Discurso durante a 11ª Sessão Especial, no Senado Federal

Comemoração dos duzentos anos da abertura dos portos no Brasil.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. EDUCAÇÃO.:
  • Comemoração dos duzentos anos da abertura dos portos no Brasil.
Publicação
Publicação no DSF de 22/02/2008 - Página 3236
Assunto
Outros > HOMENAGEM. EDUCAÇÃO.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, BRASIL, CHEGADA, CORTE IMPERIAL, PAIS ESTRANGEIRO, PORTUGAL, INICIO, PROCESSO, EXTINÇÃO, COLONIALISMO, IMPORTANCIA, ABERTURA, PORTO, COMERCIO EXTERIOR, COMPARAÇÃO, NECESSIDADE, ATUALIDADE, PRIORIDADE, PROGRAMA, ABOLIÇÃO, ANALFABETISMO, MELHORIA, EDUCAÇÃO, QUALIDADE, ENSINO, VALORIZAÇÃO, PROFESSOR, INCENTIVO, DESENVOLVIMENTO CIENTIFICO, DESENVOLVIMENTO TECNOLOGICO, INTEGRAÇÃO, INDUSTRIA, SEMELHANÇA, INSTITUTO TECNOLOGICO DE AERONAUTICA (ITA), BUSCA, GLOBALIZAÇÃO, AUSENCIA, INVASÃO, DOMINIO, PAIS INDUSTRIALIZADO.
  • CONCLAMAÇÃO, PAIS, COMPROMISSO, COMPLEMENTAÇÃO, PROCESSO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, INDEPENDENCIA, PROCLAMAÇÃO, REPUBLICA.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Senador Garibaldi Alves Filho, Srªs e Srs. Senadores, Sr. Almirante, Sr. General, Sr. Embaixador, se tivéssemos a presença aqui neste recinto - acho que não a temos - do Embaixador da China, ele deveria achar ridículo a gente comemorar 200 anos, não é Sr. Embaixador? Para eles, o que tem menos de mil anos não vale. Mas, para nós, 200 anos é um tempo imenso da nossa história, sobretudo porque a gente pode dizer que é o ponto de partida do Brasil.

O Brasil não começa com Cabral, mas com Dom João VI. Com Cabral, descobriu-se um território novo, começou-se a explorá-lo, mas foi com Dom João VI que este País começou a existir como embrião de uma nação que se transformaria, alguns anos depois, com a Independência.

Mas um País que considera como uma longa e distante data 200 anos merece que a gente converse não só sobre os 200 anos, mas sobre os próximos 200 anos.

Imaginei, Sr. Embaixador, se D. João VI estivesse chegando agora, em 2008, se o nome dele fosse Mário Soares, o que ele faria? Os portos já estão escancarados, não se tem de abrir portos mais; não se tem mais de criar uma ou duas faculdades, pois nós temos 4,5 milhões de estudantes: que faria, Senador Romeu Tuma, se D. João VI, com a cabeça de hoje, não com a do tempo dele, chegasse aqui? Creio que ele faria aquilo que naquela época não tinha percepção de fazer e completaria o que se iniciou.

Naquela época, o que teria feito do Brasil, de fato, ir além seriam três coisas, duas a mais da abertura dos portos: seriam a abolição da escravatura e a universalização da educação de qualidade para todos. Acho que, se Mário Soares descesse hoje aqui, fugindo de uma invasão da França, do Sarkozy, a primeira coisa que faria, Senador Romeu Tuma, era um programa de abolição do analfabetismo. A segunda coisa seria garantir que, ao serem educados, esses adultos passariam a ter uma escolaridade; e que toda criança, aos quatro anos de idade, entraria na escola; e que a escola seria em horário integral; e que os professores seriam tão bem pagos quanto os policiais, de que o Senador falou, da Polícia Federal, ou que ganhariam, mais ou menos, a metade de um delegado e poderiam começar a desenvolver-se mais; e que a gente poderia escolher os melhores quadros deste País para o magistério.

Além disso, o que corresponderia hoje à abertura dos portos - o mundo cujos portos estão escancarados, como deve ser, aliás, com a globalização - é o desenvolvimento científico e tecnológico, não apenas a criação de faculdades e de universidades, porque isso não é suficiente - isso é necessário -, mas fazer do Brasil um País capaz de levar para todas as outras áreas o que a gente faz, por exemplo, com a indústria aeronáutica brasileira.

A indústria aeronáutica, aqueles aviões que são símbolo do progresso brasileiro não são fabricados por uma fábrica, mas por uma Escola, chamada ITA, Instituto Tecnológico de Aeronáutica. Foi ali que nasceu a Embraer. A Embraer não saiu de um investimento industrial, saiu de um investimento intelectual, científico e tecnológico; depois, vem o resto. A gente precisava de um, dois, três, cinco, dez, mil ITAs - aquilo que os socialistas, nos anos 70, diziam “um, dois, três, cinco, mil Vietnãs”, hoje a gente deve dizer um, dois, três, cinco, mil ITAs no Brasil - nas diversas áreas do conhecimento, para fazer com que este País de fato possa abrir os portos sem ser invadido pela abertura dos portos, porque esta abertura serve para dinamizar a economia, integrar os povos, fazer o ideal, que é uma humanidade toda ela convivendo, e não separada em blocos isolados. Mas essa abertura pode fazer também com que, em vez da convivência, haja uma dominação, uma invasão em vez da integração. Duas palavras tão parecidas: invasão e integração, e tão diferentes no conceito que têm. O que faz a diferença entre a invasão e a integração é o pleno desenvolvimento científico e tecnológico de um povo, o pleno desenvolvimento cultural de um povo, o pleno desenvolvimento educacional de um povo.

Dois povos podem conviver maravilhosamente, enriquecendo-se culturalmente, quando os dois têm dimensão de desenvolvimento cultural; senão, um domina o outro, como, aliás, está acontecendo, de certa forma, no mundo inteiro, em que as culturas estão sendo destruídas, surgindo, no lugar, uma nova cultura única, com o empobrecimento da humanidade, pela perda das diversas culturas que nós tivemos.

Creio que hoje é um dia, sim, de se comemorar. Vou mais longe ainda: um dia de comemorar o nascimento do Brasil, não hoje, o dia, o ano - ali que a gente nasceu. Em 1500 fomos descobertos; em 1808 nós fomos inaugurados, pela presença da Corte Portuguesa no Brasil.

Além de tudo, fomos descobertos por algumas naves que saíram com alguns aventureiros, mas fomos inaugurados por uma Corte, que teve a coragem de arriscar-se inteira nos mares, em um tempo em que os mares eram ainda quase desconhecidos. Não foram um, dois, nem três, nem alguns aventureiros, mas uma Corte inteira; foi toda a elite de uma metrópole que fez essa aventura gigantesca. Gigantesca! É algo que ainda não está bem contado nas epopéias mundiais: essa aventura gigantesca de deslocar toda a elite de um povo de um país para o outro lado do oceano há 200 anos, e aqui inaugurar um novo país, que lamentavelmente não foi completado naquele momento. Obviamente, as circunstâncias, a realidade não permitiu que a abertura dos portos viesse com a abolição da escravatura, o que teria sido um grande gesto.

Mas era impossível, nem os outros países tinham feito ainda.

Depois, veio a universalização da educação; depois, veio o início de um processo mais radical de industrialização que, lamentavelmente, as relações de Portugal com a Inglaterra não deixaram que acontecesse.

Hoje, o mais grave é que, 200 anos depois - 186 anos depois da Independência - nós temos que reconhecer que nós tampouco completamos o que devíamos ter feito, porque em 1988 a gente fez a Abolição, mas não a completamos, não demos terra aos ex-escravos, não demos escolas aos seus filhos. E, aí, o que aconteceu foi que os escravos foram libertos, saindo das senzalas para as favelas, para debaixo de pontes. Não eram mais obrigados ao trabalho forçado, mas podiam ficar condenados ao desemprego. Não tinham mais seus filhos proibidos de estudarem, mas não havia escola para esses meninos e meninas descendentes dos africanos. Não completamos a Abolição.

Um ano depois, fizemos a República e não completamos plenamente a República, porque este é um País que é republicano no sistema político, mas não é republicano na vida social. Os países escandinavos são países monárquicos no regime político, mas são repúblicas na relação dos seus reis com o seu povo, das suas elites dirigentes com o povo. No Brasil, lamentavelmente, General, nós continuamos numa República, do ponto de vista político, que elege um Presidente pelo voto popular, mas que continua com uma elite e um povo separado, como se anda fosse ainda o tempo dos nobres e dos plebeus. Tanto que, nesta Casa, diferentemente do que em um quartel, em que chamam de camaradas, companheiros e colegas, aqui nos tratamos de nobres; ou seja, um resquício de antes da República.

Eu não sei o que Rui Barbosa dizia na época em que se tratavam como nobres no novo Congresso que surge da República em 1889. De qualquer forma, não é a maneira correta; deveríamos nos tratar de cidadãos, cidadãs, não de nobres. É que não completamos a República, e não a completamos porque uma república não se faz apenas com gestos políticos; faz-se sobretudo com gestos educativos. O que faz uma população se transformar em um povo é a igualdade na educação das pessoas dessa população. E a gente não conseguiu fazer isso ainda no Brasil. Ainda temos uma camada educada e uma massa imensa que não tem acesso à educação, e aí não conseguimos fazer uma Nação.

Tenho dito sempre, não pela presença dos senhores aqui, que uma nação se faz com soldados que a defendem e com professores que a constroem. Não estamos construindo, do ponto de vista dos professores, pelos baixos salários, pela baixa dedicação, pela baixa cobrança, pela falta dos instrumentos necessários, porque no mundo de hoje um professor apenas com giz e caneta não consegue dar uma boa aula.

Precisamos aprender, nesses 186 anos, que nós não completamos. Aliás, a Abolição também neste ano fecha uma data redonda: 120 anos; como os direitos humanos também: 60 anos - datas simbólicas, mas datas incompletas.

Quero terminar dizendo que é hora, sim, de comemorar, como devemos comemorar, no 13 de maio deste ano, os 120 anos da Abolição, mas comemorar com a modéstia de um país que não conseguiu se transformar em uma Nação; com a modéstia de quem não completou aquilo que foi começado pelos seus antepassados. Não completamos o que D. João VI fez ao vir para cá; não completamos o que D. Pedro fez no 7 de setembro; não completamos o que Deodoro fez no 15 de novembro; não completamos ainda o processo de transformação de um país em uma nação, de uma população em um povo.

Essa é a lição que eu gostaria que todos pudéssemos trazer no coração da gente, de agradecimento àquela Corte portuguesa que teve a coragem de vir para cá, ao invés de entregar-se a Napoleão, e que aqui tomou decisões fundamentais para inaugurar um novo país, e, ao mesmo tempo, a reflexão junto com a lembrança de que falta muito para completarmos aquilo que há 200 anos atrás começou. Aquela tarefa foi do D. João VI e de todos que o acompanharam. Completar isso é a tarefa da geração de hoje.

Vamos lembrar, mas vamos também nos comprometer na tarefa de completar o que as gerações anteriores vêm tentando fazer: transformar um país chamado Brasil em uma grande Nação brasileira. (Palmas)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/02/2008 - Página 3236