevara.
Publicação
Publicação no DSF de 24/10/2007 - Página 36912
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • IMPORTANCIA, SESSÃO ESPECIAL, HOMENAGEM, ERNESTO CHE GUEVARA, VULTO HISTORICO, REVOLUÇÃO, SOCIALISMO, AMERICA LATINA.
  • LEITURA, TRECHO, LIVRO, HISTORIADOR, ANALISE, ORADOR, REVOLUÇÃO, PAIS ESTRANGEIRO, CUBA, PARTICIPAÇÃO, ERNESTO CHE GUEVARA, LIDER, MORTE, COMBATE, DITADURA, AMERICA DO SUL.

O SR. GERALDO MESQUITA JÚNIOR (PMDB - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente Senador José Nery, Srªs e Srs. Parlamentares, Deputada e querida amiga Lídice da Mata, em nome de quem saúdo os integrantes da Mesa, senhores convidados especiais, bom dia.

Creio que V. Exª, Senador José Nery, sabe de comentários feitos acerca desta Sessão Especial - alguns desairosos inclusive -, de que se trata de um besteirol. Considero isso uma falta de respeito e quero dizer que eu prefiro me colocar aqui, como V. Exª e como tantos, de forma clara, aberta e cristalina, numa homenagem a um cidadão latino-americano, a sofrer críticas pela minha omissão num momento como este.

Portanto, eu quero, inicialmente, louvar a iniciativa de V. Exª, que, em boa hora, propôs a realização desta sessão, que reputo como muito justa, um preito a quem dedicou a sua vida à causa da integração latino-americana, à causa da liberdade, à causa da democracia, à causa do povo latino-americano.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Srªs e Srs. Deputados, senhores convidados, jovens que se encontram na galeria, no prefácio do último livro de sua prestigiosa obra histórica, a que deu o título de Era dos Extremos e o subtítulo O Breve Século XX: 1914-1991, o historiador inglês Eric Hobsban indaga:

Como comparar o mundo da década de 1990, ao mundo de 1914? Nele viviam 5 ou 6 bilhões de seres humanos, talvez três mais que na eclosão da Primeira Guerra Mundial, e isso, embora no Breve Século XX, mais homens tivessem sido mortos ou abandonados à morte, por decisão humana que jamais antes na história. Uma estimativa recente das “megamortes” do século menciona 187 milhões, o equivalente a mais de um em dez da população mundial total de 1900.

Neste último ano [é ele ainda quem afirma], o mundo estava incomparavelmente mais rico que jamais, em sua capacidade de produzir bens e serviços e na interminável variedade destes. Não fora assim, não teria conseguido manter uma população global, muitas vezes maior que jamais antes na história do mundo.

No relato daquele século, o respeitado historiador, cujas convicções socialistas são reconhecidas e notórias, reservou, nas 598 páginas de seu livro, cinco brevíssimas referencias a Ernesto “Che” Guevara - metade das dez que dedicou a Fidel Castro Ruiz. Elas não somam mais que dez linhas. E a explicação talvez possa ser encontrada na sua precedente constatação de que, na década de 1960, “ninguém mais esperava revolução social no mundo ocidental”. O que teria levado, então, Fidel Castro e seus fiéis seguidores a empreender aquilo em que estavam postos os olhos de todos? Ouvi-lo, ainda uma vez pode servir para explicar suas conclusões. Novamente é o historiador que fala:

A década de 1950 foi cheia de guerras de guerrilha no Terceiro Mundo, praticamente todas nos países coloniais em que, por um motivo ou outro, as antigas potências coloniais ou colonos locais resistiram à descolonização pacífica (...) Curiosamente, foi um movimento relativamente pequeno - sem dúvida, menor do que a insurgência malaia - atípico, mas bem-sucedido, que pôs a estratégia da guerrilha nas primeiras páginas do mundo: a revolução que tomou a ilha caribenha de Cuba, em 1º de janeiro de 1959.

Fidel, diz Hobsbawn, era uma figura não característica na política latino-americana: um jovem forte e carismático da família proprietária de terras, de política indefinida, mas que estava decidido a demonstrar bravura pessoal e ser um herói de qualquer causa da liberdade contra a tirania de que se apresentasse no momento certo. (...) Em termos puramente militares, o desafio era modesto. “Che” Guevara, o médico argentino, altamente talentoso como líder guerrilheiro, partiu para conquistar o resto de Cuba com 148 homens que se elevaram a 300, quando praticamente já o conseguira. As guerrilhas do próprio Fidel só capturaram a sua primeira cidade de mil habitantes em dezembro de 1958. O máximo que havia demonstrado em 1958 - embora fosse muito - era que uma força irregular podia controlar um grande “território liberado” e defendê-lo contra uma ofensiva de um exército reconhecidamente desmoralizado.

Hoje, quase duas décadas depois da queda do muro de Berlim e do fim da União Soviética, um pequeno país comunista continua sobrevivendo a 70 milhas da costa americana, mesmo isolado por um asfixiante e radical bloqueio econômico e submetido a uma fracassada tentativa de invasão, promovida e patrocinada pelo mais poderoso país do mundo.

Que força e que estímulos impulsionaram o jovem “Che Guevara” à sucessão de aventuras que o levaram à morte, transformando-o num mito, mais que num herói? A guerra fria que o muro de Berlim materializou serviu, sem dúvida, de caldo de cultura para o confronto ideológico que engolfou as duas partes de um mundo bipolarizado, ao qual a América Latina e os jovens latino-americanos não foram indiferentes. Sair de sua pátria, onde, seguramente, teria uma confortável vida burguesa, talvez aquela de que fala o Frei Beto num artigo recente, para lançar-se, primeiro, à aventura de cruzar o continente numa motocicleta, depois, conhecer Fidel no México e engajar-se na luta contra a ditadura de Fulgêncio Batista e, mais tarde, testar, até a morte inglória na selva boliviana, as possibilidades do jovem filósofo francês Regis Debray, de fazer a “revolução na revolução”, seguramente, exige, Srªs e Srs. Parlamentares e convidados, mais que coragem, exige entrega e devotamento. Pede desprendimento. Impõe desapego às circunstâncias materiais da vida e dedicação a uma causa, como mencionou o Senador Cristovam, em que o erro e a vacilação são pagos com a vida.

Hoje, não saberíamos dizer se os movimentos que varreram este continente, infestado de caudilhismos de todas as espécies, contaminado por ditaduras de todos os matizes e viciado por alguns dos mais cruéis regimes autocráticos de que se tem notícia, serviram para abrir mais ainda “as veias abertas da América Latina”, como sintetizou Galeano em seu livro emblemático, ou se, ao contrário, estimularam e reavivaram as esperanças em milhões de jovens idealistas, despertando a fé dos céticos e a indiferença dos conformados.

Fidel Castro fez reacender a chama mortiça que sempre sopra debaixo dos escombros das ditaduras derrocadas, destruídas e arrasadas pelos caudilhos e ditadores que macularam nossa história contemporânea. O que sabemos e a História registra é que a façanha de Fidel Castro e seus companheiros serviu para provar que há mais caminhos entre a direita extremada e a esquerda impenitente do que mostram as vãs esperanças de todo o espectro criado pela ideologia e pela filosofia.

Ernesto “Che” Guevara faz parte desse legado de lições que a humanidade parece ainda não ter aprendido. Conquistado o poder, derrubada a ditadura, reacendida a esperança, os revolucionários de Sierra Maestra se defrontaram com o desafio de sobreviver às agruras de dois regimes que se enfrentavam além e acima das generosas idéias que levaram, de um lado, à independência de uma grande nação democrática, tal como a moldaram os pais fundadores dos Estados Unidos, e, de outro, à libertação dos russos de um milenar regime autocrático, pela implantação do primeiro regime imaginado por Marx e por Engels e materializado pelo gênio realizador de Lênin e pela diligência de Trotsky, unidos em busca de um mesmo ideal e vitimados, ambos, pelas circunstâncias adversas da vida antes que sua obra tivesse sido completada.

As deformações e os desvios ideológicos ocorridos no decorrer da era dos extremos, segundo o conceito cunhado por Eric Hobsbawn, terminaram por tornar evidente que já não havia lugar para o idealismo, a solidariedade, a fraternidade e a confraternização, a tolerância e a convivência pacífica num mundo tão dramaticamente dividido. Na América Latina, como na África e na Ásia, onde o processo de descolonização deixou seqüelas de toda ordem, preponderando a pobreza e a miséria, a fome e a discriminação, o isolamento e a desigualdade, foram as circunstâncias que realimentaram a chama de que se nutria o espírito inquieto e impulsivo de Ernesto “Che” Guevara. Aventurar-se no Congo e em Angola, com um destacamento de militantes cubanos que, com esse gesto, esperavam despertar a solidariedade armada de todos os idealistas, não foi mais que a experiência que neles despertou a consciência de que, na América Latina, havia mais o que fazer do que solidarizarem-se com os movimentos de libertação nacional dos países africanos.

Não tenho a certeza e menos ainda a intuição, não tenho evidências nem provas, não disponho sequer de testemunhos que avalizem minha convicção, mas tenho para mim, Sr. Presidente, por ter participado, quando jovem, dessa mesma angústia e dessa indignação contra o imobilismo, que foi esse sentido intuitivo que levou o médico, o revolucionário, o visionário e o idealista, que se fundiam na personalidade inquieta e complexa do “Che”, a internar-se no âmago da selva boliviana, em busca de demonstrar que nosso continente estava maduro o bastante para que se ateasse fogo no rastilho de pólvora que sobrevivia latente em grande parte dos governos dominados e submissos da América Latina.

Lá, Sr. Presidente, ele palmilhou a senda do seu martírio, percorreu o caminho de sua imolação e fez cruzar o seu destino com o poder incomensurável e invisível da repressão. Sua morte, nas circunstâncias trágicas em que se deu a execução, a sangue frio, de um homem predestinado e obstinado, não representou, como se supõe, o fim de seus ideais, nem o fracasso de suas aspirações. Viveu e lutou pelo que entendia ser o caminho da redenção dos povos, a cuja libertação se dedicou. Deixou a vida, como escreveu Getúlio, para entrar na História e foi fonte de inspiração e de admiração para os jovens rebeldes de todas as partes do mundo, sobretudo para os que o conheceram apenas pela foto famosa que incendiou a imaginação dos jovens em todas as partes do mundo, em que chegou a imagem de sua aura ardente e impulsiva que fez dele um mito que a História consagrou e a lenda que tantos inspirou.

Em nome desses ideais, Sr. Presidente, saúdo a memória desse herói e, como tantas outras consciências despertadas por seu exemplo, deixo aqui registrado o testemunho da minha admiração, de meu apreço e de meu reconhecimento por seu testemunho de vida.

Por último, Sr. Presidente, dedico este pronunciamento a meu pai, de 89 anos, que, ainda, ao vestir a camisa com a foto de “Che” Guevara, consegue se emocionar.

Viva a democracia!

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/10/2007 - Página 36912