Discurso durante a 70ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Considerações sobre as falhas em preservar locais de crime, aponta responsabilidades legais e alerta para os prejuízos assim acarretados às investigações aos processos criminais.

Autor
Romeu Tuma (PTB - Partido Trabalhista Brasileiro/SP)
Nome completo: Romeu Tuma
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA. CODIGO DE PROCESSO PENAL.:
  • Considerações sobre as falhas em preservar locais de crime, aponta responsabilidades legais e alerta para os prejuízos assim acarretados às investigações aos processos criminais.
Publicação
Publicação no DSF de 08/05/2008 - Página 12425
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA. CODIGO DE PROCESSO PENAL.
Indexação
  • CRITICA, CONDUTA, POLICIA, ERRO, PRESERVAÇÃO, LOCAL, OCORRENCIA, HOMICIDIO, CRIANÇA, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), DEMORA, INTERDIÇÃO, AREA, POSSIBILIDADE, ALTERAÇÃO, INDICIO, COMPROMETIMENTO, PROVA PERICIAL, INVESTIGAÇÃO.
  • IMPORTANCIA, PRESERVAÇÃO, LOCAL, OCORRENCIA, CRIME, COMENTARIO, OPINIÃO, ESPECIALISTA, ALEGAÇÕES, NORMAS, CODIGO DE PROCESSO PENAL, DESCRIÇÃO, OBRIGATORIEDADE, PROCEDIMENTO, POLICIAL, ADVERTENCIA, POSSIBILIDADE, PUNIÇÃO, DESCUMPRIMENTO.
  • COMPROMETIMENTO, OCORRENCIA, CONDUTA, POLICIAL, JORNALISTA, CIDADÃO, VIOLAÇÃO, LOCAL, CRIME, ALTERAÇÃO, PROVA PERICIAL, PREJUIZO, INVESTIGAÇÃO, DESCRIÇÃO, TECNOLOGIA, ATUALIDADE, AUXILIO, PERITO, COMPARAÇÃO, PERIODO, ATUAÇÃO, ORADOR, POLICIA FEDERAL.
  • DEFESA, PROMOÇÃO, TREINAMENTO, AUTORIDADE POLICIAL, VIABILIDADE, CUMPRIMENTO, LEGISLAÇÃO.

            O SR. ROMEU TUMA (PTB - SP. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, como já assinalaram insignes criminalistas, notadamente o Professor Magalhães Noronha, a história do direito penal confunde-se com a história da humanidade. É desse celebrado mestre a afirmação de que esse ramo do Direito “surge com o homem e o acompanha através dos tempos, isso porque o crime, qual sombra sinistra, nunca dele se afastou". Em apoio a tão precisa assertiva, podemos citar o primeiro delito de que temos notícia, qual seja, o fratricídio praticado por Caim contra Abel.

            Mas, tranqüilizem-se, nobres Pares: longe de mim ocupar a tribuna para deitar falação acadêmica. Venho apenas proferir um alerta, à vista do caso da menina Isabella Nardoni, de 5 anos, lançada da janela do 6.° andar de um condomínio em São Paulo, crime atribuído a seu pai e à madrasta pela Polícia e pelo Ministério Público. Um homicídio perpetrado com perversidade capaz de comover o País e repugnar até antigos policiais que, como eu, pensavam já ter visto toda a maldade existente no mundo.

            Venho à tribuna, isto sim, para lembrar que, mesmo se carecêssemos de qualquer outro exemplo dos malefícios acarretados à elucidação dos fatos pelo inadequado tratamento dos locais de crime, especialmente os de sangue, o caso Isabella bastaria para demonstrar como falhas de interdição elementares continuam a possibilitar até a remoção de vestígios após o início das investigações. Continuam e continuarão - se não encontrarem um enérgico basta! - a permitir o tumulto nas apurações, que sempre corre a favor dos criminosos em qualquer sistema jurídico-penal alicerçado, como o nosso, no princípio de “in dubio pro reo”.

            Os jurisconsultos da área penal são unânimes em destacar a importância de entregar locais intactos aos peritos. Este pronunciamento tornar-se-ia faccioso se atribuísse maior ou menor relevância ao que dizem autores do porte de Fernando Capez, Hélio Tornaghi, Fernando da Costa Tourinho Filho, Walter Acosta e o já mencionado Magalhães Noronha, além de docentes das academias de polícia brasileiras e quase todas as estrangeiras. Sem exceções, consideram a preservação dos vestígios “in loco” como passo primordial da investigação. E doutra forma não poderia ser, uma vez que o próprio Código de Processo Penal dispensa interpretações, tamanha é a clareza e objetividade por ele dedicadas ao assunto desde o advento da Lei n.º 8.862, de 28 de março de 1994, devotada aos procedimentos para aquele isolamento, assim como às responsabilidades pelos atos periciais depois dele praticados.

            Diz o CPP em seu art. 6.° que, tão logo tenha conhecimento da infração penal, “a autoridade policial deverá dirigir-se ao local” e providenciar “para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais”. Deverá ainda “apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais”. Portanto, a norma processual é límpida e indubitável. Dispensa lucubrações. Todavia, o que aconteceu no caso Isabella?

            A interdição do apartamento de onde lançaram Isabella para a morte demorou três dias. Os envolvidos no homicídio tiveram todo o tempo necessário para dissimular e remover vestígios incriminadores. Os peritos do Instituto de Criminalística “Perito Criminal Dr. Octávio Eduardo de Brito Alvarenga” trabalharam em local prejudicado, porém, graças aos modernos recursos técnicos, recuperaram boa parte dos vestígios latentes. Mas, apesar do excelente trabalho pericial em condições adversas, sabe-se lá quantas provas os homicidas ou cúmplices puderam destruir ou remover?

            Como não poderia deixar de ser, a imprensa deu destaque às dúvidas surgidas durante a investigação, principalmente devido à loquacidade de um representante do Ministério Público, infenso ao sigilo do inquérito decretado tanto pelo juiz competente como pela autoridade policial. Dessas dúvidas socorreram-se, legitimamente, os advogados do casal indiciado no inquérito sobre o crime.

            Das manifestações de todos os criminalistas entrevistados pelos jornais, restou uma opinião unânime: a não-preservação do local permitiu acesso a muitas pessoas, além dos peritos, durante aqueles três dias. Por isso, até o pai e a irmã do acusado tornaram-se suspeitos de haver alterado o estado e a conservação das coisas nesse período.

            Mesmo assim, “a perícia encontrou muitos vestígios", como frisou o Professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Dr. João Ibaixe Jr., que foi delegado da Polícia Civil de 1992 a 2001. É dele também a observação de que “houve um pouco de precipitação, sensacionalismo, que acabou sendo controlado nos últimos eventos. É necessário cautela naquilo que é exposto para a população, para que essas pessoas não sejam julgadas precipitadamente."

            Na opinião do ex-juiz Luiz Flávio Gomes, doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e que presidiu mais de 300 júris em São Paulo, apesar dos tropeços na investigação “existem pontos positivos como, principalmente, a agilidade com a qual foram feitos os laudos do Instituto de Criminalística e do Instituto Médico Legal.” Ele acredita que a menção do local devassado figurará entre as principais alegações da defesa em juízo.

            Preocupante é também o que lembrou à imprensa o ex-Secretário da Administração Penitenciária Nagashi Furukawa, ex-delegado e ex-promotor público, embora reconhecendo “uma dedicação exemplar da polícia nesse episódio”. Disse ele textualmente:

            "No caso Isabella, toda a linha de defesa é de que uma terceira pessoa esteve no local do crime. A perícia não encontrou nenhum vestígio de uma terceira pessoa. Mas, vamos supor que uma pessoa maldosamente, dolosamente, tivesse jogado uma ponta de cigarro porque o apartamento não estava lacrado. Poderia gerar uma dúvida invencível na hora do julgamento. Essas eventuais falhas não trouxeram conseqüências, mas poderiam ter trazido."

            A Polícia Federal sempre dedicou especial atenção ao tema através de instruções normativas, complementadas por regras emanadas de sua Diretoria Técnico-Científica (DITEC) com apoio do Instituto Nacional de Criminalística e do Instituto Nacional de Identificação. Por exemplo, na Instrução Normativa n.° 014, de 2005, a Diretoria Geral do Departamento de Polícia Federal (DPF) apresenta considerações fundamentais à luz do Código de Processo Penal (CPP), entre elas a imprescindibilidade do exame de corpo de delito, direto ou indireto, quando a infração deixar vestígio, pois não pode ser suprido pela confissão do acusado.

            A preservação dos locais de infração penal de competência da União é de responsabilidade direta da autoridade policial federal - o delegado do DPF - e as perícias, sem exceção, são feitas por dois peritos criminais do órgão, subordinados ao Instituto Nacional de Criminalística (INC), além de papiloscopistas designados para as pesquisas “in loco”. Cabe-lhes verificar toda a área em que ocorreu o delito em busca de vestígios (“quaisquer alterações resultantes da conduta humana, por ação ou omissão, representadas por elementos materiais e que possam ter relações com a infração penal”) e indícios (“circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”).

            Quando há necessidade, esses peritos solicitam à autoridade policial auxílio para a preservação do local após os exames periciais e consignam essa providência no laudo. Cabe-lhes custodiar os vestígios encontrados e assegurar “a invulnerabilidade da cadeia de custódia da prova”. Os fragmentos de impressões digitais colhidos são arquivados no Instituto Nacional de Identificação.

            Até os manuais destinados aos recrutas dos batalhões de Polícia do Exército ressaltam o isolamento dos locais como medida imprescindível à investigação. Neles se lê que “são exemplos de vestígios, indícios ou provas encontradas em local de crime: projéteis de armas de fogo, faca, manchas de sangue, pêlos, impressões digitais, documentos, sinais de arrombamento e objetos pessoais etc.” Por isso, alertam:

            Não se deve cometer o erro de recolher qualquer objeto sob pretexto de que, assim estará mais bem protegido. É importante ressaltar que estes vestígios são intangíveis e que só o perito criminal é a autoridade competente para manuseá-los.”

            Pois bem, dia 29 último, um mês depois da morte da menina Isabella, o Secretário Geral do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), Sr. Ariel de Castro Alves, encaminhou requerimento ao Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Sr. Ronaldo Marzagão, e ao Ouvidor Geral de Polícia, Sr. Antonio Funari Filho, pedindo que as Corregedorias das Polícias Civil e Militar apurem "a suposta não preservação do local do crime”. Depois de lembrar os boatos de que “a suposta destruição de provas e a modificação do local do crime” seriam atribuídas ao avô paterno e uma tia de Isabella, o requerimento afirma:

            -"Já o avô atribuiu aos próprios policiais civis e militares a não preservação do local do crime e ainda acusou policiais civis de terem feito ‘bagunça’ e modificado o local do crime. Nesse sentido, é necessário o total esclarecimento desses fatos e das responsabilidades, exatamente para que essas ocorrências não contribuam para garantir a impunidade."

            Por sua vez, o Ouvidor encaminhou às corregedorias da Polícia Civil e da Polícia Militar questionamentos referentes a falhas na preservação daquele local e aos sucessivos vazamentos de informações sobre a investigação e a perícia. Diz ele que o caso é “emblemático e precisa passar por um processo de reflexão nos quadros da polícia”. Quanto à não-preservação, ressaltou que ofende “uma obrigação legal e falhas nesse sentido são passíveis de punição administrativa”. Acrescentou tratar-se de queixa comum em crimes de autoria desconhecida, como chacinas e execuções, e acentuou:

            -“Muitas vezes, em virtude do socorro das vítimas, a preservação não é possível, mas em outros casos, o cuidado não é tomado.”

            Dia 7 de maio de 2004, ao realizar a titulação de Mestre em Odontologia Legal e Deontologia, através da Faculdade de Odontologia de Piracicaba, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) descobriu um paradoxo referente à Polícia Militar paulista. A banca examinadora verificou que a maioria dos 856 policiais recém-formados (sargentos e soldados), destinatários de um questionário com quinze perguntas, demonstrou aptidão necessária ao isolamento das cenas de crime.

            Os resultados mostraram que 66,7% dos soldados e 75,7% dos sargentos questionados conhecem a legislação pertinente, inserida no Código de Processo Penal. Entre 74,2% e 75,4%, respectivamente, afirmaram que preservam o local de crime o tempo necessário para a conclusão dos exames periciais; entre 95,1% e 96,3% consideram muito importante o exame pericial para a elucidação de um crime; e entre 56,0% e 58,1% têm como primeira providência, quando chegam ao local de crime, comunicar o fato à autoridade policial, isto é, ao Delegado de Polícia. Então, por que tanta queixa quanto a alterações de cenas delituosas? Essa é a pergunta que não quer calar.

            O inquérito sobre a morte de Isabella, com mais de 1.200 páginas, já se encontra em poder da Justiça. Mas, se alguma dúvida persistir, poderá ser sanada no transcorrer do processo judicial através dos remédios inscritos no Código de Processo Penal. Por exemplo, as alterações do local e suas conseqüências na dinâmica dos fatos devem estar registradas nos laudos e relatórios periciais, conforme o parágrafo único do art. 169 do CPP. Desta forma, se for o caso, o juiz poderá mandar suprir a inobservância de alguma formalidade, bem como invocar o disposto no art. 181 para ordenar que se complemente ou esclareça o laudo, em face de omissões, obscuridades ou contradições.

            Uma evidência observável no caso é a das possibilidades abertas à polícia judiciária para obtenção de provas mediante modernos recursos técnico-científicos postos a sua disposição nos últimos anos. Vestígios latentes - até manchas de sangue removidas com produtos químicos - ressurgiram com tratamento que seria inimaginável até há poucos. Foi-se o tempo em que havia necessidade de, pelo menos, um fragmento de impressão digital para comprovar a presença de alguém em determinado local. Agora, um fio de cabelo, algumas células de pele, a saliva numa ponta de cigarro, uma gotícula microscópica de sangue - enfim, qualquer resto de matéria orgânica é suficiente para, através das comparações de DNA, positivar ou descartar o envolvimento de alguém num fato delituoso.

            -"Vivemos a Síndrome CSI”, afirmou à imprensa o perito Celso Perioli, Coordenador da Superintendência da (SPTC) e na carreira desde 1976. Ele acredita que aquele conhecido seriado da TV contribuiu para “uma exigência cada vez maior de provas técnicas. O mundo passou a comprar produtos para investigação científica, e os preços caíram. E mais países estão fabricando determinados equipamentos."

            Destaco o aumento da participação da SPTC no orçamento da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo como uma prova da valorização da Polícia Técnico-Científica. Dez anos atrás, sua dotação correspondia a 0,05% desse orçamento, ou seja, R$ 1,48 milhão. Subiu 12.841,3% durante a década e, agora, corresponde a 2,25% do total, isto é, R$ 191,5 milhões.

            O efetivo do órgão também cresceu: eram 2.847 funcionários. Atualmente, são 3.600. Ainda é pouco, pois, mesmo assim, em rincões do Interior paulista, os peritos precisam deslocar-se, às vezes, mais de 200 quilômetros para atingir locais de crimes. Estima-se haver necessidade de triplicar seu número para se chegar perto da quantidade ideal, ou seja, um técnico por 10 mil habitantes.

            A identificação através do DNA constitui apenas um dos muitos procedimentos que o Instituto realiza hoje. Indica com precisão de 99,9% a quem pertencem as amostras de qualquer material orgânico - sangue, sêmen, fios de cabelo etc. - encontradas na cena de crime. Se existisse a atual rapidez na época em que o famoso “Maníaco do Parque” estuprou e matou oito mulheres em São Paulo, entre 1997 e 1998, poderia ter truncado sua carreira delituosa. O criminoso chegou a ser preso como suspeito, mas recuperou a liberdade porque foram necessários seis meses para isolar o seu DNA, presente no corpo das vítimas. Hoje, o exame no Instituto de Criminalística demandaria dias ou apenas algumas horas.

            Além disso, o assassino do casal de advogados Jorge e Maria Cecília Toufic Bouchabki não ficaria impune. As vítimas foram mortas 20 anos atrás, em seus aposentos, e um filho transformou-se em acusado. Todavia, não houve como provar que a cena fora modificada por ele ou algum cúmplice, de maneira a destruir pistas e criar dúvidas. Também não se conseguiu identificar com precisão vestígios de sangue encontrados num lençol. Assim, o famoso Crime da Rua Cuba atingirá a prescrição no corrente ano.

            Um dos equipamentos revolucionários é o “Crime Scope”, aparelho binocular portátil e programável para ser sensível a diversos comprimentos de onda. Em ambiente escurecido, mostra vestígios invisíveis a olho nu. Como o reagente Luminol, que revela a existência de sangue mesmo em superfícies lavadas ou pintadas, o “Crime Scope” foi útil no caso Isabella. Aliás, o Luminol ajudou a incriminar o médico Farah Jorge Farah, que, em 24 de janeiro de 2003, matou, esquartejou e dissecou numa banheira a paciente Maria do Carmo Alves de Lima. Lavou o local com água sanitária, mas o reagente, aplicado na banheira, mostrou onde estavam os vestígios de sangue latentes.

            Há ainda o cromatógrafo, destinado a fracionar composições químicas, e o microscópio eletrônico de varredura, que analisa micropartículas e aponta sua natureza, bem como o moderno microscópio de comparação balística, dotado de iluminação a fibra ótica, lentes especiais e acoplamento a uma câmara fotográfica digital.

            Todavia, não há como negar que a eficácia de tais recursos depende da aptidão de quem os emprega e das condições de preservação das pistas deixadas nos locais de crime. Por isso, as mesmas regras básicas do passado continuam válidas para quem atende uma ocorrência, seja a autoridade policial - isto é, o delegado -, seus agentes ou os peritos. A interdição do acesso a curiosos ou mesmo aos repórteres e policiais estranhos à ocorrência é fundamental para a obtenção de provas.

            A carência de preservação constitui a principal queixa dos peritos criminais. Apontam a inexistência de cultura para elidir tais falhas entre os policiais normalmente designados para o atendimento inicial. Muitas provas desaparecem por mera falta de cuidado desses atendentes ou por curiosidade popular. Há algum tempo, o experiente perito Osvaldo Negrini foi categórico ao declarar à imprensa:

            -“Enquanto não se punir policiais que destroem locais de crime, o problema não será resolvido.”

            Esse perito exemplifica com o que aconteceu durante o seqüestro do publicitário Washington Olivetto:

            -“Se dependesse de indícios coletados no local do crime, os seqüestradores estariam impunes até hoje. Quando a perícia chegou ao cativeiro, não havia mais nada. Policiais e jornalistas destruíram tudo.”

            No ano passado, durante o I Seminário Institucional sobre Local de Crime, Isolamento e Preservação, promovido pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará, em colaboração com a Secretaria Nacional de Segurança Pública, o prof. Alberi Espindula, instrutor da Senasp e diretor-adjunto do Centro de Perícia de Alagoas, demonstrou que as violações de locais estão “diretamente associadas à falta de preparo de policiais e, também, à consciência da população”. Lembrou que, ao atender um local, “a Polícia deve se restringir ao isolamento da área, impedindo a aproximação de populares.” E revelou que, em sua opinião, metade dos locais, principalmente nos casos de homicídio e crime de trânsito, são violados antes da chegada a perícia. Para exemplificar, lembrou a morte de Paulo César Farias e sua companheira, Suzana Marcolino, ocorrido há 12 anos, em Alagoas. Comparações fotográficas evidenciaram adulterações da cena do crime.

            Por sua vez, o superintendente da Polícia Civil, Dr. Luís Carlos Dantas, ressaltou que uma ponta de cigarro deixada por um popular num local pode confundir a perícia, da mesma forma que um papel de bombom abandonado por um policial. Frisou que “ninguém, a não ser o perito, pode segurar a arma usada em um crime ou mover o cadáver”. E asseverou:

            -"Isso chega a ser um crime, o de violação de local de crime, previsto no Código Penal."

            Ilustrou suas afirmações, citando um absurdo:

            -“Tivemos aqui um caso em que um repórter, numa delegacia, inventou de manusear uma arma para a câmera e acabou efetuando um disparo acidental. Pôs todos os circunstantes em risco e, ao segurar a arma, destruiu as impressões digitais do dono".

            Há outras razões relevantes e de ordem prática a merecer reflexão das autoridades superiores. Por exemplo, indenizações judiciais decorrentes de danos morais em face das falhas de preservação, como já aconteceu em diversos casos, a exemplo do ocorrido em Ribeirão Preto, Interior paulista, em 1998. Então, a Fazenda Pública do Estado de São Paulo, duas editoras jornalísticas e dois policiais militares foram condenados pelo juiz de Direito Francisco Câmara Marques Pereira a pagar 200 salários mínimos à mãe de uma vítima de necrofilia, devido a uma falha daquela natureza com prejuízo à imagem da morta. A condenação abrangeu também o pagamento das custas e despesas processuais, além de honorários advocatícios fixados em 15% do valor da condenação.

            A toda hora, através do noticiário de imprensa, deparamo-nos com absurdos relacionados à falta de preservação de locais de crimes, com flagrante dano à aplicação da lei penal. É incontestável que, na maioria dos julgamentos por homicídio, os jurados e o magistrado conferem maior importância às provas materiais do que às testemunhais. Mesmo porque, em Direito, costuma-se dizer que o testemunho é a prostituta das provas.

            O jornal Folha de S. Paulo teve o cuidado de acompanhar dez casos do gênero com o objetivo de documentar as condições de peritagem “in loco”. Os repórteres verificaram que, em todos esses crimes, “as preservações dos locais foram extremamente alteradas”. Por exemplo, numa chacina ocorrida em Campo Limpo, zona sul paulistana, os primeiros policiais militares a chegar isolaram o perímetro com fitas. Pouco depois, entretanto, os integrantes de outra guarnição da PM “andaram no estabelecimento comercial, pisaram em poças de sangue e baixaram as portas de aço do local, onde poderiam ter sido deixadas pistas dos criminosos”. Em dois locais, os jornalistas fotografaram policiais militares remexendo nos corpos antes da chegada dos peritos. Noutro, uma perita afoita tropeçou no corpo de um jovem antes de ser examinado.

            Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, tenho total confiança na capacidade e eficiência dos institutos de Criminalística e de Medicina Legal do meu Estado. Razões me sobram para tanto, pois os utilizei com êxito em perícias difíceis, mesmo nos tempos desprovidos de recursos técnico-científicos como os que descrevi acima. Hoje, reputo muitos daqueles laudos como autênticos “milagres” alcançados graças à versatilidade do intelecto individual. Entre esses trabalhos periciais, incluo os que comprovaram a descoberta dos despojos do criminoso nazista Joseph Mengele, ao tempo de minha estada à frente da Polícia Federal. O exame de DNA, feito na Inglaterra anos depois, veio apenas confirmar as conclusões dos peritos paulistas.

            Aliás, o Caso Mengele evidenciou quão importante era para o Departamento de Polícia Federal dispor de órgãos técnicos, como o Instituto Nacional de Criminalística e o Instituto Nacional de Identificação, em nível idêntico ao da polícia técnico-científica de São Paulo. Corroborou também a importância de o DPF aprimorar e atualizar conhecimentos permanentemente através da Academia Nacional de Polícia, hoje invejável até no Exterior.

            Mas, vejam só, nobres Pares, como as coisas se complicam devido ao simples fato de não se isolar um local de crime. Portanto, lançar um alerta constitui o principal objetivo deste pronunciamento que encerro, dirigindo veemente apelo a todas as autoridades policiais brasileiras para que cada uma promova, na respectiva área de atuação, o adequado treinamento de seus agentes e deles exijam o fiel cumprimento do que determina o Código de Processo Penal. Mesmo porque, queiram ou não, a lei é bem clara quanto às suas responsabilidades.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/05/2008 - Página 12425