Discurso durante a 85ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Homenagem ao Senador Jefferson Péres, discorrendo sobre o excesso na edição de medidas provisórias, um dos institutos que o parlamentar combatia.

Autor
Geraldo Mesquita Júnior (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AC)
Nome completo: Geraldo Gurgel de Mesquita Júnior
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. MEDIDA PROVISORIA (MPV).:
  • Homenagem ao Senador Jefferson Péres, discorrendo sobre o excesso na edição de medidas provisórias, um dos institutos que o parlamentar combatia.
Aparteantes
Heráclito Fortes.
Publicação
Publicação no DSF de 27/05/2008 - Página 16426
Assunto
Outros > HOMENAGEM. MEDIDA PROVISORIA (MPV).
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, JEFFERSON PERES, SENADOR, ELOGIO, ATUAÇÃO PARLAMENTAR, LUTA, COMBATE, ABUSO, UTILIZAÇÃO, MEDIDA PROVISORIA (MPV).
  • COMENTARIO, EFEITO, ABUSO, UTILIZAÇÃO, MEDIDA PROVISORIA (MPV), DIVERSIDADE, PRESIDENTE DA REPUBLICA, EXCESSO, CONCENTRAÇÃO, PODER, EXECUTIVO, DESEQUILIBRIO, PODERES CONSTITUCIONAIS, DESVALORIZAÇÃO, ATUAÇÃO, LEGISLATIVO, IMPEDIMENTO, EFICACIA, TRAMITAÇÃO, PROJETO, INTERESSE, POPULAÇÃO.
  • CRITICA, OMISSÃO, LEGISLATIVO, EFEITO, MANUTENÇÃO, CONDUTA, EXECUTIVO, ABUSO, UTILIZAÇÃO, NORMA JURIDICA, DEFESA, REJEIÇÃO, CONGRESSO NACIONAL, MEDIDA PROVISORIA (MPV), DESRESPEITO, PRINCIPIO CONSTITUCIONAL, RELEVANCIA, URGENCIA, VIABILIDADE, TRAMITAÇÃO, PAUTA, PROJETO, VOTAÇÃO.

O SR. GERALDO MESQUITA JÚNIOR (PMDB - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, uma das grandes preocupações do Senador Jefferson Péres, neste Senado Federal, sempre foi com relação às medidas provisórias, Senador Mão Santa. Lembramos a sua posição firme e persistente no sentido de esta Casa e o Congresso Nacional decidirem, de uma vez por todas, essa questão tormentosa. Coincidentemente, na sexta-feira, eu me preparara para proferir um discurso sobre esse assunto.

E trago ele hoje, como uma homenagem ao Senador Jefferson Péres, pela sua luta travada durante tanto tempo aqui, em nossa companhia, contra o abuso da edição de medidas provisórias e contra o seu próprio instituto. Portanto, quero que esta Casa considere como uma humilde homenagem que faço ao Senador Jefferson Péres trazer hoje aqui um tema que era objeto de sua preocupação permanente e constante nesta Casa.

Se a Constituição da República promulgada em 1988 é um marco definitivo na implantação da democracia representativa de direito no Brasil, ela trouxe consigo não poucas questões para a sociedade elucidar ao longo dos anos que se passaram. Algumas delas têm sido enfrentadas, e a elas dada uma solução, por vezes discutível, como, por exemplo, a demarcação e a implantação das terras indígenas. Todavia, nossa Carta Magna guarda, dentro de si, incongruências que incapacitam nosso sistema democrático ao funcionamento harmônico e equilibrado.

Na raiz dessa incapacidade, há questões de toda ordem, todas fundadas, em sua essência, na histórica vocação autoritária e centralizadora do Poder Executivo brasileiro, principalmente o federal. Essa é uma herança que remonta aos nossos tempos de colônia, quando o absolutismo real era a prática sem contraponto, até o fim do período das cortes portuguesas no Brasil.

De lá para cá, vivemos tentando dar corpo e forma a uma democracia representativa que acaba sempre esbarrando na voracidade com que os Governos se aferram às prerrogativas de comandar o País, sem desejo de compartilhar com outros agentes, ou Poderes, a definição de prioridades e projetos de sociedade e de governo. Voracidade que aumenta quando se trata do direito de gerir os recursos do orçamento público.

Em 1988, com a promulgação da Constituição Cidadã, surgiu a ilusão de que, especificando minuciosamente os direitos individuais e coletivos dos brasileiros, esmiuçando as atribuições dos Poderes da República e constitucionalizando matérias até então objeto de legislação infraconstitucional, estaríamos resolvendo a estrutura democrática do País. A ilusão não demorou muito, e a realidade se impôs com as sucessivas propostas de emenda à Constituição feitas por governos e Parlamentares, sobre todos os aspectos. O ideal escrito no papel não se mostrou real na prática do dia-a-dia.

Uma questão, em particular, mostrou-se especialmente penosa para a harmonia dos Poderes e para o bom funcionamento da nossa democracia: exatamente a prerrogativa de legislar do Poder Executivo, por meio da edição de medidas provisórias pelo Presidente da República.

Essa espinhosa questão tem anteposto cada vez maiores obstáculos ao funcionamento do Congresso Nacional e gerado discórdia entre Legislativo e Executivo.

A concentração das competências e dos recursos públicos na União, aliada à hipertrofia do Executivo, principalmente na área federal, tem envenenado as relações com os demais Poderes, principalmente com o Legislativo.

Iniciado no período do regime militar, quando o Decreto-Lei se tornou um fortíssimo instrumento de controle do Legislativo pelo Executivo, o processo continuou com a inscrição do instituto da medida provisória na Constituição Federal de 1988.

Na verdade, como todos sabemos, a proposta se inscrevia na ótica da implantação do regime parlamentarista no Brasil, inspirando-se, nesse quesito, no modelo italiano. Lá, o Governo, saído da maioria do Congresso, pode propor medida provisória. Entretanto, ao fazê-lo, pode jogar seu futuro político junto com a proposta que, se derrubada, pode levar consigo todo o gabinete ministerial, inclusive o Primeiro-Ministro. No Brasil, com a manutenção do presidencialismo, conforme proposta do então Senador Humberto Lucena, acabamos ficando com um quasímodo embutido em nossa Carta Magna. Um instrumento típico de sistemas parlamentaristas vigendo dentro de um regime presidencialista. Com isso, deixamos nas mãos do Executivo um poder que acaba por estrangular as prerrogativas do Legislativo.

Quisemos colocar um freio no poder de legislar do Presidente, transformando a aprovação automática, por decurso de prazo, dos Decretos-Lei da ditadura em perda de eficácia das MPs, caso não convertidas em lei pelo Congresso Nacional.

No período imediatamente posterior à promulgação da Constituição Federal, o sistema funcionou, pois o Parlamento votava as medidas provisórias recebidas. Todavia, quando do pacote econômico do então Presidente Fernando Collor, recheado de medidas provisórias, criou-se uma nova situação que deteriorou e desvirtuou o sistema previsto na Constituição. As medidas provisórias não votadas pelo Congresso no prazo constitucional foram reeditadas pelo Governo, fato inédito até aquele momento.

Por que o Governo se permitiu tal atitude e dela fez prática usual a partir de então? Primeiramente, por uma certa omissão do Parlamento, que, para não se comprometer com as polêmicas medidas editadas pelo Presidente da República, simplesmente deixou de votá-las. O Congresso preferiu deixar todo o ônus nos ombros do Governo. Além disso, o Presidente, na falta de pronunciamento do Congresso, simplesmente reeditou as medidas provisórias, atropelando o espírito da Constituição, que visava, com a derrubada das medidas propostas, extinguir seu efeito. O Congresso viu-se preso numa artimanha de não votar pela esperteza da Presidência da República.

Para complicar ainda mais o cenário, o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional a reedição das medidas provisórias. O que a lei não veda é permitido - esse foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Estava aberta a porteira para que o Poder Executivo tornasse as medidas provisórias um poderosíssimo instrumento de legislação e de governo. O Congresso Nacional viu-se então manietado e incapaz de reverter o quadro já que as maiorias parlamentares e governistas não deixavam que fosse feita qualquer modificação que pudesse reduzir o poder do Presidente.

Com a capacidade de executar o orçamento da União, inteiramente subordinada aos desígnios do Executivo, e com a dependência de Estados e Municípios dos repasses do Governo Federal, os Parlamentares ficavam muito mais preocupados em atender aos interesses locais e regionais por meio da intervenção junto a Ministérios em favor da liberação de verbas. A perspectiva de legislar sobre as grandes questões nacionais, prerrogativa das duas Casas do Congresso, se viu postergada a segundo plano, diante da dependência do Poder Executivo. O Congresso se apequenou e permaneceu atrelado ao ritmo e aos desígnios ditados pela Presidência da República.

As recorrentes críticas das tribunas da Câmara e do Senado contra a manipulação da liberação de verbas, condicionada a votações de interesse do Executivo, nunca vieram acompanhadas da efetiva alteração da Constituição de modo a reequilibrar o peso dos Poderes.

Não bastasse a reedição das MPs, a Presidência da República se viu livre para, nas reedições, alterar-lhes o conteúdo e inserir-lhes novas matérias, em publicações sucessivas, muitas vezes mensais, o que estabeleceu um quadro de insegurança jurídica flagrante.

Na tentativa de modificar esse estado de coisas, no ano 2001 o Congresso publicou a Emenda Constitucional nº 32, que estabeleceu os dispositivos de votação em separado em cada Casa do Congresso e do bloqueio das pautas da Câmara e do Senado em caso de a medida provisória submetida pelo Governo não ser votada no prazo de 45 dias de sua publicação.

Ao entusiasmo do Senador Fogaça, então relator da matéria, sucedeu-se a triste realidade de que o tiro saiu pela culatra, não para o Executivo, mas para o próprio Congresso Nacional.

À idéia de que o trancamento de pauta iria frear o ímpeto dos governos contrapôs-se a dura realidade de um Congresso punido com o quase permanente trancamento de sua pauta por uma enxurrada de MPs que não cessam de ser editadas pelo governo e que não se consegue votar em tempo hábil. E esse ciclo perverso só tem se agravado durante os últimos anos. Praticamente qualquer matéria é objeto de medida provisória, e o Congresso sequer utiliza o quase único instrumento de que dispõe para barrar essa avalanche - a rejeição das MPs por falta de urgência e relevância, os termos do art. 62 da Constituição.

Além disso, Sr. Presidente, os prazos acabam sendo, sistematicamente, consumidos na tramitação da matéria na Câmara dos Deputados, restando ao Senado Federal apenas uns poucos dias para avaliar, a toque de caixa, matérias muitas vezes complexas.

O Congresso Nacional, em ambas as Casas, vive, hoje, uma total falta de autonomia para construir sua pauta de discussões e votações, pois está permanentemente atropelado pela urgência de votação de MPs em final de prazo de tramitação. O Congresso se vê à mercê dos interesses do Governo, sem poder ou querer reagir, enquanto o Executivo continua abusando do poder de legislar por intermédio das Medidas Provisórias, sem qualquer freio constitucional eficaz.

É chegada a hora, Srªs e Srs. Senadores, de darmos um fim a esse estado de coisas. Para o bem de nossa democracia, devemos rever o instituto da medida provisória e as condições de seu uso pelo Poder Executivo.

É evidente o desmando existente no uso do instrumento pela Presidência da República. Nem os aliados diretos do Governo conseguem mais conviver com essa situação. O que dizer, então, do Poder Legislativo como um todo?

Devemos, urgentemente, preparar uma proposta de emenda constitucional que corrija e discipline o uso de instrumento da Medida Provisória. Ainda mais quando o Poder Executivo dispõe, também, da prerrogativa da urgência constitucional para a tramitação de projetos de seu interesse. Não deveríamos, então, extinguir a MP, ficando, apenas, com a urgência constitucional? Parece-me que essa questão é interessante e deve ser cogitada nesta Casa. Isso porque, para a ocorrência de situações que reclamam medidas emergenciais, como as previstas no § 3º, do Art. 167 da Constituição de 1988, o Poder Executivo já está autorizado a adotar medidas provisórias, com força de lei, propondo abertura de crédito extraordinário para fazer face a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62.

Assim, no caso de cogitarmos de manter o instituto da Medida Provisória na Constituição, a PEC a ser proposta deve estabelecer autorização para o Poder Executivo adotar medidas provisórias tão-somente para os casos previstos no § 3º do Art. 167, da Constituição de 1988, alterando-se por completo o Art. 62, com vistas a acomodar nova previsão legal.

Sr. Presidente, este verdadeiro imbróglio criado com o uso e abuso de medidas provisórias reflete, na verdade, uma distorção muito mais profunda no sistema político nacional, qual seja, a falta de solidariedade entre o Presidente da República e uma base parlamentar que tenha com ele compromisso programático e lhe dê sustentação no Congresso, a partir de um programa mínimo de governo. Sem dúvida, isso enfraquece o Legislativo e fortalece o poder discricionário do Executivo. O Executivo lida com o Parlamento na base da barganha, quase no caso a caso, e o Legislativo vive da mendicância de algo que eu chamaria de favores dos Ministérios, como a liberação de verbas para seus redutos eleitorais. Resta muito pouco espaço para o trabalho de legislar em favor da construção de um projeto de sociedade para o Brasil.

Acrescente-se que o sistema partidário-eleitoral piora o caos, já que não solidariza eleitos e respectivos partidos a quaisquer programas de governo ou a compromissos de sustentação no Parlamento. Daí a enorme ciranda de Parlamentares entre partidos após as eleições, ao sabor de conveniências momentâneas. Foi preciso que o Tribunal Superior Eleitoral agisse para coibir, em parte, essa prática lesiva aos interesses da democracia representativa.

Enfim, Srs. Senadores, depois de 20 anos do regime constitucional de 1988, já temos uma visão bastante clara das deficiências do modelo escolhido àquela época e podemos tentar corrigi-lo, não segundo os interesses de governos ou Parlamentares, mas no interesse da construção de uma Nação brasileira regida por sólido, consistente e coerente regime de democracia representativa em Estado de direito.

Urge a tomada da audaciosa decisão política de rever as incongruências de nossa Constituição e de dar ao Brasil a estabilidade político-partidária e o equilíbrio entre os Poderes da República que consolidem nossa estrutura democrática.

Sr. Presidente, era o que tinha a dizer neste momento. Muito obrigado.

Concedo, Senador Heráclito, com o maior prazer, o aparte a V. Exª. Desculpe-me não tê-lo visto.

O Sr. Heráclito Fortes (DEM - PI) - Senador Geraldo Mesquita, fique tranqüilo, pois deixei para aparteá-lo no final. V. Exª fez um discurso hoje que prendeu a todos nós, que observamos nos seus mínimos detalhes, porque é um discurso com começo, meio e fim. Então V. Exª aborda, com muita propriedade, o mal que o Brasil tem sofrido com as medidas provisórias não pela sua essência, mas pelo abuso, pelo desrespeito com a vulgarização dessas medidas que têm sido apresentadas, na grande maioria, sem nenhum caráter de urgência, sem nenhuma calamidade, sem nada que justifique ou apenas para atender caprichos do Governo ou com a deliberação de trancar a pauta do Congresso e, com isso, travar o seu andamento, as suas atividades. É lamentável. V. Exª, no início, fez uma referência a uma figura cuja ausência todos nós, a partir de agora, vamos ter, em primeiro lugar, que nos acostumar a conviver; em segundo, vamos ter que reconhecer a falta que fará aqui, pela trincheira de luta que montou ao longo de seus dois mandatos. Refiro-me ao Senador Jefferson Péres. Associo-me a V. Exª, e esta Casa, com certeza, passará um grande período lamentando a sua ausência. Muito obrigado.

O SR. GERALDO MESQUITA JÚNIOR (PMDB - AC) - Eu que agradeço, Senador Heráclito Fortes, e, como V. Exª diz, creio que o Senador Jefferson Péres preferiria, no rol de tantas homenagens, que nós aqui decidíssemos, finalmente, tratar dessa questão de peito aberto, cara a cara, eliminando esse instituto da nossa Constituição ou dando-lhe um regramento que permita uma relação de respeito entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo neste País.

Creio que essa seria uma das grandes homenagens a serem prestadas ao Senador Jefferson Péres, que, como eu disse no início do meu pronunciamento - e fiz o pronunciamento em sua homenagem, inclusive -, essa era das bandeiras que ele advogava nesta Casa. E creio que homenagem sincera este Parlamento prestaria se disciplinasse, de uma vez por todas, ou a questão da eliminação do instituto das medidas provisórias na nossa Constituição ou seu regramento severo, para que, como disse, possamos ingressar num período em que haja mais respeito nas relações entre Poder Executivo e Poder Legislativo no nosso País.

            Sr. Presidente, muito obrigado.

            Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 27/05/2008 - Página 16426