Discurso durante a 74ª Sessão Especial, no Senado Federal

Comemoração dos 120 Anos da promulgação da Lei Áurea no Brasil e da Abolição da Escravatura.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • Comemoração dos 120 Anos da promulgação da Lei Áurea no Brasil e da Abolição da Escravatura.
Publicação
Publicação no DSF de 14/05/2008 - Página 13798
Assunto
Outros > HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • OPORTUNIDADE, COMEMORAÇÃO, ANIVERSARIO, LEGISLAÇÃO, ABOLIÇÃO, IMPORTANCIA, MEMORIA NACIONAL, GRAVIDADE, OCORRENCIA, ESCRAVATURA, NEGRO, BRASIL, DETALHAMENTO, HISTORIA, EXPLORAÇÃO, LUTA, COMBATE, INJUSTIÇA, DEFESA, BUSCA, FAVORECIMENTO, RAÇA, ATUALIDADE, COMPENSAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, FALTA, ASSISTENCIA, INTEGRAÇÃO, ESCRAVO, POSTERIORIDADE, LIBERDADE, LEITURA, TRECHO, TEXTO, JOAQUIM NABUCO (PE), VULTO HISTORICO, LIDER.
  • COMENTARIO, DECLARAÇÃO, LIDER, QUILOMBOS, ESTADO DO MARANHÃO (MA), VALORIZAÇÃO, EDUCAÇÃO, COMPLEMENTAÇÃO, LIBERDADE, NEGRO.
  • REGISTRO, ATUAÇÃO, ORADOR, QUALIDADE, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, COMPENSAÇÃO, DIVIDA, PAIS, NEGRO, CRIAÇÃO, FUNDAÇÃO, INCENTIVO, INCLUSÃO, RAÇA, JUSTIFICAÇÃO, POLITICA, COTA, ENSINO SUPERIOR.
  • ANALISE, DEMOCRACIA, BRASIL, EXISTENCIA, OCULTAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, EFEITO, POBREZA, ANALFABETISMO, DOENÇA, INFERIORIDADE, PARTICIPAÇÃO, DECISÃO, POLITICA NACIONAL, REGISTRO, DADOS, INSTITUTO DE PESQUISA ECONOMICA APLICADA (IPEA), DEFESA, POLITICA, COMPENSAÇÃO, DIVIDA, ESCRAVATURA, NEGRO, CONCLAMAÇÃO, COMPROMISSO, FUTURO, JUSTIÇA, PAIS.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente do Senado Federal, Senador Garibaldi Alves Filho; Exmº Sr. Primeiro-Ministro da Áustria, Alfred Gusenbauer; Senador Cristovam Buarque; Senador Paulo Paim; Reitor da Universidade dos Palmares, Professor José Vicente; Sr. Milton Gonçalves; Srªs Senadoras, Srs. Senadores; expressivos representantes de lideranças negras do nosso País, que aqui se encontram; minhas senhoras e meus senhores,

Falo hoje, mais uma vez, na lembrança de uma data central da vida brasileira, e, ainda e sempre, na esperança de que saibamos resgatar todo o horror que ela quis deixar para trás. Lembrarmos a Abolição é não esquecer a tragédia da escravidão.

Em 13 de março de 1888, as ruas da Capital do Brasil tinham o povo em festa, na exaltação da vitória. A luta se estendera por setenta dos 300 anos de sofrimento e opróbrio da raça negra. Chegara ao fim com a libertação de 723.419 ainda escravos naquele fim de século.

A lei é singela: é declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil. Era apenas um pequeno texto legal, mas suas palavras e alcance constituíam sangue, dor, sofrimento e luta. O texto era a soma de tantos heróis e mártires, que pela vida e pela palavra abraçaram a causa da liberdade. Já Nabuco afirmava que era só o começo de uma grande caminhada. É um clarão de liberdade, mas apenas uma porta de entrada numa imensa obra de resgate de mulheres e homens, crianças e velhos, que haviam sido escravos ou eram descendentes de escravos. Uma obra que não realizamos, que nunca realizaremos em sua plenitude -- pois ficará para sempre a mancha indelével do sofrimento -- mas que precisamos nos esforçar, a cada dia, todos os dias, sempre, para realizar. Tudo que for feito para discriminar favoravelmente o negro será sempre incomensuravelmente menos do que o que foi feito para discriminá-lo negativamente, e menos também do que é a discriminação que ainda sofre.

A escravidão não era apenas a falta da liberdade de ir e vir, de decidir seu destino: a escravidão era uma tortura contínua, sem limites que não fossem a morte e o desespero.

A história da escravidão africana no Ocidente é tristemente ligada a nossa história. Ela começou com as navegações portuguesas na costa da África, com a introdução do escravo negro na Europa. Descoberto o Brasil, o primeiro pensamento foi o da escravidão do indígena. O padre Manuel da Nóbrega começou o combate contra essa desgraça, combate de que foi campeão o padre António Vieira. Pelo combate dos jesuítas, pela inaptidão dos índios para os grandes esforços de nossa primeira indústria, logo vieram os negros. Já no século XVI o número de escravos negros no Brasil igualou o da população branca.

Durante todo o século XVII concorreram no Brasil a luta contra a escravidão do indígena brasileiro e a aceitação da escravidão do africano. A cana de açúcar mostrou-se o único instrumento econômico da colonização. Assentava ela no uso brutal e completo da servidão negra. Nem um vislumbre de luz pode ser encontrado. Os mercados de madeira e especiarias ficaram sempre no patamar do sonho e da fantasia. O país -- os dois Estados, o do Brasil e o do Maranhão -- viviam na pobreza extrema.

No Diálogo das Grandezas do Brasil, um dos primeiros livros brasileiros, Ambrósio Fernandes Brandão, lembra as condições de nossa miséria, e explica: “E todos, assim uns como outros, fazem suas lavouras e granjearias com escravos de Guiné, que para esse efeito compram por subido preço; e […] o do que vivem é somente do que granjeiam com os tais escravos.”

O capitalismo incipiente, mostrou Celso Furtado, tinha um efeito perverso: era mais barato repor as “peças” -- assim mesmo eram tratados, como não entes, como pedaços de equipamento -- do que dar-lhes um mínimo de condição de sobrevivência; mais barato usar sem manutenção e repor depois do que com “taxa de manutenção” e prolongar a vida do “animal” -- também assim eram tratados.

No Brasil, como já tinha acontecido nos Açores e em Cabo Verde, os negros se adaptaram com facilidade ao monótono trabalho do açúcar e às condições naturais. Os números são eloqüentes: eram 15 mil no fim do século XVI, mais de 150 mil no fim do século XVII. Ao longo do século XVIII e até a Independência, foram trazidos talvez mais 2 milhões.

A idéia abolicionista surgiu no fim do século XVIII, e suas primeiras conseqüências foram o alvará de abolição gradual de d. José I -- quer dizer, de Pombal -- de 1773, o Pennsylvania Gradual Abolition Act, de 1780, e a proibição do tráfego pela Dinamarca em 1792 e pela Inglaterra em 1807. Nas regiões escravistas a emancipação começou 40 anos depois da revolução francesa e se concretizou em menos de sessenta anos. Um único episódio teve um rumo diferente, o da independência do Haiti, com seu heroísmo e sua tragédia.

Na Inglaterra o problema estava relacionado com a situação americana. Até à independência americana o tráfico de escravos a fortalecia. A primeira moção para proscrever a escravidão na Casa dos Comuns é de 1776. Nessa época, num dos esboços da declaração de independência, o Rei George III era acusado de participar do tráfico. Apesar da pressão que a Inglaterra faz no começo do século XIX contra o tráfico -- que a esta altura a enfraquecia -- a abolição nas colônias inglesas só se dá 1833.

Nos Estados Unidos o compromisso para se fazer a sua grande Constituição passa pelo silêncio sobre a questão do negro. Esse adiamento foi pago, mais tarde, com a tragédia da guerra civil.

Na França, em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão cala sobre o assunto, e só em 1794 a Convenção proclama a abolição. Mas em 1801 volta a escravidão, para ser abolida definitivamente em 1848. 

No Brasil, José Bonifácio pensava que o equacionamento da liberdade dos negros com sua integração completa à sociedade era uma preliminar da definição do Estado. Naqueles dias da independência, quando saiu de sua aposentadoria para fazer do Brasil uma nação e uma só nação, escreveu sua Representação sobre a escravatura.

Clamava que era tempo de começar a “expiação de nossos crimes e pecados velhos”. E insistia: educação, amparo à maternidade e à velhice, integração econômica e social têm que acompanhar a extinção do tráfego e a libertação. Em 1825, do exílio na França, lembrava: “sem a emancipação dos atuais cativos nunca o Brasil firmará sua independência nacional e segurará e defenderá a sua liberal constituição. Sem liberdade individual não pode haver civilização, nem sólida riqueza; não pode haver moralidade e justiça, e sem estas filhas do Céu, não há nem pode haver brio, força e poder entre as nações.”

A lei de 7 de novembro de 1831, proibindo o tráfico e emancipando os africanos, nunca foi observada. Ela era clara: “Art. 1º -- Todos os escravos que entraram no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres.” Ela devia significar a liberdade de pelo menos metade dos escravos, naquele momento, e de mais 1 milhão trazidos antes de 1850, quando o tráfico foi contido. Mas no conjunto a legislação brasileira tinha um vazio jurídico que, literalmente, colocava os escravos fora da lei. Teoricamente quem vivia no Brasil ou era cidadão brasileiro -- e portanto, sob a proteção da Constituição, não poderia ser escravizado -- ou era estrangeiro ou apátrida -- e a lei brasileira não podia alcançá-lo. Tão grande era a consciência da hipocrisia conveniente que nunca se mexeu na lei de 1831, pois significaria reconhecer a existência da contradição. À desfaçatez das assembléias de Bahia e Minas, que pediam a revogação da lei “para não serem obrigados a violá-la todos os dias”, somava-se, mais forte, o silêncio conveniente de magistrados e legisladores.

Senhor Presidente,

A escravidão nunca conseguiu se tornar um tema do pensamento nacional. Ao longo da colônia, ouviu-se apenas a voz dos jesuítas contra a escravidão do índio. As manifestações e, sobretudo, as violências, como as das guerras das missões, os bota-fora dos padres, os medos provocados pelas incursões dos capitães do mato e dos bandeirantes, tudo isso se passava em argumentos esporádicos, junto à corte, junto aos ministros, junto à Igreja. Não era uma discussão brasileira. 

A escravidão negra, em si, era tratada com grande naturalidade, como um fato da vida. As raras vozes são exceções. Não parece haver mais que a aceitação do martírio. Os Palmares são vistos como uma ruptura da ordem, como um desafio ao Estado, não como um drama social, como uma tragédia humana. A análise de Vieira, em sua velhice de visitador na Bahia, de que a única solução para o conflito seria a “liberal e segura liberdade”, dada a impossibilidade natural do homem se conformar com a escravidão -- e que levaria, lembrava, à dissolução do Estado escravocrata que era o Brasil -- a análise de Vieira parecia ser só mais uma doidice do velho sonhador.

Os homens da Inconfidência Mineira não chegaram a formular o problema. Mais tarde os documentos dos Andradas, de Antônio Carlos em 1817, de José Bonifácio em 1823, nunca foram debatidos ou contestados: foram ignorados. Talvez, como levantava Nabuco, tivessem tido parte em seu ostracismo, dada a notória ligação dos vencedores de 1823 com os interesses escravagistas.

A coligação dos interesses de proprietários rurais e traficantes foi a força dominante da política brasileira. Falando do grande passo que foi a lei de 4 de setembro de 1850, Eusébio de Queirós dizia que o tráfego só acabou “pelo interesse dos agricultores, cujas propriedades estavam passando para as mãos dos especuladores e traficantes de escravos”. Essa força segurava as discussões, até mesmo no Conselho de Estado, com Nabuco de Araújo, Pimenta Bueno (a voz de Pedro II, pela emancipação gradual), Jequitinhonha, Souza Franco, Salles Torres Homem combatidos por Olinda, Paranhos, Eusébio, quando finalmente se discute a liberdade. Força que fará com que os grandes passos sejam dados pelos conservadores, com Eusébio, Rio Branco e Ouro Preto.

Feita a abolição, os negros foram tratados como um fundo de tacho, sem importância bastante para receber uma atenção especial do Estado. A República os ignorou. Quando o pensamento brasileiro se voltou para eles, com o gênio de Gilberto Freyre, constatou seu papel fundamental em nossa formação; mas demoramos para tratar do problema da integração social, do resgate de nossa dívida, do gigantesco problema humano que alienou entre os mais pobres dos mais pobres toda uma parte dos brasileiros, tornando o branqueamento necessidade fundamental da ascensão social. O negro continuou, ao longo do tempo, sendo tratado como um não humano, como coisa, sem direitos.

Senhor Presidente:

A Abolição foi uma construção coletiva, em que se empenharam, numa união nunca vista, negros e brancos. Foi um esforço de mobilização social e popular, que empolgou o Brasil. A história da luta é simples: é a história da tentativa dos proprietários -- de terra e de escravos, que tudo vinha a dar no mesmo -- de impedir e adiar a emancipação; a luta do desespero contra a esperança. Vencida a batalha do tráfego, os proprietários se empenharam para impedir a abolição. Um bando de homens foi a pequena linha de frente do enorme exército preso ao eito. Seus nomes são sagrados, como se diria na oratória daquela época, e os devemos declinar com reverência: alguns tinham sido escravos, como Luís Gama; outros eram descendentes de escravos, como André Rebouças, Ferreira de Meneses, José do Patrocínio, Vicente de Sousa, Francisco Gê Acaiaba de Montezuma; outros eram brancos, como Jerônimo Sodré, Rui Barbosa, Gusmão Lobo, Nicolau Moreira, João Clapp, Antônio Prado, Castro Alves, Joaquim Serra, Ângelo Agostini, Sousa Dantas, José Bonifácio o Moço, Cristiano Ottoni, João Alfredo. Foram jornalistas, advogados, escritores, políticos.

O grande líder de todos eles foi Joaquim Nabuco. Quando chega à Câmara dos Deputados é a voz da liberdade, amada como nenhuma outra o foi em nossa história. Nabuco afirma a insuficiência da lei do 28 de setembro, a lei do Ventre Livre -- por ela a escrava nascida a 27 de setembro de 1871 poderia ser mãe em 1911 de um dos chamados ingênuos, que ficaria em cativeiro provisório até 1932 -- e coloca a Abolição como a questão fundamental do País.

A repercussão da mensagem de Nabuco é universal, corre mundo e, sobretudo, percorre o Brasil. No ano de 1884 a vitória parece próxima. No Ceará, onde os jangadeiros haviam tomado a iniciativa de negar o transporte dos escravos aos navios, faz-se a emancipação no dia 25 de março. A 20 de junho é a vez do Amazonas.

Enquanto isto, os liberais se haviam tornado abolicionistas. O Imperador chama Dantas para formar Ministério. Mas seu programa não satisfaz. No a pedidos do Jornal do Comércio, Gusmão Lobo, como Clarkson, Rui Barbosa, como Grey, Nabuco como Garrison, “os ingleses”, fazem um combate diário. Do outro lado, os “clubes da lavoura” formam-se e preparam-se para a luta armada. O projeto emancipacionista, apresentado por Dantas, não consegue passar. A Câmara é dissolvida.

Mas as iniciativas do Ceará e do Amazonas dão a partida a atos localizados de libertação. Porto Alegre, Uruguaiana, São Borja, Viamão, Conceição do Arroio, no Rio Grande do Sul; o largo de São Francisco, em São Paulo; o largo de São Francisco e a rua do Teatro, no Rio de Janeiro; a abolição avança município a município, quarteirão a quarteirão. 

Chega a lei dos Sexagenários, de Saraiva, que é uma derrota enorme. Nabuco, falando em nome dos abolicionistas decepcionados, adverte que a Monarquia corre risco ao tentar impedir a Abolição: é possível que “um grande ciclone de indignação varra diante de si não só a escravidão, não só o ministério, […] mas alguma coisa mais…”

Em 1888 desemboca todo o movimento nacional. Os proprietários paulistas, Antônio Prado à frente, tomam a iniciativa de concretizar a emancipação. A 12 de fevereiro de 1888 a cidade de São Paulo alforria seus escravos. A 1º de abril é a vez de a Princesa Isabel libertar Petrópolis. Num incidente com o chefe de polícia da capital, impopular pela repressão, cuja demissão lhe pede a Princesa, Cotegipe encontra o pretexto para deixar o governo. É chamado João Alfredo.

A 3 de maio abre-se a sessão parlamentar. A Regente é recebida com flores. A 7 de maio o ministério apresenta o programa abolicionista. No dia 8 é lido o projeto: “É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão do Brasil.” Nabuco pede a dispensa de prazos. As galerias explodem.

No dia 13 de Maio, um domingo, o Senado faz uma sessão especial. A Princesa desce de Petrópolis. No Paço, sanciona a lei -- que aqui está guardada como símbolo da história do Brasil no Senado, neste livro sobre a mesa está a Lei Áurea. Patrocínio ajoelha-se aos pés da Princesa. Os préstitos enchem a cidade. Machado conta no Memorial de Aires: “Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da História, ou até da Poesia.”

Sr. Presidente:

Nas primeiras páginas de O Abolicionismo, Joaquim Nabuco adverte: “Há [uma causa] maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regime que, há três séculos” -- hoje já são quase cinco -- “é uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores, e que fez do Brasil o Paraguai da escravidão.”

E prossegue:

“Quando mesmo a emancipação total fosse decretada amanhã, a liquidação desse regime daria lugar a uma série infinita de questões, que só poderiam ser resolvidas de acordo com os interesses vitais do país pelo mesmo espírito de justiça e humanidade que dá vida ao abolicionismo. Depois que os últimos escravos houvessem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso debastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância.”

Até aqui Nabuco. Já no meu Maranhão, em 1838, o negro Cosme, que chamava a si mesmo de o Imperador das Liberdades Bentevi e foi o grande líder da Balaiada, tinha a preocupação de “fazer uma escola, uma escola no Quilombo”, porque tinha noção de que não bastava a liberdade. O Quilombo do negro Cosme, com mais de 3.000 negros, era um caminho para a liberdade. Mas o velho Cosme sabia que é preciso libertar-se também pela educação.

Esta mesma preocupação com a educação me fez, depois de estudar com Carlos Moura e outras lideranças dos movimentos negros, acreditar na importância de uma política de cotas. Desde que entrei na política, há mais de 50 anos, tenho apoiado e participado das discussões sobre o problema do resgate da dívida com o negro. Presidente da República, há vinte anos, durante as comemorações do centenário da Abolição, criei a Fundação Palmares, que se destinava e se destina à ascensão da raça negra no nosso País. (Palmas.) Carlos Moura -- aqui presente --trabalhou junto comigo na concepção do que seria esta entidade que realmente tem se firmado, a cada dia, como um ponto de referência para resgatar a nossa dívida com os negros do Brasil. Mas tinha então, como tenho, o sentimento da insuficiência de nosso esforço.

Tenho ouvido e lido com atenção todo o debate sobre o erro científico de qualquer medida que leve em consideração a raça. Gostaria que esse debate tivesse impedido a escravidão. Sabemos perfeitamente que não há fundamento biológico ou ético para a divisão racial. Sabemos perfeitamente que é preciso acabar com a divisão da sociedade brasileira. É esse justamente o nosso combate. Mas não há como negar o que aconteceu: uns foram escravos, outros fomos senhores. Uns eram negros, outros eram brancos. O trabalho de resgate não aconteceu, repito, Senhor Presidente, não aconteceu. É preciso fazê-lo.

Estou convencido de que o Brasil é uma democracia racial; e não há dúvida disso. Mas carregamos enorme carga de preconceito. Se não temos segregação racial, a discriminação racial faz parte de nosso quotidiano, numa forma especialmente insidiosa, a discriminação encoberta, mascarada, escondida, até mesmo inconsciente. A exclusão dos negros e da comunidade negra coincide em grande parte com a dos pobres. Mas, mesmo que superpostas, elas não podem ser confundidas. Os negros, entre os pobres, são os mais pobres; entre os que não conseguem o acesso à educação, a maioria; entre os doentes, os mais graves.

A descrição dessa realidade está nos dados que coloquei na justificativa ao projeto de cotas raciais que apresentei e que o Professor Reitor José Vicente, da Universidade de Zumbi dos Palmares, conhece, porque citados em um artigo que escrevi para a revista da sua escola --; dados que pouco se alteraram nos últimos anos: segundo o doutor Ricardo Henriques, do IPEA, em 1999 os negros representavam 45% da população brasileira, mas 64% dos pobres e 69% dos indigentes. Entre os 10% mais pobres, 70% erm negros; inversamente, entre os 10% mais ricos, 85% eram brancos. Dos 1% mais pobres, 80% eram negros; entre os 1% mais ricos, 99% eram brancos. 8% dos jovens negros entre 15 e 25 anos eram analfabetos, mas somente 3% dos jovens brancos. Eram toneladas de números, todos no mesmo sentido, e cito apenas alguns.

O projeto que apresentei então tinha a virtude de ser muito simples. Em seu único artigo estabelecia uma quota mínima de 20% para a população negra no preenchimento das vagas nos concursos para investidura em cargos e empregos públicos dos três níveis do Governo, nos cursos de graduação em todas as instituições de educação superior do território nacional e nos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior.

Chovem mundos sobre a violência que é acabar com o sistema de mérito. A nossa proposta não acabava nem tocava no sistema de mérito. Chovem mundos sobre as garantias constitucionais do caput do Art. 5o, de que todos serão iguais perante a lei e do Art. 206, que garante “a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”. A nossa proposta não os ofendia, ao contrário, procurava torná-los realidade. Trata-se, na frase incontornável de Rui Barbosa, de igualar os desiguais. A ação afirmativa, ou discriminação positiva, é um processo consagrado no Direito brasileiro. Está na Constituição: o artigo 170, inciso IX, dá às empresas de pequeno porte tratamento “favorecido”, o artigo 7o, inciso XX, protege o mercado de trabalho para a mulher, o artigo 227 dá “proteção especial” “à criança e ao adolescente”, e o artigo 37, inciso VIII, prevê a reserva de percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência.

Vamos ao artigo 3º, dos objetivos fundamentais da República: “I -- construir uma sociedade livre, justa e solidária; II -- garantir o desenvolvimento nacional; III -- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV -- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. São esses pontos coerentes, podem esses pontos se realizar ao mesmo tempo? Sim, podem. Mas podem se entendermos que a discriminação que neles é vedada é a que impede o bem de todos, se entendermos que uma discriminação positiva é simplesmente a manifestação de solidariedade e justiça do inciso I.

A Ministra Carmem Lúcia Rocha explica: “Todos os objetivos contidos, especialmente, nos três incisos acima transcritos do artigo 3º, da Lei Fundamental da República, traduzem exatamente mudança para se chegar à igualdade.” E o Ministro Marco Aurélio Melo coloca esse raciocínio como uma questão: “Qual é o fim almejado […] senão a transformação social, com o objetivo de erradicar a pobreza, que é uma das formas de discriminação, visando-se, acima de tudo, ao bem de todos, e não apenas daqueles nascidos em berços de ouro?” Cito ainda o Ministro Joaquim Barbosa, um dos raros negros a chegar ao Supremo Tribunal Federal, que defende “que as situações desiguais sejam tratadas de maneira dessemelhante, evitando-se assim o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas pela própria sociedade”.

Para fechar esse ponto, lembro que a Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial diz: “Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais.”

Sei que há um certo ceticismo sobre a eficácia das medidas. Mas, no caso dos Estados Unidos, nos quase quarenta anos que durou o sistema de quotas o número de negros entre os cidadãos de classe média passou de 1 para cada 15 a 1 para cada 3. (Palmas.) Sem dúvida os americanos têm muito o que avançar para chegar à igualdade entre os cidadãos postulada por Jefferson -- que, como sabem, foi senhor de escravos. Entretanto os cidadãos negros exercem hoje um papel muito mais ativo no seio da sociedade norte-americana, e é muito possível que um negro seja eleito, no fim deste ano, Presidente da República.

Vejam a dramaticidade de nosso problema: só há poucos anos o Brasil tem um general negro. No nosso Parlamento são poucos os sucessores de Montezuma, de Sales Torres Homem. No STF está solitário o Ministro Joaquim Barbosa. No Executivo, contamos nos dedos os ministros, e nenhum dos que chegamos à Presidência da República tínhamos mais que uns traços de África no DNA.

Mas a questão dos descendentes de escravo no Brasil deve ser encarada com objetividade. O grave problema é o atraso social, a promoção humana que ficou estagnada, dando aos negros uma posição de marginalidade dentro de nossa sociedade. Os números não representam abstrações. Eles significam realidades intoleráveis: a perpetuação da fome, da miséria, da ignorância, da marginalização social. O maior número de negros entre os mais pobres, os menos educados, os mais desempregados não acontece só porque descendam de pobres, de pouco educados, de desempregados: acontece principalmente porque são negros.

Senhor Presidente, são esses o sentimento, a expressão maior da minha alma, a ligação permanente que tenho com o que significa a raça negra para o Brasil. Nossa literatura passa quase que sem grandes referências negras. São poucas as heroínas negras da Literatura brasileira: Jorge Amado tem Teresa Batista Cansada de Guerra, e eu escrevi uma novela chamada Saraminda, cuja heroína é uma negra. (Palmas.)

Também, para resgatar a memória histórica, tombei a Serra da Barriga, considerei patrimônio nacional aquele lugar sagrado. E na Lei da Fundação Palmares lá está, no art. 2º, o respeito pelas terras dos quilombolas, depois consagrado na Constituição, para assegurar àquelas antigas populações e seus descendentes a propriedade de suas terras.

Nas Nações Unidas, também como Presidente da República, tive a oportunidade de proclamar que éramos um país mestiço e que nos orgulhávamos de ser o segundo país negro do mundo. Naquele tempo também recordei que, em 1961, estava nas Nações Unidas e fui uma das primeiras vozes a se levantar contra o apartheid na África do Sul, tanto me revoltava o que lá acontecia. E, como presidente, rompi relações culturais, políticas e esportivas com a África do Sul enquanto lá existisse o apartaide. (Palmas.)

Senhor Presidente,

Volto à comemoração de hoje. A Abolição é uma obra em aberto. Os 120 anos que completa hoje mostram que pouco, muito pouco, foi feito depois daquela festa inicial. Há muito, há muito o que fazer. Façamos um mea culpa. Nós não realizamos o ideal de igualdade, de justiça social. Nós ainda estamos engatinhando no pagamento de nossa dívida com os descendentes dos escravos. Temos muito o que fazer. Vamos fazê-lo.

Ao estarmos celebrando esta data, estamos também resgatando a lembrança da dívida que ainda temos com a raça negra. É para saudar essa dívida, que estamos aqui falando na abolição, mas falando, sobretudo, nos nossos compromissos com o futuro. Muito obrigado. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/05/2008 - Página 13798