Discurso durante a 52ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem pelo bicentenário do Poder Judiciário independente no Brasil.

Autor
Sibá Machado (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Sebastião Machado Oliveira
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. JUDICIARIO.:
  • Homenagem pelo bicentenário do Poder Judiciário independente no Brasil.
Publicação
Publicação no DSF de 16/04/2008 - Página 9427
Assunto
Outros > HOMENAGEM. JUDICIARIO.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, INDEPENDENCIA, JUDICIARIO, BRASIL, CRIAÇÃO, CASA DE SUPLICAÇÃO, DESCRIÇÃO, HISTORIA, GESTÃO, PRINCIPE REGENTE, PAIS ESTRANGEIRO, PORTUGAL, PEDRO I, IMPERADOR, RELAÇÕES DIPLOMATICAS, GOVERNO ESTRANGEIRO, GRÃ-BRETANHA, CONSTRUÇÃO, SOBERANIA.
  • IMPORTANCIA, JUDICIARIO, GARANTIA, LIBERDADE, DIREITO A IGUALDADE, CIDADÃO, LEITURA, TRECHO, ARTIGO, ESPECIALISTA, DESCRIÇÃO, FUNÇÃO, NECESSIDADE, AUTONOMIA, PODERES CONSTITUCIONAIS, COMENTARIO, ORADOR, BENEFICIO, DEMOCRACIA.

O SR. SIBÁ MACHADO (Bloco/PT - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o Senado da República se reuniu hoje, em sessão especial, requerida por S. Exª o Senador Marco Maciel, para comemorar o bicentenário do Poder Judiciário independente no Brasil.

Como já foi registrado hoje, no dia 10 de maio de 1808, o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro foi elevada à condição de Casa de Suplicação do Brasil. Vale dizer que aquela Corte converteu-se em uma instância derradeira para a apelação dos processos iniciados no território brasileiro, ainda colônia de Portugal.

A agitação política que se seguiu à Revolução Liberal do Porto, em agosto de 1820, provocou o retorno de D. João VI a Lisboa, viagem que seria levada a efeito em abril do ano seguinte. Pouco antes de partir, em 7 de março de 1821, Sua Majestade assina, ainda no Rio de Janeiro, decreto régio pelo qual aquiesce à convocação das Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa. Convém lembrar que o chamamento da Assembléia Constituinte já se dera por ato de junta provisória que substituíra o regime de protetorado, caracterizado pelo governo do Lord Beresford.

As Cortes, ditas liberais e nacionalistas, em sua conformação majoritária, não tardaram em expressar seu ideário: eram favoráveis à instituição de uma monarquia constitucional e à restauração do Pacto Colonial. Sob o enfoque institucional, esse último aspecto implicava submeter órgãos administrativos e jurisdicionais em funcionamento no Brasil, desde a mudança da Corte para o Rio de Janeiro, à autoridade do Parlamento português. Essa política culminou com a edição do Decreto Legislativo de 29 de setembro de 1821, que dispôs sobre a transferência, para Lisboa, do Conselho da Fazenda, da Junta de Comércio e ainda da Mesa do Desembargo do Paço, da Consciência e Ordens e da já citada Casa de Suplicação.

As reações, no Brasil, não demoraram. “Resistir” era a palavra-de-ordem. As exigências impostas pelo movimento constitucionalista português motivaram, de forma expressiva, as articulações separatistas que culminaram com a Proclamação da Independência em 7 de setembro de 1822. E a Casa de Suplicação, que havia prevalecido antes mesmo da proclamação do novo Estado, firmou-se como instância final de jurisdição das lides propostas em território brasileiro. Nossa autonomia judicial, portanto, antecedera à própria afirmação de soberania do Estado brasileiro.

Mas as ressalvas de estilo, é claro, devem ser aqui consignadas. Não obstante a afirmação da autoridade da Casa de Suplicação, o preço exigido pela Grã-Bretanha, dentre outras imposições, por sua facilitação do reconhecimento do Estado brasileiro no concerto das nações foi a manutenção do Tratado de Navegação e Comércio, firmado em 19 de fevereiro de 1810.

Por esse instrumento, garantira-se ao Reino Unido o privilégio de nomear magistrados especiais para agirem como juízes-conservadores nos portos e cidades do Brasil e demais domínios portugueses. Os juízes deviam se encarregar de todos os casos envolvendo súditos britânicos. Estes poderiam escolher o magistrado por maioria de votos, sujeito à ratificação de D. João VI ou seus sucessores. A remoção, por Portugal, dos juízes já investidos era possível tão-somente por apelo por intermédio do embaixador ou do ministro do Reino Unido.

Com o termo final de vigência do tratado previsto para 1825, a renovação e a manutenção dessa exceção ao princípio da territorialidade no exercício da jurisdição por uma comunidade política soberana tornaram-se a pedra-de-toque do intervencionismo de Londres nos negócios do novel Império, ao lado, é claro, das exigências de supressão do tráfico de escravos.

Embora a Constituição do Império de 1824 houvesse decretado a abolição de qualquer foro privilegiado, em 10 de novembro de 1827 o acordo era ratificado, mantidas todas as velhas vantagens do Reino Unido, inclusive as tocantes à regra de extraterritorialidade jurisdicional. Em seu Artigo IV constava que, como a Constituição do Império do Brasil havia abolido as jurisdições especiais, “o cargo de juiz conservador para a Nação Britânica” devia “subsistir apenas até que algum substituto satisfatório para essa jurisdição” fosse “estabelecido, capaz de servir, da mesma forma, à proteção das pessoas e da propriedade dos Súditos de Sua Majestade”.

Alan Manchester, em seu magistral Preeminência Inglesa no Brasil, assinala que “essa época nunca chegou e a jurisdição extraterritorial da Grã-Bretanha no Brasil continuou até que a Corte do Rio de Janeiro declarou nulo e se recusou a negociar um outro acordo”.

Paradoxalmente, esse inequívoco ato de soberania, que só veio a ocorrer em 9 de novembro de 1844, se deu como repulsa dos escravocratas brasileiros às investidas de Londres contra o comércio negreiro. O ministro inglês Hamilton-Hamilton ainda tentou manter tratativas para assegurar a continuação dos juízes conservadores como instituição perpétua. Mas a entrada em vigor do Aberdeen Act, em 8 de agosto de 1845, pelo qual foram autorizadas as abordagens e apreensões, pela armada britânica, em alto-mar, de navios negreiros brasileiros foi a pá-de-cal nas negociações.

Dessa maneira, para defender a escravidão, demos um “basta” à relativização de soberania no que concerne ao exercício do poder jurisdicional pelos próprios brasileiros.

Isso não significou, todavia, àquela altura, a afirmação da autonomia do nosso Judiciário, no plano das relações internas entre os Poderes. A prerrogativa de controle de constitucionalidade das leis só viria a ser declarada na Constituição de 1891. O ingresso na carreira por concurso público e a estabilidade só viriam a ser universalizados com a promulgação da Constituição de 1934. A independência financeira, por seu turno, só veio a ser consagrada muito mais tarde, com o Estatuto Político de outubro de 1988.

Naqueles idos, devemos recordar, podia o Imperador, com suporte no Poder Moderador que lhe reconhecia a Carta de 1824, suspender de suas funções os magistrados contra os quais houvessem sido apresentadas queixas.

Assim, Sr. Presidente, ao me somar às comemorações do nascimento de nosso Poder Judiciário independente, quis eu, com essas breves observações, destacar uma idéia que me parece fundamental: a independência do Poder Judiciário é tarefa que não termina nunca; é trabalho diuturno de toda uma cidadania que ali tem a sua última cidadela contra toda e qualquer forma de arbítrio.

Alexander Hamilton assinalou, com muita propriedade, em um dos Artigos Federalistas, que

[...] todo aquele que considerar atentamente os diferentes poderes perceberá que, em um governo em que eles estão separados, o judiciário, pela natureza de suas funções, será sempre o menos perigoso para os direitos políticos da Constituição, por ser o menos capaz de transgredi-los ou violá-los. O executivo não só dispensa as honras como segura a espada da comunidade. O legislativo não só controla a bolsa como prescreve as regras pelas quais os deveres e direitos dos cidadãos são regulados. O judiciário, em contrapartida, não tem nenhuma influência sobre a espada nem sobre a bolsa; nenhum controle sobre a força nem sobre a riqueza da sociedade e não pode tomar nenhuma resolução ativa. Pode-se dizer que não tem, estritamente, força nem vontade, mas tão-somente julgamento, estando em última instância na dependência do braço executivo até para a eficácia de seus julgamentos.

Nessa linha, podemos afirmar que o que de fato assegura a independência do Poder Judiciário é a autoridade moral de seus pronunciamentos, nos quais, sempre e cada vez mais, a autoridade do argumento há de prevalecer sobre o argumento de autoridade. E o argumento judicial, para ser respeitado, haverá de ser, em qualquer circunstância, o seguro e equilibrado ditado da garantia de encontro da liberdade com a igualdade. Só a apuração, de forma imparcial e independente, pelo magistrado da conduta correta a ser observada é a certeza de realização de um programa de metas escolhido democraticamente pela maioria dos cidadãos como projeto racional de sociedade justa.

Sr. Presidente, com essas palavras, quero prestar as minhas homenagens aos 200 anos do Judiciário brasileiro e dizer que, entre tantos momentos de dificuldades que o País viveu, ainda assim, essa tríade que nós temos da presença do Estado brasileiro - Executivo, Legislativo e Judiciário - é o que há de melhor acabado para a correlação de forças políticas e democráticas do nosso País.

Viva o Judiciário brasileiro! Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 16/04/2008 - Página 9427