Pronunciamento de José Sarney em 02/06/2008
Discurso durante a 91ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal
Abordagem sobre a chamada crise dos alimentos em nível mundial.
- Autor
- José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
- Nome completo: José Sarney
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
POLITICA AGRICOLA.
POLITICA EXTERNA.:
- Abordagem sobre a chamada crise dos alimentos em nível mundial.
- Aparteantes
- Adelmir Santana.
- Publicação
- Publicação no DSF de 03/06/2008 - Página 17660
- Assunto
- Outros > POLITICA AGRICOLA. POLITICA EXTERNA.
- Indexação
-
- ANALISE, CRISE, AUMENTO, PREÇO, ALIMENTOS, MUNDO, IMPORTANCIA, AGRICULTURA, HISTORIA, EVOLUÇÃO, HOMEM.
- COMENTARIO, DISCURSO, ORADOR, PERIODO, GESTÃO, PRESIDENCIA DA REPUBLICA, ASSEMBLEIA GERAL, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), NECESSIDADE, COMBATE, FOME, VIABILIDADE, PARTICIPAÇÃO, BRASIL, QUALIDADE, PRODUTOR RURAL, INCENTIVO, CRIAÇÃO, ORGANISMO INTERNACIONAL, COOPERAÇÃO, PAIS ESTRANGEIRO, BUSCA, SOLUÇÃO, PROBLEMA.
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- COMENTARIO, AUMENTO, PREÇO, PETROLEO, PROVOCAÇÃO, INFLAÇÃO, FERTILIZANTE, CUSTO, TRANSPORTE, PRODUTO ALIMENTICIO, ADVERTENCIA, NECESSIDADE, BUSCA, SOLUÇÃO, CURTO PRAZO, LONGO PRAZO, EXPLORAÇÃO, JAZIDAS, BRASIL, ESPECIFICAÇÃO, GAS NATURAL, REGIÃO AMAZONICA.
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- COMENTARIO, ANTERIORIDADE, PARTICIPAÇÃO, ORADOR, REUNIÃO, CONSELHO, AMBITO INTERNACIONAL, EX PRESIDENTE, PROPOSIÇÃO, RECOMENDAÇÃO, BUSCA, SOLUÇÃO, IMPEDIMENTO, CRISE, ALIMENTOS, MUNDO.
- DEFESA, AUSENCIA, RESPONSABILIDADE, PRODUÇÃO, COMBUSTIVEL ALTERNATIVO, BRASIL, CRISE, ALIMENTOS, COMENTARIO, EFICACIA, UTILIZAÇÃO, TECNOLOGIA, AGRICULTURA, IMPORTANCIA, CRIAÇÃO, POLITICA, GARANTIA, SAFRA, VIABILIDADE, INTERVENÇÃO, GOVERNO, INSUMO, ATIVIDADE AGRICOLA.
- ELOGIO, PRONUNCIAMENTO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, DEFESA, REDUÇÃO, PAIS INDUSTRIALIZADO, SUBSIDIOS, ATIVIDADE AGRICOLA, VIABILIDADE, AUMENTO, EXPORTAÇÃO, ESPECIFICAÇÃO, PAIS SUBDESENVOLVIDO.
- DEFESA, AUMENTO, ESTOQUE, REGULARIZAÇÃO, CUSTO, PRODUTO ALIMENTAR BASICO, ESPECIFICAÇÃO, PAIS INDUSTRIALIZADO, VIABILIDADE, CONTROLE, INFLAÇÃO, ALIMENTOS.
O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, nós somos tão poucos nesta tarde, poderíamos até chamá-los pessoalmente: Senador Mozarildo Cavalcanti, Senador Mário Couto, Senador Geraldo Mesquita, Senador Adelmir Santana, que acaba de chegar a esta Casa, Senador Mão Santa, cuja característica maior é sua grande generosidade para com todos nós. Ele não perde um momento para ser generoso quando fala a respeito deste seu velho amigo.
Eu vou tratar hoje, aqui no Senado, de um problema que começa a ser uma preocupação mundial, mas que é meu dever, pelas responsabilidades que já tive neste País, sempre acompanhar.
Venho abordar, Sr. Presidente, o problema dos alimentos, a chamada crise dos alimentos em nível mundial. Embora tenham dito que ela pegou o mundo de surpresa, eu acho que isso não é verdade. Ela está subjacente na própria história do homem na face da terra. Os latinos já ensinavam primo vivere, e para viver é preciso comer.
Malthus, há mais de 200 anos, demonstrou que a população mundial cresce em ritmo geométrico enquanto a oferta de alimentos cresce numa escala aritmética. No seu “Ensaio sobre a população”, previu que, falhando os grandes reguladores ordinários, na visão daquele tempo, como as doenças e as guerras, o equilíbrio entre oferta e demanda seria atingido pelo grande nivelador, a fome.
Na Assembléia Geral da ONU, em 1985, Presidente da República, tive oportunidade de falar, a parte central do meu discurso era justamente sobre as liberdades. Incluí entre as liberdades, que eram as liberdades que Roosevelt consagrava -- a liberdade contra o medo, a liberdade contra as doenças --, a liberdade contra a fome. Já então eu lembrava que o Brasil era um grande produtor de alimentos, com capacidade de participar, numa escala ponderável, na solução desse grande problema mundial e lembrava a nossa permanente solidariedade com os países mais pobres. Já então pleiteava a criação de um organismo internacional eficiente dedicado ao problema.
Não podemos esquecer que há um elemento positivo entre as causas da crise atual, o fato de que o consumo mundial de alimentos aumentou. Centenas de milhões de pessoas começaram a comer mais. Destacamos, principalmente, os chineses e os indianos que entraram no mercado de alimentos. Essa posição não pode ser ignorada, não pode ser desprezada ao analisarmos esse assunto. Felizmente é verdade que centenas milhões de quilos de alimentos passaram a ser consumidos diariamente por quem sempre estivera no limite da fome. E os números vão aumentar, na medida mesma em que a China e a Índia forem capazes de reduzir o nível de pobreza de sua população.
Porém, o que acontece é que, se por um lado, aumenta o consumo de alimentos, por outro lado, estamos assistindo ao aumento da fome. Assistimos a revoltas tão divulgadas no mundo inteiro -- no Haiti, no Egito, em Bangladesh --, pois populações que comiam pouco passaram a não comer nem o pouco que comiam. A alimentação se tornou um problema global, um problema de perde ganha. Mas a cara dos perdedores nos assombra em olhos saltados e corpos que só mostram ossos, nos assusta com a incontinência do ódio.
A história do alimento é a história do próprio homem. A primeira demanda que o homem tem para viver -- como citei no provérbio latino -- é justamente a de comer. A segunda é aquilo que V. Exª falava em seguida: a de segurança. Sem segurança, não só ele não come, como também não pode ter direito à sua habitação e à sua vestimenta, que são os dados fundamentais do princípio da vida.
A história do alimento é a história do homem. Desde que os hominídeos se levantaram e usaram a inteligência para caçar, desde que o homo erectus fez seus primeiros instrumentos, sua evolução acelerada, fulminante mesmo, está ligada à sua capacidade de se alimentar melhor que seus competidores. Antes de tudo, ele soube usar o fogo. Há cerca de 200 mil anos -- um piscar de olhos na evolução da vida -- surgiu o homem de neandertal, o primeiro homo sapiens. Ele vivia pouco, pouquíssimo (5% atingiam os 40 anos), mas sobreviveu por 170 mil anos, até ser suplantado pelos cro-magnons -- a outra linhagem, os homo sapiens sapiens. A causa? Possivelmente a mudança das condições ambientais, o esfriamento global, as idades do gelo. Desapareceu sua caça, desapareceram as plantas que eles coletavam, sua organização não foi suficiente para enfrentar o desafio.
O cro-magnon trouxe um extraordinário trunfo: foi capaz de utilizar a linguagem falada. Mas há 11 mil anos o gelo voltou a recuar, e o homem começou uma experiência: a produção de alimentos. Deixou de só consumir o que espontaneamente lhe dava a natureza, e passou a criar animais e cultivar plantas. A sua população explodiu, e ele se espalhou pelo mundo, seguindo o alimento, a adaptação de espécies criadas e cultivadas, seguindo os eixos continentais e climáticos. Com ele e elas seguiram os germes e as pragas.
A agricultura trouxe um aumento de 100 vezes da capacidade de gerar alimentos. O homem se organizou em sociedades complexas, num padrão em que mais calorias significava maior população, e mais população maior demanda, e maior demanda expansão. A formação de entidades políticas não afastou o papel central da alimentação. O homem pegou 0,1% da biomassa e transformou-a em 90%, nas terras cultivadas.
As civilizações se espalharam no Crescente Fértil, nos grandes vales da Ásia, surgiram e desapareceram, muitas vezes por esgotar seus recursos naturais. A permanência do Egito existiu no balanço da produção de trigo, com as enchentes do Nilo medidas por séculos no chamado Nilometro de Elefantina, que avisava se o ano seria de fartura ou fome, e pela estocagem de grãos, sob controle do faraó. Em Roma o que imortalizou os Gracos foi a reforma agrária e a distribuição gratuita de grãos: eram os assuntos centrais da vida da cidade, da vida do proletário ou do especulador -- figuras que se cristalizaram por volta do século IV antes de Cristo. O comércio com os gregos da Sicília, com o Egito, com Cartago, girou essencial em torno do fornecimento de trigo. Isso determinava não só o comércio, como também a guerra, porque a guerra era provocada pela necessidade da busca de grandes estoques de alimentos.
Mas o outro lado da história, portanto, é a fome. Ao longo dos séculos, as populações dizimadas pela fome são inumeráveis. Há registros de fomes no Egito no século XXII antes de Cristo, e estes se repetem ao longo dos séculos. Alguém contou mais de 1.800 fomes na China até o começo do século XX. Não quero assustá-los mais do que o necessário, mas só no século XIX foram mais de 120 milhões de mortos, e sua última fome, durante o Grande Salto para a Frente, que foi a grande bandeira do Mao, foi de mais de 20 milhões.
A essas grandes fomes corresponde uma fome menor, permanente, que atinge os pobres de todo o mundo. Os países ricos mesmo tornaram ubíquo, no cinema, a imagem da sopa distribuída à noite nos bairros pobres das cidades mais ricas.
Corresponde a nosso tempo, sem dúvida, um aumento da capacidade de consumo de grandes contingentes pobres, como os chineses e os indianos. Uma grande parte dos fenômenos econômicos da virada do milênio tem essa explicação. Mas vejamos o que aconteceu com a produção de alimentos nos últimos 20 anos, entre 1986 e 2006, conforme dados que coletei da FAO: a produção de cereais passou de 1,83 para 2,22 bilhões de toneladas, isto é, aumentou 21%.
A produção de batata -- faço parênteses: não nos devemos jamais esquecer de que a produção de batata é responsável, em grande parte, pela salvação das populações européias que morriam no inverno. A população da Europa esteve estagnada e só voltou a crescer mais depois que a batata, aqui encontrada, em 1500, pelos descobridores -- que chegaram à América e encontraram mais de 120 espécies de batata --, foi levada para a Europa, onde passou a ser cultivada. Ela era a alimentação que era acumulada para que, durante o frio, pudesse servir de alimento para as grandes populações, que, antes daquele tempo, morriam de fome. Quando Presidente, em visita à União Soviética, na atual São Petersburgo ouvi do prefeito da cidade que havia uma secretaria encarregada somente do transporte da batata a ser estocada e consumida nos meses de frio. Portanto, a produção de batata passou a ser “referência” na troca de alimentos.
Pois bem, a produção de batatas subiu de 280 milhões para 315 milhões de toneladas, isto é, aumentou 12%.
A produção de carne deu um salto muito maior, porque passou de 159 para 272 milhões de toneladas, isto é, aumentou 71%.
Se esse aumento foi considerável, também o aumento da população foi equivalente. A população mundial passou de 5 para 6,5 bilhões, isto é, aumentou 30%; de 3 para 4 bilhões só na Ásia, isto é, um aumento de 25%. É evidente que a conta, no balanço entre alimentos e população, é apertada.
Mas, se descermos a detalhes, veremos que, na China, que tem 20% da população mundial, a produção de carne passou de 10 para 30% do total mundial. A China não fez somente uma grande mudança na parte industrial, mas também em todos os setores. E esse é um setor em que podemos verificar o que foi o esforço gigantesco de passar de 10% para 30% da produção de carne no balanço mundial. Mas, em cereais, ela permaneceu estável, em torno de 18%.
No caso da Índia, com 16% da população mundial, a produção de carne passou de 2 para 2,5%, e a de cereais, de 9 para 10,5% do total mundial. Os dois países acompanharam e ultrapassaram, portanto, o aumento da produção mundial. Nos dois casos, há um aspecto curioso: ambos exportam mais cereais do que importam. Pode-se pensar que é um paradoxo, mas são dados da realidade. O consumo per capita de carne na Índia é relativamente baixo, o que se explica por razões culturais e religiosas, mas na China é superior à média mundial.
O problema do preço do alimento, portanto, não se explica simplesmente pela incorporação de um mercado consumidor nos dois grandes países.
Por outro lado, também não se explica pela experiência do biocombustível. No caso da cana, sua produção passou de 930 para 1.390 milhões de toneladas, isto é, aumentou 50%. No caso do milho, passou de 480 para 695 milhões de toneladas, isto é, aumentou em 44% na sua produção. É bem verdade que os americanos aumentaram sua área plantada de milho e, para isso, eles diminuíram a de outros produtos. Mas não vamos pensar que só agora, por causa do etanol, os americanos estão produzindo milho; e milho muito mais caro. Eles produzem álcool de milho há mais de 100 anos, porque eles têm que abastecer sua indústria interna. O dado novo é a inclusão do álcool nos combustíveis, mas o álcool é necessário para todas as atividades que funcionam dentro de um grande país e de uma economia como a americana. Vemos que os números de produção desses outros cereais também não caíram. Os do arroz passaram de 470 milhões para 630 milhões de toneladas, isto é, ele aumentou 34%; a produção do trigo, de 528 para 605 milhões, isto é, aumentou 15%.
Vou entrar agora no ponto que considero central das observações que estou fazendo aqui, no Senado Federal.
Dois elementos menos cotados têm, a meu ver, maior responsabilidade pelo crescimento dos preços. De um lado, o aumento extraordinário dos preços do petróleo e seus derivados, atingindo os alimentos na produção, através dos insumos agrícolas -- fertilizantes e correlatos --, e na distribuição. No caso do diesel, apesar de ter o preço controlado pelo governo, seu custo dobrou em sete anos.
Já os fertilizantes subiram, só no último ano, no Brasil, 41%; no mercado mundial os aumentos chegaram a 90% (cloreto de potássio). Na ponta do consumidor agrícola, algumas fórmulas tiveram aumentos de até 150%. O custo da importação deverá ser, este ano, da ordem de 15 bilhões de dólares. O governo está fazendo um grupo de trabalho para estudar o problema, mas são necessárias tanto medidas a curto prazo como uma solução a longo prazo.
Esta pode vir em parte da exploração de jazidas brasileiras, como a de potássio de Nova Olinda, às margens do Madeira. É uma exploração complexa, a alta profundidade, mas o preço do 600 US$ a tonelada justifica os investimentos.
É preciso examinar, também, as possibilidades de aproveitamento do gás natural excedente na Amazônia. É com muito orgulho que recordo quando, como Presidente da República, fui a Urucu para ali anunciarmos ao País a descoberta de petróleo em condições exploráveis e de grandes jazidas de gás na Amazônia.
Mas a maior responsabilidade pela alta do preço dos alimentos é, a meu ver, a especulação financeira. Assusta-nos a bolha de ações e hipotecas que se formam sobre ativos diminutos ou de risco? Mas o mercado lançou-se num processo desenfreado de preços de futuro. O petróleo voou num foguete que o fez dobrar de preço em um ano? Mas o ouro também explodiu. O chumbo subiu ainda mais. E -- aí está o absurdo -- o trigo, o leite, o arroz, todos produtos cuja produção aumentou mais do que a demanda, foram atingidos pela regra do comércio especulativo. A Bolsa de Chicago, o mercado de futuro negociou, em 2007, o equivalente 22 safras reais. Vemos então confirmado o que Helmut Schmidt, uma vez, me disse, que a economia de papéis era de 2000% do que é a economia real.
Colocamos em risco a sobrevivência de populações inteiras -- as dos países mais pobres que não são capazes de produzir seus alimentos. A conta destes países, diz a FAO, deve subir 56% em 2007/2008, depois de ter subido 37% em 2006/2007. Para os países mais pobres da África, o aumento deve chegar a 74%. A persistência nesse caminho tornará realidade a tese de Malthus: “O poder da população é tão superior ao poder da terra de produzir subsistência para o homem, que a morte prematura deve de uma forma ou outra visitar a raça humana. [Se guerras, doenças, não o fizerem], gigantescas fomes inevitáveis […] nivelam com um golpe poderoso a população com a comida no mundo.”
Eu participei, Sr. Presidente, há 13 anos, em Xangai, de uma reunião do InterAction Council, que é um conselho mundial de ex-presidentes -- que, neste ano, vai-se reunir em junho, em Estocolmo -- ao qual eu pertenço. Naquele tempo nós discutíamos, justamente, o balanço entre população e alimentos no mundo inteiro. Essa reunião foi presidida pelo Malcolm Fraser, que foi Primeiro-Ministro da Austrália. Nós, então, fizemos umas recomendações e fui ler, agora, essas recomendações de 13 anos atrás. Parecia que eu estava lendo recomendações que eram aplicáveis hoje, que tinham sido feitas ontem, tão atuais elas me pareciam: mostram a necessidade, sobretudo, de uma solidariedade internacional para enfrentar esse problema. Essa não se deve resumir à ajuda de doação de alimentos, mas se estender a vários outros pontos, como os níveis de consumo dos países mais ricos, incompatíveis com o acesso a eles de toda a Humanidade.
Agora, na busca por culpados, o Brasil foi atingido e colocado no meio para, de certo modo, confundir, dizendo que o problema nosso, de estarmos ocupando áreas de produção de alimentos para produção de cana, poderia ser um dos vilões dessa crise mundial. Essa declaração foi do Sr. Jean Ziegler, que terminava sua passagem no cargo de relator especial da Organização das Nações Unidas para o direito à alimentação. O Sr. Ziegler criou, há alguns anos, o Prêmio Muammar Khadafi de Direitos Humanos, uma espécie de Nobel alternativo e que explica o seu criador. Segundo ele, a culpa do aumento do preço dos alimentos é dos biocombustíveis. O Presidente Lula protestou e ele logo recuou, e até mandou uma carta à Ministra Marina, que era Ministra do Meio Ambiente àquele tempo, em que ele acusava os biocombustíveis americanos.
Sr. Presidente, a sua generosidade é muito grande, mas espero, dentro de dez minutos ou menos, terminar estas minhas considerações. Acho que elas são importantes aqui no Senado Federal, e importantes, sobretudo, para o povo brasileiro, para que ele veja que, dentro desta Casa, nós estamos nos preocupando com problemas muito mais profundos que esses do cotidiano.
O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PMDB - PI) - V. Exª fique tranqüilo. Petrônio Portela, lá do meu Piauí, quando presidia esta Casa, limitava o tempo dos discursos de Paulo Brossard, que era seu adversário, em uma hora. Agora é que o senhor está completando 30 minutos. Fique à vontade.
O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Como vimos, Sr. Presidente, nos Estados Unidos o direcionamento de milho para a produção de etanol foi compensado pelo aumento da produção de cereais.
O Brasil, entretanto, tem de fazer um grande esforço de comunicação para mostrar que o caso do álcool de cana de açúcar é inteiramente diferente. Para começar, trata-se de uma experiência madura e consolidada no mercado nacional. Depois, trata-se de uma cultura simples, mas na qual desenvolvemos a tecnologia que está eliminando o seu grande fator negativo, a queima pré-colheita, e está tornando muito rentável o aproveitamento do bagaço na geração termo-elétrica. Para ela o Brasil dispõe de terras suficientes.
Vejamos alguns números. A área plantada com cana é 7 milhões de hectares, cerca de metade destinada à produção de álcool. Temos 197 milhões de hectares dedicados à pecuária, 59 milhões de hectares de terras aráveis, das quais 45 milhões plantadas com grãos. De floresta, 263 milhões. Sobram 104 milhões de área classificada pela FAO como outras terras. A maior parte é área de cerrado, o nosso ecossistema mais ameaçado depois da Mata Atlântica, e que temos que preservar, mas uma parte considerável é aproveitável.
O Sr. Adelmir Santana (DEM - DF) - Permite-me V. Exª um aparte?
O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Com muito prazer, até mesmo para me dar uma certa pausa.
O Sr. Adelmir Santana (DEM - DF) - Como V. Exª fez, inicialmente, uma avaliação dos alimentos - e me parece que a segunda parte do discurso vai para a área energética, embora os alimentos também tenham essa mesma função em relação aos seres humanos -, eu queria fazer uma referência. Primeiro, quero louvar o momento em que V. Exª traz o discurso à tona, quando estão reunidos Chefes de Estado, discutindo essa questão, a partir de hoje, na Itália. V. Exª faz um paralelo entre o crescimento da produção de alimentos e o crescimento populacional e o faz com citações históricas de muitos anos, até de séculos. Na verdade, o que se percebe nisso - e V. Exª demonstrou muito bem - é que há falta de solidariedade entre os povos. Naturalmente, foi mostrado que muitos começam a dizer: “Cresceu o volume de populações de determinados países que passam a ter acesso a alimentos. Por isso, haverá uma crise de alimentos no mundo”. V. Exª mostrou o caso da China, em que alguns setores de produção crescem mais que a própria população. Portanto, não é a questão da incorporação de novas populações ao consumo; há falta de solidariedade. O que me chamou atenção foi o paralelo que V. Exª traçou entre a elevação de preços - não em relação a crescimento da população e a crescimento da produção - e o crescimento do preço dos insumos para a produção de alimentos, notadamente os insumos ligados ao petróleo. Essa é, efetivamente, uma realidade que todos nós enfrentamos. Eu queria acrescentar, Presidente Sarney, um aspecto que me pareceu que, talvez, por prurido, V. Exª não tenha feito referência: a infra-estrutura básica. Há um desperdício enorme na produção de alimentos, no nosso País, principalmente, por falta de infra-estrutura nos nossos portos, nos transportes e no próprio processo de produção, em razão de questões muitas vezes educacionais. Estou ouvindo V. Exª atentamente, até como ensinamento, e estou feliz por esse assunto vir à tona. No Brasil, além desses custos, que V. Exª bem relacionou, ligados à questão petrolífera e aos preços dos insumos básicos para a produção dos alimentos, há também um desperdício enorme, tanto na faixa produtiva, na hora da produção, do recolhimento, da colheita, como na hora da comercialização. Há um desperdício de alimentos nos supermercados, nos atacadistas, e, muitas vezes, eles não são reaproveitados, mas poderiam sê-lo. Há um projeto no Brasil encabeçado pela Confederação Nacional do Comércio (CNC) e feito pelo Serviço Social do Comércio (Sesc), em todos os Estados Brasileiros, que é o Mesa Brasil Sesc, que faz exatamente um trabalho de reaproveitamento daqueles alimentos que já seriam desperdiçados pelo varejo e pelos atacados. Eles são recolhidos e distribuídos para entidades sociais cadastradas com orientações outras, baseadas na dieta, em nutricionistas e em assistentes sociais, o que evita a fome de muitas pessoas que estão internadas nessas unidades. Então, louvo a relação que V. Exª faz de energia com batata, de energia com alimentos, e quero dizer que, no Brasil, além de todos esses custos, há o sofrimento da falta de infra-estrutura básica no campo, nas cidades e no processo de distribuição dos alimentos entre nós. Parabenizo V. Exª por levantar a questão que os países discutem a partir de hoje na Itália, preocupados que estão com a inflação dos alimentos! Como V. Exª disse muito bem, a inflação não está nos alimentos, mas nos insumos, provavelmente, da produção desses alimentos. Muito obrigado, Sr. Presidente.
O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Muito obrigado a V. Exª, que é um homem conhecedor desses problemas, um homem que participa das associações de classe, as quais conhecem exatamente quais são os nossos gaps nessa distribuição.
Mas quero dizer que eu não tratei do problema dos transportes, porque não estou tratando do problema da agricultura brasileira. Se tivesse que tratar dos problemas da agricultura brasileira, Sr. Presidente, nós teríamos que fazer, não só esta sessão, mas muitas sessões. E quase todas as sessões que aqui são feitas tem sempre Senadores preocupados e trazendo esses problemas da agricultura brasileira perante o povo brasileiro.
A razão de eu tratar desse assunto de alimentação é um pouco como intelectual. Como Paul Johnson disse, intelectual é aquele que está tratando das idéias e não das pessoas; portanto, quase todos nós temos um pouco de intelectual. Quer dizer, não só de poeta e de louco, mas também de intelectual temos um pouco.
Então, nesse sentido comecei a pensar, quando surgiu esse problema da crise alimentar, sobre aquilo que vi no princípio de Malthus: o crescimento populacional seria tão grande que, inevitavelmente, não teríamos alimentos para isso, e que essas populações seriam mortas pela fome e que a humanidade estaria destinada a isso.
Depois, fui também da geração que assistiu ao desenvolvimento da tecnologia, quando todos nós passamos a acreditar que a tese do Malthus era uma velharia, que não tinha sentido algum, porque a tecnologia permitiria que sempre produzíssemos alimentos à vontade.
Mas, quando vi a crise dos alimentos, o preço dos alimentos, pensei sobretudo sobre como isso os torna inacessíveis para muitas faixas de população. E imaginei: será que essa é a ponta do iceberg daqueles problemas do futuro da humanidade? Daqueles problemas que mais preocupam os grandes pensadores? A questão é saber quais são esses problemas, e um dos problemas é o populacional. Ele está relacionado com o problema de alimento, não podemos separá-los.
Hoje há um problema econômico que interfere dentro dele de uma maneira brutal -- estamos vendo isso -- até na circulação mundial desses alimentos. Daí a necessidade de superarmos essa fase que a humanidade atravessa. Não sei quanto tempo vai durar ainda. Galbraith dizia que a sociedade industrial iria durar 500 anos.
Mas é preciso que venha no futuro um mundo de solidariedade no qual todos os esforços não sejam voltados para o lucro. Todos eles estão voltados para aplicar na vida humana aquilo que se aplicou na lei natural -- que é a lei da sobrevivência do mais forte, a lei de Darwin -- na economia: só fica o que melhor produz, só fica o que tem maior rentabilidade. E, com isso, a gente, de certo modo, mata o pouco de humanidade que devemos ter. Desaparecem os outros sentimentos, para restar apenas esse sentimento.
Vejo, em termos de futuro, que a humanidade vai atravessar tudo isso e algum dia teremos no mundo todo esses sentimentos dos quais falamos hoje de forma pessoal, como um desejo de cada um de nós, como uma realidade.
Acredito que o Presidente Lula foi muito feliz hoje quando falou da FAO, quando Sua Excelência realmente tirou o Brasil de dentro disso. Não podemos ser atacados como vilões de coisa nenhuma numa crise dessas. Tudo isso nada tem a ver conosco. A causa não é a cana-de-açúcar que estamos plantando, e devemos continuar a plantar e expandir. Ao mesmo tempo, estamos expandindo muito mais os grãos, como V. Exª mesmo falou.
Hoje, sabemos que a agricultura brasileira é de alto nível tecnológico. Não perdemos para ninguém no mundo em termos de tecnologia agrícola. V. Exª falou no desperdício da colheita. O que a Embrapa fez ao descobrir, por exemplo, variedades de soja cujos grãos podem ficar nas colhedeiras e não ter aquela perda que apresentavam antigamente de 5%.
Devemos pensar realmente nisso que o Presidente falou: os subsídios agrícolas dos países ricos. Se querem ajudar na produção de alimentos, que diminuam esses subsídios para que possamos exportar muito mais. Que o mundo rico crie um subsídio de alimentos para os países mais pobres, países africanos, que vivem uma fome endêmica.
Sr. Presidente, eu acho que nós podemos triplicar a nossa produção de álcool. Dois caminhos, portanto, se abrem com ampla folga para a expansão da área plantada com cana destinada ao álcool: o cerrado e o melhor aproveitamento da área de pastagem. Para triplicar a produção de álcool, bastaria utilizar 3,5 da área de cerrado ou converter 1,5 das pastagens atuais.
Os Estados Unidos, que avançaram rapidamente na produção de álcool a partir de milho, alcançaram o Brasil como produtor, mas terão dificuldade em aumentar a área plantada -- o aumento atual foi conquistado sobre a área de outras culturas. Eles fazem, entretanto, investimentos gigantescos em pesquisa, e aumentarão, certamente, sua eficiência energética, que hoje é 6 vezes inferior à nossa.
A solução mais simples para a incorporação do álcool à gasolina americana -- um dos poucos avanços do governo americano no combate ao aquecimento global -- seria, e é, a importação do combustível brasileiro.
Ao mesmo tempo, o Brasil pode e deve aumentar a área plantada de cereais e produzir mais alimentos. A conversão das pastagens, uma parte das quais é subaproveitada, é um dos caminhos, mas é preciso avançar na política de garantia de safras e, aí sim, entramos no problema da agricultura brasileira; intervir no preço do insumo agrícola, que hoje é um grande desestímulo ao agricultor.
De resto, temos que defender em nossa política externa, a unificação das ações nas Nações Unidas sobre o alimento e o aumento da capacidade da FAO -- ou do novo órgão que a substituir -- de agir sobre o comércio mundial de alimentos. Porque, também, agora, o mundo talvez seja capaz de despertar para o problema dos alimentos mas, na realidade, a FAO é um organismo das Nações Unidas quase colocado à margem, lá em Roma, desprestigiado e que não tem tido o apreço que ela deveria ter tido.
É preciso aumentar os estoques reguladores mundiais, hoje da ordem de um quarto da safra. É preciso cobrar dos Estados-membros e sobretudo dos que mantém grandes subsídios agrícolas como a União Européia e os Estados Unidos, repito, que atuem em seus mercados com os seus próprios estoques reguladores, de maneira a conter a globalização na escalada de preços.
O crescimento da população mundial deve continuar até meados deste século, chegando a 10 bilhões de habitantes, antes de declinar. É possível evitar a solução da catástrofe malthusiana, a da dizimação da população pela fome. Mas para isso é necessária a cooperação internacional e que cada país faça a sua parte. O Brasil certamente fará a nossa.
Eu acho que o Brasil tem uma função importante nesse problema de alimentos no mundo. Portanto, é com essa certeza da nossa participação na sua solução, mas também com a denúncia de que dentro da crise que estamos vivendo há o problema da especulação financeira, que eu quero terminar essas palavras perante o Senado do País.