Discurso durante a Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Registro do transcurso dos 20 anos da promulgação da Constituição Federal.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA NACIONAL.:
  • Registro do transcurso dos 20 anos da promulgação da Constituição Federal.
Publicação
Publicação no DSF de 15/02/2008 - Página 2081
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA NACIONAL.
Indexação
  • REGISTRO, ANIVERSARIO, PROMULGAÇÃO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, COMENTARIO, AUMENTO, DEMOCRACIA, LIBERDADE DE IMPRENSA, ANALISE, HISTORIA, PERIODO.
  • ANALISE, AUSENCIA, MELHORIA, PROBLEMAS BRASILEIROS, AGRAVAÇÃO, CORRUPÇÃO, ESPECIFICAÇÃO, IRREGULARIDADE, UTILIZAÇÃO, CARTÃO DE CREDITO, MEMBROS, GOVERNO FEDERAL, RESIDENCIA FUNCIONAL, FAVORECIMENTO, INTERESSE PARTICULAR, PREJUIZO, INTERESSE PUBLICO, INTERESSE NACIONAL.
  • COMENTARIO, IMPORTANCIA, EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO, PAIS, ANALISE, PRECARIEDADE, PLANO DE EDUCAÇÃO, BRASIL, COMPARAÇÃO, MUNDO.
  • DEFESA, REVOLUÇÃO, EDUCAÇÃO, BRASIL, AUMENTO, QUANTIDADE, CRIANÇA, REDE ESCOLAR, INCENTIVO, DESENVOLVIMENTO NACIONAL.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não vi ainda qualquer referência, neste ano, ao fato de estarmos comemorando 20 anos da nossa Constituição.

Creio que o Senador Jarbas Vasconcelos participou intensamente do processo, não como Parlamentar, mas como eu, que também não era Parlamentar. Participamos todos intensamente.

Vinte anos é um quinto de um século. Se a gente analisar com cuidado esses vinte anos de Constituição, é claro que podemos ver avanços imensos no País: avanços na democracia, avanços na liberdade de imprensa. Não há dúvida de que foram vinte anos de avanços. Mas quando a gente olha o presente, o dia-a-dia, o noticiário, o funcionamento desta Casa e do Parlamento em geral, o funcionamento do Poder Executivo e do Poder Judiciário, creio que esses vinte anos não deixaram os resultados que tínhamos o direito de exigir quando o Deputado Ulysses Guimarães proclamou e apresentou nossa Constituição que ele chamou de cidadã.

Por que será que, nesses vinte anos, não conseguimos fazer com que aquela Constituição, tão sofrida, tão elaborada, fruto de tanta luta, ajudasse a aglutinar este País? Por que não conseguimos fazer com que, hoje, vinte anos depois, o debate que travamos aqui fosse diferente daquele do dia-a-dia? Um debate como o desta manhã, que terminou há pouco, sobre a transposição do rio São Francisco, é uma exceção e não a regra do dia-a-dia. Por quê? Por que, vinte anos depois da Constituição, temos uma imprensa livre que divulga tudo, mas o tudo que ela divulga são escândalos, escândalos e escândalos? Por quê? Por que tínhamos, há vinte anos, ainda um regime com uma Constituição autoritária e agora, vinte anos depois temos um país que evoluiu, com uma Constituição que foi debatida, que trouxe avanços, mas cujo resultado é um país dividido, um país de cartões de crédito corporativo, um país de apartamentos funcionais com mobiliário de altíssimo valor, um país cujo avanço na educação foi insignificante diante das exigências que temos? Vinte anos depois, a despeito de tudo o que está escrito sobre saúde na Constituição, ainda é um país profundamente deficiente na educação. Por quê? É possível que, daqui a algumas décadas, analistas venham a descobrir a razão concreta, mas creio...

O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PMDB - PI) - Pedimos silêncio no Parlamento porque há orador na tribuna, o Senador Cristovam Buarque.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - ...que não estarei errado e não serei desmentido se, daqui a dez, vinte ou trinta anos, disser que a principal causa de a nossa Constituição não ter trazido o país que esperávamos foi a falta de algo que não conseguimos construir ao longo destes vinte anos, que é o espírito público.

A própria Constituição, Presidente Mão Santa, foi corporativa. Era um país que vivia alta inflação, onde os recursos pareciam ser capazes de atender a todas as reivindicações de qualquer grupo, independentemente da dimensão dessas reivindicações. É uma Constituição que ofereceu tudo a cada grupo e não foi capaz de trazer para o espírito nacional o sentimento de conjunto, o sentimento de nação, que ainda não conseguimos construir.

Por isso, vinte anos depois de termos uma Constituição que o Deputado Ulysses Guimarães chamou de cidadã, temos um país que não pode ser chamado claramente de país cidadão.

Quando a gente vê o uso de cartões, o uso de apartamentos funcionais, quando a gente vê as notícias sobre corrupção, não há dúvida de que o que mais faz com que isso aconteça, vinte anos depois da Constituição, é o fato de que, entre nós, todos os políticos, no Executivo, entre todos aqueles que fazem o funcionamento mesmo dos outros Poderes, nós vemos o espírito público em segundo lugar. Nós vemos em primeiro lugar o interesse pessoal, o interesse corporativo, e só depois o interesse coletivo, comum, do conjunto da Nação brasileira. A Constituição não conseguiu aglutinar o País; ela conseguiu arrumar o País como se fosse um quebra-cabeça de pequenas peças separadas umas das outras, que casam, mas não combinam, não se aglutinam, não são uma só.

Não conseguimos, com a Constituição, Senador Jarbas, transformar um país em uma nação. Continuamos tendo um território, um idioma, um povo, mas não uma nação completa. E a falta da nação leva, obviamente, a um comportamento sem espírito público da parte dos dirigentes que nós temos. O resultado é que este País termina sendo governado visando a atender aos interesses pessoais imediatos de grupos corporativos, sem buscar uma linha de longo prazo que atenda aos interesses comuns. É por isso que os cartões corporativos, uma invenção que parece tão positiva, são mal usados, porque foram usados para interesses particulares, e não com a finalidade de servir ao melhor funcionamento do serviço público. É por isso que a gente vê que cada entidade deste País, inclusive as universidades federais, terminam, Senadora Marisa, sendo federais, mas não públicas, sendo estatais, mas não do povo. A gente vê que a comunidade se apropria da instituição como se a comunidade fosse sua dona, não como se a comunidade de professores, alunos e servidores fosse apenas o instrumento para fazer com que essa instituição federal estatal fosse pública também.

É por isso que a gente tem que reconhecer que até mesmo a privatização de diversas empresas estatais foi feita tendo em vista o interesse público, porque, antes de serem privatizadas - não discuto se houve ou não defeitos na forma de privatizar -, elas serviam a sua comunidade interna e não ao conjunto da sociedade brasileira. O que falta é a gente dar um salto e transformar a Constituição, o território e a população em uma nação. A Constituição não bastou, em nenhum lugar do mundo ela basta. Aí volto ao velho tema de uma nota só em que insisto: uma nação só se faz com uma escola igual para todos, igual e de alta qualidade para todos.

Quando a Itália foi constituída, há 150 anos, ela era um conjunto de principados, ducados com idiomas diferentes, com costumes diferentes. Quem transformou aquilo em um país, em uma nação foi a escola, a partir da educação das crianças. Foi também o exército, mas não pelo lado da segurança, e sim pelo lado da educação dos jovens que já tinham passado da idade escolar.

Vinte anos depois da Constituição, a gente tem que reconhecer os avanços que ela trouxe, mas tem que reconhecer também que ela não foi capaz de trazer o espírito público que a gente precisa para cada cidadão brasileiro - e não vamos pôr a culpa apenas nos dirigentes -, para cada um de nós que continua sendo um indivíduo isolado e, no máximo, parte de uma família, de uma corporação, não tendo o sentimento do conjunto da Nação brasileira. É disso que a gente precisa daqui para a frente.

Os constituintes fizeram o trabalho deles há vinte anos. Poucos daqueles ainda estão aqui. É hora de a gente pensar em como dar o passo seguinte à Constituição, em como fazer a revolução de que este País precisa. Fizemos uma Constituição, Senador Nery, sem fazer uma revolução. Não existe Constituição sem revolução, porque ela vira apenas um documento, não vira uma alma. A alma deste País vai exigir uma revolução.

Eu insisto, e nisso talvez discorde de outros revolucionários, em que para mim essa revolução não está na economia. Para mim, a revolução não está em desapropriar o capital do patrão e dar ao trabalhador. Para mim, a revolução está em pegar o filho do trabalhador e colocar na mesma escola do filho do patrão. Aí uma geração de brasileiros novos, de brasileiros formados com o mesmo conteúdo, dentro do mesmo espírito...

O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PMDB - PI) - Professor Cristovam, seu tempo regimental se encerrou, mas eu o prorroguei por cinco minutos.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Obrigado, Sr. Presidente.

Com essa nova geração sendo formada com um espírito que nos unifique e que dê uma alma à nação brasileira, vamos poder dizer que a Constituição não foi apenas um documento que nos permite saber como nos comportarmos com a liberdade que ela garante, mas, mais do que um instrumento, como uma espécie de certidão de casamento de toda a nação brasileira em uma só imensa família, que não será constituída apenas por papéis, apenas pelas instituições governamentais. Só será constituída por aquilo que, de fato, é o altar onde uma nação casa os seus habitantes: a escola, a escola igual para todos, a escola com a mesma qualidade para todos.

Nós não fizemos isso quando elaboramos a nossa Constituição. A Constituição desprezou o objetivo central de garantir a todo brasileiro uma escola com a mesma qualidade. Leia-se a Constituição e vai-se ver que a educação não recebeu a importância que deveria. E a pouca importância que recebeu não foi cumprida pelos governos que se seguiram, até porque, no espírito dela, está a idéia de que a escola é municipal e não, nacional. Nela está a idéia de que só é federal aquilo que é da minoria privilegiada, aquilo que é de importância para a economia, aquilo que serve à infra-estrutura; não está aquilo que serve às crianças e ao povo em geral.

A transposição do São Francisco, que debatemos toda esta manhã, é um projeto federal. Ninguém fala em transposição do conhecimento como projeto federal, ninguém fala em transposição das crianças em uma geração de adultos sob a influência e os recursos federais. A água é federal; as estradas, federais; a energia, federal; os aeroportos, federais; o Banco do Brasil, federal. Escolas, não. Escolas, deixam para os ricos as privadas e, para o público, escolas sofrendo a escassez de recursos dos nossos pobres Prefeitos do País - e desiguais, além de pobres.

É sobre isso que talvez, nestes 20 anos da Constituição, a gente precisasse refletir. Este é um ano que tem muitas coincidências: 200 anos da vinda da metrópole para cá, 120 anos de abolição da escravatura, 20 anos da Constituição e 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Será que a gente não podia pegar os zeros desses números - dois zeros dos 200, um dos 60, outro dos 120, outro dos 20 - e tentar fazer com que esta Casa reflita como completar a tarefa dos Constituintes, dos abolicionistas, de Dom João VI, quando veio para cá, e dos direitos humanos? Tudo incompleto.

Este talvez seja o desafio da nossa geração: tentar completar aquilo que a história do Brasil insiste, persiste, que é a idéia de não completar o seu destino, de parar no meio do caminho de tudo o que a gente tenta fazer no País.

E nós paramos no meio do processo constituinte. Não completamos esse processo porque não fizemos a transformação social de que o Brasil precisa e que prometemos que faríamos pela Constituição, o que é falso. A Constituição, ao contrário, só é plena quando é feita depois da transformação. Quisemos fazer o inverso, e não deu certo. Não vamos agora também propor rasgá-la. Vamos propor completá-la.

É isso, Sr. Presidente, que eu tinha a dizer, lembrando, talvez pela primeira vez este ano, que a Constituição completa um número redondo de 20 anos. Chega à maioridade, mas não chega à plenitude de que a sociedade brasileira precisa.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/02/2008 - Página 2081