Discurso durante a 74ª Sessão Especial, no Senado Federal

Comemoração dos 120 Anos da promulgação da Lei Áurea no Brasil e da Abolição da Escravatura.

Autor
Aloizio Mercadante (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Aloizio Mercadante Oliva
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • Comemoração dos 120 Anos da promulgação da Lei Áurea no Brasil e da Abolição da Escravatura.
Publicação
Publicação no DSF de 14/05/2008 - Página 13841
Assunto
Outros > HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, LEGISLAÇÃO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, ANALISE, LUTA, LIBERDADE, NECESSIDADE, CONSCIENTIZAÇÃO, COMBATE, DISCRIMINAÇÃO, IMPLEMENTAÇÃO, POLITICA, COMPENSAÇÃO, HISTORIA, EXPLORAÇÃO, NEGRO, REFORÇO, INCLUSÃO, REDUÇÃO, DESIGUALDADE SOCIAL, ESPECIFICAÇÃO, DEFESA, COTA, ENSINO SUPERIOR, COMENTARIO, OCORRENCIA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, BRASIL.

O SR. ALOIZIO MERCADANTE (Bloco/PT - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Bom-dia a todos.

Quero, inicialmente, saudar José Vicente, Reitor da Universidade Zumbi dos Palmares; o Frei David, que honra esta Casa, com sua longa luta e representação da CNBB; a poeta, sempre poeta, Elisa Lucinda, essa alegria exuberante, que, seguramente, vai nos encantar nesta manhã; saúdo ainda Carlos Moura, ex-Presidente da Fundação Palmares e Secretário-Geral da CNBB; saúdo os nossos queridos Senadores Paulo Paim e Cristovam Buarque, que, comigo, são autores desta mais do que justa referência histórica nesta sessão que estamos realizando.

Começaria dizendo, Srªs e Srs. Senadores e todos aqueles que nos acompanham nesta data histórica, que, em 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel assinou uma lei que tem um dos textos mais simples e diretos de que se tem notícia na história do Brasil.

Tenho, inclusive, em meu gabinete, um texto de próprio punho de Joaquim Nabuco - por sinal, acho que foi o Senador Cristovam quem trouxe o original de Pernambuco. Sempre, quando estamos negociando uma lei mais complexa, remeto-me a ela, porque, em apenas três linhas e dois artigos:

Art. 1º É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil”

Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário.

E, com essa simplicidade, tivemos, seguramente, a lei de maior alcance social da nossa História.

Trata-se, a partir da conquista dessa lei, de uma longa luta, de uma complexa luta que dividiu e ainda divide profundamente a sociedade brasileira.

Trata-se de uma luta contra o racismo e a escravidão, que, de certa forma, sintetiza e simboliza o combate a todas as formas de desigualdade e exclusão que marcam e marcaram a estrutura social brasileira.

Essa luta não foi e não é fácil. Relativamente à escravidão, é preciso que se considere que ela penetrou em todos os meandros da vida social no Brasil. Não eram apenas os grandes latifundiários e barões do café e do açúcar que tinham escravos. Os comerciantes e burocratas urbanos também os tinham em quantidade. Inclusive padres e igrejas tinham os seus. Há relatos de que negros alforriados e mesmo escravos também possuíam seus escravos. A escravidão penetrava com muita profundidade em todas as relações sociais em nossa sociedade.

Assim, foi preciso muito para chegar até aquele texto singelo. Foi preciso que Zumbi dos Palmares, martirizado em 20 de novembro de 1695, data em que se celebra o Dia da Consciência Negra, desse a sua vida por uma liberdade efêmera. Foi necessário que figuras do porte de José de Patrocínio, Joaquim Nabuco, Luis Gama e Rui Barbosa se dedicassem, durante anos, à difícil causa da abolição. Foi preciso que, ao longo de décadas, se digladiassem esses lutadores em torno do tema. Foi preciso que a Inglaterra pressionasse fortemente, insistentemente, recorrentemente, o Império brasileiro. Foi necessário que Castro Alves bradasse:

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus,

Se eu deliro... ou se é verdade

Tanto horror perante os céus?!...

            Contudo, tal luta não se encerrou com a Lei Áurea, embora esse texto legal seja seu grande marco. As desigualdades raciais, de classe, regionais e de gênero permanecem e precisam ser continuamente combatidas. A luta dos negros e de todos os excluídos permanece tão atual como nos tempos da causa abolicionista. E é uma luta de todos nós.

Como bem afirmou o historiador José Murilo de Carvalho:

A batalha da abolição, como perceberam alguns abolicionistas, era uma batalha nacional.Esta batalha continua hoje e é tarefa da nação. A luta dos negros, as vítimas mais diretas da escravidão, pela plenitude da cidadania, deve ser vista como parte desta luta maior. Hoje, como no século XIX, não há possibilidade de fugir para fora do sistema. Não há quilombo possível, nem mesmo cultural. A luta é de todos e é dentro do monstro.

Pois bem, esse monstro, o monstro do racismo e da desigualdade, é muito forte e resiste com unhas e dentes afiados a todas as tentativas de combate aos privilégios e às injustiças que maculam a nossa sociedade.

Tal resistência é diretamente proporcional aos esforços que são feitos para tornar a estrutura social brasileira mais equânime e justa.

Assim, hoje em dia não faltam apologistas da desigualdade que criticam as políticas sociais do Governo Lula, como o Bolsa Família e o ProUni, que vêm diminuindo notavelmente as assimetrias sociais no Brasil, e, acima de tudo, o sistema de quotas para afro-descendentes nas universidades, destinado a dar oportunidades aos que nunca as tiveram em razão de sua cor.

Mas o monstro não é apenas feroz e resistente. Ele é também muito ardiloso. Jamais mostra sua feia cara. Tenta disfarçar-se com a máscara de argumentos aparentemente racionais, justos e bem-intencionados, os famosos argumentos da perversidade, futilidade e ameaça. De fato, esses são os argumentos básicos que, de acordo com Albert O. Hirschman, os conservadores utilizam para criticar políticas que podem introduzir mudanças progressistas na ordem social.

Como tais políticas perseguem, em geral, objetivos nobres, os conservadores não podem a elas se opor frontalmente. É necessário desqualificá-las. Assim, tenta-se mostrar que elas produzem efeitos inversos aos pretendidos (argumento da perversidade); ou que elas não têm resultados (argumento da futilidade); ou ainda que tais políticas põem em risco outras conquistas (argumento da ameaça). No caso das políticas de combate ao racismo, particularmente o sistema de quotas, os apologistas da desigualdade argumentam que tal sistema cria identidades e conflitos raciais que antes não existiam, dada a miscigenação racial brasileira (argumento da perversidade), que as quotas não vão dar resposta adequada às desigualdades raciais e sociais (argumento da futilidade), e que tal política, ao criar animosidade entre negros e brancos no Brasil, acabará por comprometer conquistas sociais e raciais importantes (argumento da ameaça).

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores e demais convidados, é inacreditável que no Brasil do início do século XXI ainda se use o surrado argumento da miscigenação e da “democracia racial” para tentar criticar a implantação de políticas sérias de combate ao racismo. Esses apologistas, requentando idéias mal digeridas de Gilberto Freyre, argumentam que, como no Brasil, ao contrário de outros países, como os Estados Unidos, a colonização se deu com grande miscigenação de raças, não há possibilidade objetiva de diferenciar a origem racial de indivíduos e segmentos sociais. Portanto, o racismo é uma impossibilidade objetiva no Brasil, já que aqui não há raças distinguíveis.

Ora, os cientistas que lidam com pesquisas do genoma humano fizeram, há alguns anos, uma descoberta fascinante: as diferenças genéticas presentes nas populações africanas são mais amplas e profundas do que as diferenças genéticas que há entre as populações da África e as populações de outras regiões do Planeta (Europa, por exemplo). Assim, alguns geneticistas hoje afirmam que as raças, tal como as entendemos, simplesmente não existem.

A noção de raça não teria qualquer base científica e objetiva, nem no Brasil nem em qualquer outra região do Globo. Nem em país miscigenado nem em país de baixa miscigenação, pois a raça humana é, dentro dessa perspectiva, por si, bastante miscigenada e geneticamente indistinguível, a não ser por detalhes genômicos irrelevantes.

A grande e fundamental miscigenação teria ocorrido há dezenas de milhares de anos no continente africano.

Entretanto, daí não segue que não exista racismo. Trata-se de dois fenômenos distintos. Uma coisa é a conformação objetiva das raças; e outra, de natureza diferente, é o racismo. O racismo é um processo social e cultural (no sentido antropológico do termo) que diz respeito à percepção subjetiva negativa que um determinado grupo social tem ou pode ter de outro. Nesse processo essencialmente histórico e cultural, fatos objetivos e científicos são irrelevantes. É certo que, no Brasil, a miscigenação dos, assim digamos, distintos fenótipos da raça humana tornou mais complexa e difícil a construção dessas percepções. Mas não as impediu. Lembre-se, de novo, que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão e que tal prática marcou profundamente a nossa estrutura social.

Manifestações de racismo ocorrem a todo o momento no Brasil, e as estatísticas confirmam que os afro-descendentes (ou aqueles que são percebidos como tal, já todos os seres humanos são, a rigor, afro-descendentes) ocupam, de um modo geral, as posições inferiores em nossa estrutura social. Assim, os brancos que não têm instrução ou menos de um ano de instrução representam apenas 11,8% do total, ao passo que os negros nas mesmas condições representam mais do dobro: 26,2%. Ao mesmo tempo, os negros, que somam cerca de 45% da população brasileira, representam 64% dos pobres do Brasil e 69% dos indigentes.

O fato de que nos lembremos, individualmente, de políticos, juízes e lideranças negros confirma tal inferioridade, pois costumamos recordar as exceções, e não a regra. 

Essa notável desigualdade entre as raças no Brasil só pode ser explicada pelo racismo, ideologia ativa e poderosa que impede a ascensão dos negros na nossa sociedade excludente e profundamente injusta.

Neste momento em que comemoramos 120 anos da Abolição, creio ser relevante recordar uma grande obra de um notável brasileiro. Refiro-me à Integração do Negro na Sociedade de Classes, de Florestan Fernandes. Essa obra, publicada em 1965, representa mudança de paradigma no entendimento das diferenças raciais no Brasil e da relação dessas diferenças com a construção de uma sociedade capitalista. Florestan, com rigor empírico e teórico, demonstra como a sociedade de classes brasileira criou e cria barreiras à ascensão social do negro e reproduz, em seu interior, a arcaica ordem racial herdada do regime escravagista.

É uma característica de nossa estrutura social moderna a reprodução de traços arcaicos patrimonialistas e escravagistas, tanto na política quanto nas relações sociais. Nisso, não há nada de surpreendente. O que surpreende é que, 120 anos após a Lei Áurea, ainda haja gente disposta a fazer a apologia do monstro a que se referia José Murilo de Carvalho. E com argumentos tão fracos e inconsistentes. Castro Alves, se vivo estivesse, com certeza bradaria de novo: “Se deliro ou se é verdade...”.

Sr. Presidente, nesta data, temos ainda pouco a comemorar. Somos um a sociedade extremamente desigual, tanto do ponto de vista social quanto do ponto de vista racial. Mas podemos nos orgulhar de estamos implantando políticas sérias e conseqüentes de combate às desigualdade sociais e raciais. Estamos, finalmente, no rumo histórico correto.

Tais políticas não pertencem a este Governo. Pertencem à sociedade brasileira e, num sentido mais profundo, à democracia brasileira.

Por isso, a melhor homenagem que podemos prestar neste dia aos negros e excluídos do Brasil é apoiar e fortalecer essas políticas de inclusão.

Não se trata somente de compensar os negros brasileiros pelo horror do seu passado escravista, mas de reunir brancos e negros, pobres e ricos, no futuro radioso de uma democracia efetivamente racial e social, que ainda precisa ser construída com apoio de todos.

E, ao final desse longo e difícil processo, que começou, há 120 anos, e que não findará tão cedo, a Lei Áurea fará sentido, e seremos todos, de todas as raças, livres da escravidão.

Portanto, todo apoio à política de cotas.

         Espero que esse manifesto, tão oportuno quanto relevante, possa clamar junto ao Supremo Tribunal Federal; e que esse dia, essa reflexão dos 120 anos da abolição possa, definitivamente, também contribuir para que mantenhamos essas políticas.

Quero terminar, relembrando as palavras de Joaquim Nabuco, que escreve:

Que é o abolicionismo.

A obra do presente e a do futuro

[...]

A luta entre o abolicionismo e a escravidão é de ontem, mas há de prolongar-se muito, e o período em que entramos há de ser caracterizado por essa luta.

Cento e vinte anos depois, viva Joaquim Nabuco!

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/05/2008 - Página 13841