Discurso durante a 88ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Problemas decorrentes do aumento no número de automóveis em circulação.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA DE TRANSPORTES.:
  • Problemas decorrentes do aumento no número de automóveis em circulação.
Aparteantes
Pedro Simon, Romeu Tuma.
Publicação
Publicação no DSF de 29/05/2008 - Página 17006
Assunto
Outros > POLITICA DE TRANSPORTES.
Indexação
  • QUESTIONAMENTO, FALTA, CONSCIENTIZAÇÃO, BRASILEIROS, INDICIO, AGRAVAÇÃO, PROBLEMA, TUMULTO, PAIS, RESULTADO, MELHORIA, INDICE, PROGRESSO, DESENVOLVIMENTO NACIONAL, ESPECIFICAÇÃO, AUMENTO, NUMERO, AUTOMOVEL, ENGARRAFAMENTO, TRANSITO, POLUIÇÃO, TEMPERATURA, MORTE, USUARIO.
  • COMENTARIO, SITUAÇÃO, BRASILIA (DF), DISTRITO FEDERAL (DF), COMEMORAÇÃO, AUMENTO, PRODUÇÃO, QUANTIDADE, AUTOMOVEL, FALTA, ATENÇÃO, AGRAVAÇÃO, ACIDENTE DE TRANSITO, ENGARRAFAMENTO, MORTE, APREENSÃO, POPULAÇÃO.
  • DEFESA, NECESSIDADE, REVOLUÇÃO, EDUCAÇÃO, CONCEITO, PROGRESSO, PAIS, VIABILIDADE, TRANSFORMAÇÃO, SOCIEDADE, MELHORIA, QUALIDADE DE VIDA.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs Senadoras e Srs. Senadores, os jornais, ultimamente, todos sabemos, têm tido muitas notícias que inquietam, preocupam e até entristecem a gente. Mas há uma coisa que poucos percebem, talvez: mesmo as notícias boas que recebemos carregam tragédias dentro delas. Nós perdemos a perspectiva de perceber o que há de problema mesmo nas vitórias que nós temos.

            Quando, por exemplo, comemoramos como uma grande coisa - que realmente é - o aumento do Produto Interno Bruto, o aumento da renda, a gente deixa de perceber que, dentro daquele aumento da renda e do Produto Interno Bruto, está a destruição das florestas e das reservas naturais, está o aumento dos problemas de violência na sociedade, porque cresce sem distribuir e, aumentando a desigualdade, há um incentivo para aumentar a violência.

            Quando a gente comemora - aliás, comemorava, porque ultimamente não tem havido - os saldos na balança comercial, a gente não percebe que parte do dinheiro, dos dólares que vêm de fora - que temos de comemorar, sim, porque vêm do turismo -, têm lá dentro, embutidos, escondidos, recursos que vêm para cá para explorar a prostituição e até mesmo a prostituição infantil.

            Nós perdemos a capacidade de ver o problema nacional em toda a sua integridade. Nós deixamos de ver que, dentro dos aspectos positivos, há, sim, indicadores com que nós precisamos tomar cuidado, para descartá-los, eliminá-los, e deixar só a parte positiva.

            Entre esses indicadores, talvez, Senador Tuma, aquele que é positivo e mais mostra a sua tragédia é o aumento do número de automóveis. É claro que o aumento do número de automóveis representa o aumento do Produto Interno Bruto; claro que representa o aumento da renda; claro que representa o acesso de uma parcela de classe média mais baixa ao seu automóvel próprio, mas a gente esquece que é esse aumento de automóveis que faz com que o Brasil tenha 50 milhões e Brasília tenha um milhão de automóveis, comemorado no último dia 20 de maio. A gente esquece que essa grande comemoração de um milhão de automóveis, numa cidade que tem dois milhões de habitantes, que essa vitória carrega certos problemas que a gente precisa analisar.

            Por exemplo, é em função desse aumento de automóveis que, hoje, a gente tem nesta cidade o que ninguém imaginava: a angústia do engarrafamento de trânsito. Ninguém imaginava. Quando esta cidade foi desenhada, a idéia era de que nem sinal de trânsito seria necessário. Hoje, o que a gente vê é que não apenas há uma quantidade de sinais de trânsito, mas, em grande parte, nós temos engarrafamentos que impedem a livre circulação dos automóveis, que vieram para a gente conseguir mobilizar-se de uma maneira mais rápida.

            A gente esquece que, por trás da comemoração de um milhão de automóveis em Brasília, a gente tem uma contribuição da nossa cidade para o aumento da poluição, para o aquecimento global. E a gente esquece, ainda mais, a quantidade de vítimas fatais imediatas, que são as que aparecem como vítimas fatais no instante em que o acidente acontece, porque não aparecem as vítimas fatais depois, nos hospitais. A gente não percebe que o aumento da produção de automóveis, o aumento da quantidade de automóveis, essa vitória da economia, da satisfação das famílias, carrega tragédias. A gente não percebe que, hoje, o Distrito Federal é um lugar onde os acidentes de trânsito se transformaram em algo normal, e não de um morto a mais, como era antes, mas, às vezes, de três de uma única vez.

            A gente não percebe que a civilidade desaparece quando, só agora, nesses últimos meses, 600 motoristas foram presos por estarem embriagados, mas presos e soltos imediatamente. E, quando 600 são identificados, é porque tivemos alguns milhares de pessoas embriagadas dirigindo automóveis.

            Não percebemos que o desenvolvimento brasileiro, os indicadores de progresso carregam tragédias dentro dele. O problema de trânsito, Senador Botelho, é no Brasil uma guerra que a gente vive. É uma guerra em que centenas de vítimas nós temos todas as semanas no território brasileiro; em que alguns milhares de pessoas nós temos ao longo do ano. E a gente não percebe que essa tragédia vem do tipo de desenvolvimento que nós escolhemos, do tipo de progresso que nós escolhemos. O progresso, Senador Mão Santa, apenas da produção, o progresso apenas do Produto Interno Bruto, o progresso apenas do consumo, esquecendo que deveria ser também indicador de progresso uma natureza bem cuidada; deveria ser também indicador do progresso um transporte público eficiente, e não apenas um transporte público com mais automóveis. No começo do século XX, mais automóveis era melhorar o trânsito. Hoje, mais automóveis é piorar o trânsito. Mas nós não conseguimos nos sintonizar diante dos novos desafios que enfrentamos para definir qual é, de fato, o tipo de progresso que precisamos ter para o País.

            Estamos vivendo no final, portanto, de um tipo de progresso, porque ele próprio vai se esgotar, ele próprio vai se fazer impossível de continuar. Como já se diz, em data certa São Paulo parará, porque toda a geometria da cidade vai estar ocupada pelos pequenos retângulos dos automóveis. E, na hora em que isso acontecer, todos eles ficarão igualmente paralisados, em vez de serem instrumentos de locomoção.

            Será que a gente não consegue perceber que há uma tragédia mais profunda do que o engarrafamento de trânsito, que é a tragédia de um tipo de crescimento, de um tipo de progresso, de um propósito social que é inviável no médio e longo prazo? É inviável, porque destrói as florestas, é inviável porque provoca aquecimento global, é inviável porque engarrafa o trânsito, é inviável porque mata pessoas, como se nós estivéssemos em uma guerra em que, em vez de metralhadora, usamos automóveis nas mãos de irresponsáveis, ou, às vezes, não de irresponsáveis, mas de pessoas angustiadas que, depois de passar muito tempo dentro de um carro engarrafado, tendo prazo para chegar nos lugares, fazem loucuras, como vimos nesta semana pessoas enlouquecidas na contramão do trânsito.

            O que há por trás de tudo isso? É mais do que uma crise de falta de viadutos, é mais do que uma crise de falta de estradas mais largas. Isso nós já tentamos e não deu certo. Já fizemos todos os viadutos que eram precisos, já fizemos todas as auto-estradas que eram necessárias. Hoje, a solução tem que ser mais profunda, mais radical. Precisa-se de uma revolução no conceito de progresso, precisa-se de uma mudança no rumo do produto que nós conseguimos tirar da economia. E eu continuo insistindo que esse progresso novo, esse novo rumo não virá se não for em uma radical revolução na educação do povo brasileiro. Não só porque o povo educado consegue administrar melhor todos os seus problemas, inclusive do trânsito, como também porque é através de uma revolução na educação, de uma maneira radical, com todos concluindo o ensino médio de qualidade, que a gente vai começar a ter o número de cientistas necessários para, numa sociedade do conhecimento, inventar soluções criativas. Como, por exemplo, transporte público mais eficiente; como, por exemplo, a própria mentalidade de se chegar rápido nos lugares e não de ser o proprietário do automóvel.

            Não esqueço de uma vez, em Manaus, quando uma pessoa apontou para o carro ao lado e disse: “Veja este Volkswagen aí, ele usa os vidros do carro fechados para todo mundo pensar que tem ar-condicionado”. É a deformação maior do que significa progresso. O ar-condicionado, em vez de ser para esfriar, é exibido apenas como símbolo do progresso, que deixa de ser real. Hoje, no Brasil, o progresso deixou de ser real, o progresso é simbólico, o progresso é uma questão de status e não uma questão de bem-estar. Essa revolução no próprio conceito de progresso é que, se não fizermos, nós não vamos encontrar respostas para um novo rumo no País.

            Se não tratarmos o trânsito como uma questão de saúde pública, se não tratarmos o trânsito como uma questão de paz - que a gente precisa construir -, se não entendermos que essa situação decorre não da falta de estradas, mas do excesso de automóveis; se não convencermos a população de que há outras maneiras de se sentir engrandecido além de ter seu carro próprio; se não conseguirmos fazer uma juventude que pense, busque objetivos diferentes daqueles que há 50 anos a gente persegue e que, quando consegue, descobre que é uma falsa vitória - a falsa vitória é mais grave do que a própria derrota, porque, na derrota, você continua com a esperança de vencer um dia; agora, quando você tem a vitória e descobre que ela não trouxe aquilo que se esperava, que ela é um fracasso em si e não por sua ausência, a vitória sendo o fracasso e não a falta de vitória ser o fracasso, aí a gente entra em uma crise de personalidade coletiva.

            O Brasil vive uma crise de personalidade coletiva. Vivemos uma crise de perda de objetivo real, Senador, de objetivo concreto, viável, possível, capaz de atender às demandas, às necessidades, aumentando o bem-estar e não piorando o bem-estar. Hoje, atender à demanda piora o bem-estar em muitos dos objetivos que nos propomos a alcançar.

            Essa busca de novo rumo, insisto e vou continuar insistindo nesta Casa, só virá de uma revolução, e essa revolução não é mais aquela de tomar a propriedade dos capitalistas, não é mais aquela de colocar a economia de cabeça para baixo ou para cima, como alguns acham. Essa revolução é escola igual para todos, e todas elas com a qualidade maior possível. Nessa escola, ensinaremos os nossos jovens a perseguirem objetivos diferentes dos que trouxemos, ou de que nos viciamos, porque éramos ainda jovens quando começaram.

            Acho que ainda é tempo de o Brasil reencontrar o seu destino, um destino diferente, olhando para os fracassos que vêm da vitória, olhando para as derrotas embutidas na cara da vitória, e percebendo que a vitória que a gente persegue não é aquela cheia de defeitos, mas aquela cheia de bem-estar para o povo brasileiro.

            Era isso, Sr. Presidente, o que eu tinha a falar, talvez destoando completamente do dia-a-dia desta Casa; mas, de qualquer maneira, a partir de uma coisa concreta, de um objetivo que hoje nos aparece na sociedade, a guerra que nós enfrentamos, a guerra que vivemos por causa da nossa vitória: o aumento do número de automóveis disponíveis na sociedade.

            O Sr. Pedro Simon (PMDB - RS) - Permite-me V. Exª um aparte?

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Eu havia terminado o meu pronunciamento, porém, ouço com o maior prazer o aparte do Senador Pedro Simon.

            O Sr. Pedro Simon (PMDB - RS) - Se V. Exª me permite, duas questões eu gostaria de apontar. Primeiro, tenho ouvido referências de todo o Brasil salientando a posição que V. Exª tem nesta Casa. Eles dizem: “Mas é impressionante aquela figura do Senador Cristovam! Como ele entende de educação, como ele discute educação, como ele quer cobrar a questão da educação! É uma pena dizer que parece que ele fala, fala, e vocês não resolvem nada, vocês não dizem nada”. Fico emocionado em ver o seu papel, a sua preocupação, a sua firmeza e o conteúdo de suas idéias, das suas propostas com referência à educação. Não há dúvida nenhuma, Senador: V. Exª está no bom caminho. E, um dia, talvez, ainda V. Exª consiga, a começar por nós, que o Brasil entenda a importância e o significado da educação. A segunda, é com relação à questão dos automóveis. Inclusive, quando fui Governador, era quase uma questão de honra para nós ter uma fábrica de automóveis no Rio Grande do Sul. Ter automóveis significava dar um passo adiante. Mas eu não sei. Fico a me perguntar: será que o Governo está certo em facilitar a aquisição do automóvel, dando quase de graça? Outro dia, a secretária lá de casa foi com uma amiga comprar um carro - a amiga dela -, e ela quase voltou com um carro. Ela disse: “Senador, a entrada era de R$1,00, e era só apresentar a Carteira de Trabalho que eu levava o carro. O primeiro pagamento era daí a 120 dias, e tinha sete anos para pagar R$300,00 por mês”. É mais fácil comprar um carro do que comprar a casa própria. Eu não sei se está sendo real, mas a grande verdade é que São Paulo vai ficar intransitável, absolutamente intransitável. Será que vale a pena isto: em vez de olhar para o transporte coletivo, a gente estar facilitando a criação de carros e mais carros e mais carros e mais carros, da maneira que está acontecendo? É muito difícil construir uma escola nova. Não é tão difícil, mas não é fácil ter uma casa popular. Mas automóvel, meu Deus, como é fácil! V. Exª está certo, Senador. Meus cumprimentos pela sua persistência, pela sua capacidade, pela sua competência. V. Exª, hoje, indiscutivelmente, é a pessoa mais importante e mais representativa com relação à questão da educação. Meu fraterno abraço, Senador.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Muito obrigado, Senador.

            Esses dias, em que estivemos vendo diversas manifestações pela internacionalização da Amazônia para evitar a tragédia do aquecimento global, pensei, Senador Pedro Simon: será que não era melhor que a gente internacionalizasse a decisão de quantos carros cada país pode fabricar? Será que, diante da tragédia que a gente vive do aquecimento global, não deveria haver um organismo internacional que dissesse: este país produz tantos automóveis, este produz tantos, este produz tantos? Talvez fosse o caso. E essa não é uma invenção solta.

            Há um país riquíssimo, hoje, chamado Cingapura. Cingapura não tem indústria de automóveis, porque é um país pequeno. É um país de total liberdade de mercado. Mas lá só se pode vender um número fixo de automóveis por ano, determinado pelo governo. Eles analisam quantas novas estradas, eles analisam quantos carros velhos retiraram, aí dizem: “Este ano, vamos poder comprar cem mil carros”. Aí, fazem um leilão do direito para comprar o carro. E o dinheiro do leilão para comprar o carro vai para o transporte público.

            Talvez, em vez de internacionalizar a Amazônia, a gente deva internacionalizar a autorização no número de automóveis que cada país poderia fabricar.

            Senador Romeu Tuma.

            O Sr. Romeu Tuma (PTB - SP) - Senador, peço desculpas por interrompê-lo. O Senador Pedro Simon já fez uma colocação que praticamente enaltece a figura de V. Exª na luta pela educação. Mas verifico a inteligência e a visão de V. Exª quando insere no problema da grande dificuldade de circulação de automóveis e do transporte quase falido, principalmente em meu Estado de São Paulo, a educação como um braço que poderia, talvez, no andar da carruagem, encontrar alguns caminhos. Tenho visto, Senador, cenas de violência inexplicáveis por parte de motoristas que provavelmente têm uma condição sadia de raciocínio, mas sacam um revólver e matam um jovem com dois tiros por nada, apenas porque houve uma discussão por uma brecada maior ou menor. Então, aí é que vem a virtude da discussão sobre a educação ser inserida para aqueles que possam ou não dirigir um veículo. V. Exª cita, como exemplo, a Ásia. Estive na Coréia, no Japão e na China. Na Coréia, uma coisa até me assustou. Fomos conhecer uma universidade e perguntei que cursos eram oferecidos. Eles responderam: “Não, aqui só se forma PhD”. Perguntei: “Como PhD?”. E eles: “Porque estamos atrás do Japão, e precisamos vencer pela educação, porque a tecnologia virá, sem dúvida nenhuma, pelo conhecimento, pela formação profissional”. V. Exª, com essa luta que já vem desde sua candidatura e não esmorece nunca, todo dia nos traz uma novidade. Teremos que aprender e lutar para que o eco das palavras de V. Exª tenham alguma virtude.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Obrigado, Senador Romeu Tuma.

            Concluo, Sr. Presidente, dizendo que a única coisa que queria dizer aqui, e tentar despertar talvez os jovens que estejam me assistindo, é que existem derrotas nas aparentes vitórias que a gente tem na economia brasileira. E dizer que existem fracassos nos aparentes êxitos da chamada sociedade ou civilização brasileira. Não paremos os êxitos. Não paremos as vitórias. Mas expurguemos as derrotas e os fracassos que existem nas vitórias e nos êxitos. E isso vai exigir uma mudança de rumo no próprio projeto civilizatório brasileiro, no próprio rumo da sociedade brasileira, na própria perspectiva e objetivo de produção da nossa economia.

            Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/05/2008 - Página 17006