Discurso durante a 74ª Sessão Especial, no Senado Federal

Comemoração dos 120 Anos da promulgação da Lei Áurea no Brasil e da Abolição da Escravatura.

Autor
Mozarildo Cavalcanti (PTB - Partido Trabalhista Brasileiro/RR)
Nome completo: Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • Comemoração dos 120 Anos da promulgação da Lei Áurea no Brasil e da Abolição da Escravatura.
Publicação
Publicação no DSF de 14/05/2008 - Página 13809
Assunto
Outros > HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, PROMULGAÇÃO, LEGISLAÇÃO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, ELOGIO, CONTRIBUIÇÃO, MAÇONARIA, LUTA, COMBATE, INJUSTIÇA.
  • COMENTARIO, OMISSÃO, LEGISLAÇÃO, SITUAÇÃO, ESCRAVO ALFORRIADO, AUSENCIA, PREVISÃO, OBRIGAÇÃO, ESTADO, SOCIEDADE CIVIL, AUXILIO, NEGRO, NEGLIGENCIA, DIREITOS, ESPECIFICAÇÃO, TRABALHO, EDUCAÇÃO, REGISTRO, HISTORIA, PROCESSO, CONCLAMAÇÃO, COMPLEMENTAÇÃO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA.

O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PTB - RR. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Exmº Sr. Presidente desta sessão, Senador Cristovam Buarque, que muito honra esta sessão ao presidi-la; Senador Paulo Paim, que é um símbolo dessa luta, e o foi não apenas na Câmara dos Deputados como é aqui no Senado Federal; Reitor José Vicente, em nome de quem cumprimento os demais componentes da Mesa; Srªs e Srs. Senadores; Srªs e Srs. Deputados; senhoras e senhores; dirijo-me também a todo o povo brasileiro, que nos assiste por meio da TV Senado e nos ouve pela Rádio Senado, especialmente aos negros e às negras do Brasil: quero dizer que me emocionei, no início da fala do Senador Cristovam, quando S. Exª fez menção ao papel histórico que teve a Maçonaria na libertação dos escravos no Brasil, em todo o processo da abolição. Tenho realmente uma honra muito grande, por esse viés, de participar e lutar pelos direitos dos negros no Brasil. Como ficou claro nos discursos dos que me antecederam, muito ainda há por fazer, mas pior seria se não tivéssemos feito nada até aqui.

Também quero dizer que, embora com a pele clara, minha bisavó paterna era negra total - se é que se pode dizer “negro total” ou “não-total” -; portanto, esse meu cabelo um pouco encaracolado tem a ver com essa descendência, da qual muito me orgulho.

Neste dia 13 de maio, há 120 anos, a Princesa-Regente, Dona Isabel - coincidentemente, portanto, uma mulher - assinou, no lugar de seu pai, o Imperador D. Pedro II, a Lei nº 3.353, a Lei Áurea, a lei que deu a libertação aos escravos no Brasil, a lei que aboliu o trabalho escravo em nosso País. Uma lei extremamente simples, Sr. Presidente, como simples, aliás, deveriam ser todos os diplomas legais.

São apenas dois artigos.

Art. 1º É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil;

Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário.

Quero aqui fazer, fora do contexto do que está escrito, uma observação. Se podemos exaltá-la por ser simples demais, temos de lamentar, porque ela deveria ter outros artigos, para dizer como iam ficar os negros depois de libertos. O que fazer com os setecentos e poucos mil negros que, a partir dali, estavam coercitivamente libertados? Nada foi previsto na lei, não havia um plano, não havia nada. Não havia obrigação, portanto, nem da parte do Estado, nem da parte dos ex-senhores ou da sociedade civil, para com os milhares de negros que, a partir daquele momento, estavam libertados. Libertados, como disse o Senador Cristovam Buarque, os braços, mas presos totalmente quanto a como viver dali para frente. Sequer tinham - nessa lei isso não estava previsto -, por exemplo, um palmo de terra para exercerem a agricultura, na qual a maioria deles era experto.

É claro que muitas análises e considerações podem ser feitas a respeito da Lei Áurea. E algumas dessas análises e considerações, possivelmente, cuidariam de diminuir sua relevância. Pode-se alegar, por exemplo, que ela nada mais representou que o coroamento de um processo. Um processo que já vinha bastante maduro, iniciado, na verdade, ainda em 1808, quando o Reino Unido declarou ilegal o tráfico de escravos. Ora, o Reino Unido se notabilizou no mundo, exatamente por fazer o tráfico de escravos. Mas, em 1808, houve essa decisão do Reino Unido de combater, de forma muito forte, o tráfico de escravos.

Com isso, teve início esse processo aqui no Brasil, pelo menos. Um processo que teve continuidade, em nosso território, com uma série de eventos: a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, por meio da qual o Brasil também declarava, como Nação soberana, a ilegalidade do tráfico; a volta ao País de milhares de escravos libertados, para combater na Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870; a Lei do Ventre Livre, promulgada pelo Visconde do Rio Branco, em 1871, que fez livres os filhos de escravos nascidos a partir daquele momento; e a Lei dos Sexagenários, de 1885, a Lei Saraiva-Cotegipe, que beneficiou os negros com mais de 65 anos.

E quero fazer outro comentário. Nessa edição do Jornal do Senado, que é comemorativa, diz-se que apenas dois Senadores, naquela sessão, puseram-se contrários à Lei Áurea, e um deles foi o Barão de Cotegipe. Mas por quê? Porque ele justamente questionou isso: que se estava libertando os escravos, mas não se estava dizendo nada na lei a respeito de como eles iam ficar; que não se estava dizendo sequer que direito ia ter o escravo liberto a partir daquele momento.

A inspirar tantas conquistas, a pregação abolicionista, que se tornou ainda mais forte a partir da década de 1870, teve entre seus expoentes políticos intelectuais do mais elevado estofo, como Joaquim Nabuco e José do Patrocínio. São figuras dessa estirpe que criam, em 1880, a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, o fórum de propagação do pensamento antiescravista.

Sob tal perspectiva, Sr. Presidente, a Lei Áurea seria, então, apenas a conseqüência natural de um conjunto de fatos que se impunham de forma quase avassaladora, amparados na solidez e na inevitabilidade de um bom ideal.

Não deixa de ser verdade. Mas também é verdade, Srªs e Srs. Senadores e senhores e senhoras que hoje abrilhantam esta sessão, que, naquele 13 de maio de 1888, ainda havia 700 mil escravos em nosso País; 700 mil seres humanos que continuavam a ser submetidos às mais odiosas humilhações; 700 mil seres humanos que ganharam, naquele dia, a condição de cidadãos livres.

Falo em cidadãos livres, e isso nos conduz a outra questão seguidamente levantada, com bastante propriedade: a forma cruel como os escravos foram jogados, de uma hora para outra, no mercado de trabalho.

É evidente que não estavam preparados para enfrentar os desafios da vida em sociedade. E não lhes foram proporcionados os meios para fazer frente à nova situação. Não lhes foi assegurado o acesso à educação, sequer a primária. Não lhes foi oferecida qualquer formação profissional. Não lhes foi garantido algum pequeno pedaço de terra, em que pudessem exercer a função de lavrador, como já disse, a que tantos deles estavam acostumados. Enfim, a abolição da escravatura não se fez acompanhar de qualquer medida de apoio aos recém-libertos.

Pelo contrário, Sr. Presidente! O que se viu, por parte do Estado, foi uma política de incentivo à imigração, principalmente de cidadãos europeus. Quer dizer, ao mesmo tempo em que se libertaram os negros escravos, o Estado brasileiro fez uma campanha intensa de imigração de europeus. E os imigrantes - sem condená-los -, por menos preparados que fossem, é claro que competiam em vantagem com os negros mal saídos da escravidão.

Os resultados desse processo se fazem sentir até hoje. De um lado, houve o chamado “branqueamento” da sociedade brasileira. Se os negros e pardos, na época do movimento abolicionista, representavam mais de 60% da população, logo viram essa participação reduzida a pouco mais de 40%. E somente agora, em 2008, os negros e pardos voltam a representar mais de 50% da população brasileira.

Por outro lado, os negros logo se deram conta de que, mesmo livres, continuavam a ser desiguais. Tinham menos oportunidades, fosse no campo educacional, fosse no campo social, fosse no campo profissional. Seguiam ocupando os níveis inferiores da pirâmide de renda e ali haveriam de ficar por muito tempo.

Os números que demonstram essa situação, Srªs e Srs. Senadores, Srªs e Srs. Deputados e ilustres convidados, são do conhecimento de todos nós. O último Censo, por exemplo, detectou que, 112 anos depois de extinta a escravidão, a taxa de analfabetismo dos negros ainda era mais de duas vezes superior à dos brancos.

De modo, Sr. Presidente, que têm fundamento algumas críticas dirigidas ao nosso processo abolicionista - e V. Exª abordou, com muita propriedade, o que se tem por fazer daqui para frente. Primeiro, por ter sido tardio. Segundo, por não ter oferecido aos negros libertos as oportunidades que seriam justas e necessárias.

Mas isso não quer dizer, de jeito algum, que não devamos saudar o 13 de maio com grande entusiasmo. Afinal, “antes tarde do que nunca”. Pior seria se tivéssemos demorado ainda mais para extinguir a chaga da escravidão. E não havia pouca gente que não defendesse a postergação dessa data. Havia muita gente poderosa que defendia essa postergação.

E não demoramos ainda mais, na verdade, por conta de um fator ao qual nossa história, em minha opinião, não dá a devida dimensão.

Refiro-me, senhoras e senhores, ao importantíssimo papel desempenhado pela Maçonaria em todo o processo de abolição da escravatura.

Eu conversava, ainda há pouco, com o ilustre ator Milton Gonçalves, que é maçom, sobre o papel da maçonaria. E aqui está a Senadora Rosalba Ciarlini. Mossoró foi a primeira cidade, no Brasil, a libertar seus escravos. Quem os fez, Senador Cristovam? Os maçons. O Ceará, em seguida. Quem o fez? Os maçons. A maçonaria adotou como lema que, para ingressar na ordem, o maçom não poderia ter escravos; e, se os tivesse, teria que libertá-los. E isso antes da Lei Áurea, muito antes da Lei Áurea. Todos esses vultos que citei aqui foram maçons. E eu me honro muito disso.

Desde o começo, a maçonaria posicionou-se ao lado da razão e do humanismo. Não apenas como uma entidade, mas também pela ação individual dos seus integrantes. Foi, como disse, a exigência: “quer ser maçom? Não pode ter escravos. É maçom? Tem que libertar os escravos”.

Eusébio de Queirós, Ministro da Justiça responsável pela lei que acabou definitivamente com o tráfico negreiro intercontinental, era maçom. O Visconde do Rio Branco, que promulgou a Lei do Ventre Livre, era maçom. Também pertenciam à maçonaria, Sr. Presidente, figuras-chave do movimento abolicionista: Joaquim Nabuco e José do Patrocínio. E era maçom igualmente o Barão de Cotegipe, aquele que, conforme reafirma a edição do Jornal do Senado, patrocinou a Lei dos Sexagenários e, entretanto, na hora da votação da Lei Áurea, argumentou contrariamente, posicionando-se contrariamente porque não via, acompanhado na lei, o day after para os negros.

Todos eles, e muitos outros maçons que o tempo não me permite citar, foram fundamentais para a libertação dos escravos. De modo que, se hoje podemos comemorar 120 anos da Lei Áurea, seria injusto se não louvássemos a participação desses notáveis brasileiros no processo que a tornou possível.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, em nosso País - e isso é inegável -, ainda não atingimos, plenamente, os idéias da igualdade racial. Mas os valores da maçonaria, aqueles mesmos que inspiraram a pregação abolicionista - humanismo, democracia, justiça social, liberdade, igualdade, fraternidade, aperfeiçoamento intelectual -, podem e devem continuar a nos inspirar, para que esse objetivo seja alcançado no mais curto espaço de tempo.

Quero, portanto, Sr. Presidente, ao encerrar a minha fala, homenagear todos os negros e negras do Brasil, e dizer que a maçonaria continua, sim, a luta por essa transformação social que ainda precisa ser feita.

Tenha certeza, Senador Paulo Paim, tenha certeza, Senador Cristovam Buarque, que fez essa referência, de que nós trabalhamos, muitas vezes em silêncio demais, outras vezes de maneira discreta, que é confundida como se fosse secreta - e eu sou dos maçons que acho que devemos fazer o contrário. Estamos no século XXI, temos que ser uma sociedade mais aberta. Não temos nada para esconder, nada para esconder.Toda a nossa história, desde o início da nossa instituição, foi sempre a de combater as tiranias, sejam de que ordem fosse, sempre foi a de combater o despotismo, sempre foi a de combater o sectarismo. Portanto, vamos continuar nessa luta, Senador Cristovam, Senador Paim, meu caro Reitor. Podem contar com a maçonaria, porque estaremos de pé e à ordem para cumprir mais essa tarefa.

Muito obrigado. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/05/2008 - Página 13809