Discurso durante a 111ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Homenagem à memória de D. Ruth Cardoso.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem à memória de D. Ruth Cardoso.
Publicação
Publicação no DSF de 26/06/2008 - Página 23196
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, CONJUGE, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, ELOGIO, VIDA PUBLICA, ATUAÇÃO, ANTROPOLOGO, INTELECTUAL, PROFESSOR UNIVERSITARIO, RECONHECIMENTO, AMBITO INTERNACIONAL, COMENTARIO, CONCLUSÃO, CURSO DE GRADUAÇÃO, CURSO DE DOUTORADO, PERIODO, CARENCIA, MULHER, ENSINO SUPERIOR.
  • ANALISE, IMPORTANCIA, CONJUGE, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, AMBITO NACIONAL, ATIVIDADE, NATUREZA POLITICA, DEFESA, DEMOCRACIA, SUPERIORIDADE, INCENTIVO, IMPLANTAÇÃO, BOLSA FAMILIA, ATUAÇÃO, DIREÇÃO, PROGRAMA COMUNIDADE SOLIDARIA, PROMOÇÃO, ERRADICAÇÃO, ANALFABETISMO.
  • COMENTARIO, SUPERIORIDADE, HOMENAGEM, CONJUGE, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, APOIO, ERRADICAÇÃO, ANALFABETISMO, DESIGUALDADE SOCIAL, DEFESA, AUSENCIA, VINCULAÇÃO, BOLSA FAMILIA, PARTIDO POLITICO, NECESSIDADE, MELHORAMENTO, EDUCAÇÃO BASICA.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs Senadoras e Srs. Senadores, uma grande parte da liderança do Brasil inteiro, nesta tarde, está em São Paulo, prestando homenagens a Dona Ruth Cardoso. Preferi ficar aqui. Apesar da amizade, do respeito, creio que seria melhor, neste momento, prestar uma homenagem aqui, na tribuna do Senado, a essa grande mulher.

É claro que a gente pode começar lembrando o que todos lembram: ela foi uma Primeira-Dama exemplar na discrição, ao mesmo tempo, na participação, na companhia que teve durante esse período ao Presidente da República.

Para mim, o grande papel dela, o grande mérito não foi este, de estar ao lado do Presidente Fernando Henrique. Para mim, o grande mérito é dela, é interno, vem de dentro dela. Vou citar alguns, em ordem crescente de importância para mim: o fato de ela, em 1948 creio, ter se graduado mostra uma grandeza rara na história do Brasil. Naquele época, raras mulheres freqüentavam a universidade, chegavam a concluir os seus cursos; raras mulheres conseguiam ter um diploma universitário naquela época, meados do século XX. Mas não foi um diploma qualquer: um diploma que fez dela, e esta é a segunda qualidade, uma intelectual de peso; uma pessoa capaz de refletir sobre os problemas brasileiros, oferecer caminhos, ter verdadeiras percepções de fatos que passavam ao largo de outros profissionais. Ela foi uma estudante universitária quando poucas mulheres o eram. Mas ela foi também uma doutoranda e uma intelectual de peso. Lamentavelmente, ainda não temos hoje tantas mulheres assim. Mas, mais do que isso, o que a gente precisa recordar é a contribuição que ela deu ao pensamento brasileiro.

Lembro aí outra pessoa com quem tive muita convivência que foi o seu irmão Roberto Cardoso, professor da Universidade de Brasília, falecido poucos anos atrás. Os dois, colegas, na mesma área de antropologia, ciências sociais e geral, os dois deram contribuições aos problemas brasileiros, ao entendimento do que é que se pode chamar de povo brasileiro, o que é a mente do Brasil. Eles deram essa contribuição, e ela deu a sua contribuição.

Depois, o prestígio internacional. Nós somos um País de alguns prestígios: os artistas têm prestígio, os atletas têm prestígio, especialmente, os jogadores de futebol. Nós não somos um País de prestígio internacional no mundo intelectual. Não há nenhum - no Brasil, nenhum! - filósofo que tenha uma transcendência internacional. Daqui a cem anos, a duzentos anos, não vai se falar de nenhum dos filósofos brasileiros de hoje. Eu digo filósofo, mas pode ser qualquer outra atividade. Um ou outro conseguiu um destaque internacional no mundo intelectual.

Isso é fácil explicar: primeiro, um País que oferece educação para poucos exclui milhões que poderiam ser grandes gênios brasileiros. Mais grave ainda: num País onde a educação é para poucos, esses poucos não têm que se dedicar muito para se destacarem. Para ser um grande intelectual no Brasil não precisa ser grande intelectual, porque a gente se compara apenas entre um pequeno grupo. Difícil é ser um grande jogador de futebol, porque aí tem muita concorrência. Então, nós somos um País pobre internacionalmente do ponto de vista intelectual.

Eu vi, ao visitá-la dois ou três anos atrás, o prestígio de Dona Ruth Cardoso na universidade americana em que ela lecionava, ao lado, obviamente, do Presidente Fernando Henrique Cardoso, já ex-Presidente. Esse prestígio internacional é que traz hoje, o dia seguinte ao seu falecimento, este clima de debate, de conversas, de falas, de lembranças dela, muito mais do que o fato de ela ter sido Primeira-Dama.

Em ordem de importância coloco depois do prestígio internacional a sua militância política. Ela foi uma pessoa que sempre esteve do lado das forças democráticas, sempre esteve do lado das forças de esquerda. É óbvio que a qualificação da esquerda nos últimos anos tem mudado muito. Terminou o período autoritário que unia todo mundo que se dizia de esquerda apenas por ser democrata. Ficou difícil definir com clareza, mas nunca tive dúvida e volto a afirmar que tanto o Presidente Fernando Henrique Cardoso como a sua esposa, falecida ontem, são pessoas com características do que chamo de esquerda, pessoas descontentes com a realidade, pessoas que querem mudar essa realidade. Obviamente, mudar para um lado, mudar para outro. Temos muitas alternativas nos dias atuais, mas considero que ela foi, sim, em sua vida, uma mulher de prática política sempre do lado certo. Ela não esteve do lado dos errados. Nos momentos duros do regime militar, nos momentos duros da queda do Muro de Berlim, ela foi capaz de perceber como continuar a ser uma pessoa de esquerda num mundo em transformação.

Outro ponto, em ordem de importância: mais do que a sua militância política foi a sua ação social. Hoje falamos do Bolsa-Família como um programa enorme, exportado. A Drª Ruth Cardoso esteve por trás da transformação de um pequeno programa que eu dirigi no Distrito Federal chamado Bolsa Escola em um programa maior, em âmbito nacional, chamado também, graças à generosidade do Presidente Fernando Henrique Cardoso, de Bolsa Escola, como eu o havia criado.

Em 1994, antes mesmo de assumir o Governo do Distrito Federal, antes mesmo de Fernando Henrique assumir a Presidência da República, levei para ele o meu livro em que eu defendia e concebia o Bolsa Escola; levei para ele o projeto de lei que criava o projeto no Distrito Federal e comecei a defender a sua implantação em âmbito nacional.

Tenho cartas guardadas. São cartas minhas para ele, para o Ministro Paulo Renato e para a Dona Ruth Cardoso, que eu via como a ponta por onde era possível entrar no núcleo central do Governo, para convencer esse núcleo de que valia a pena criar o Bolsa Escola no Brasil inteiro.

Embora eu não saiba o que aconteceu exatamente nos meandros do poder naquela época do Governo Fernando Henrique Cardoso, pelas informações indiretas, não tenho dúvida de que ela foi uma das figuras centrais que levou o Governo a convencer-se de que valia a pena investir nacionalmente em um programa Bolsa Escola.

Havia algo parecido em Campinas, surgido mais ou menos ao mesmo tempo do programa de Brasília, mas com características muito mais do Bolsa-Família de hoje do que do Bolsa Escola do Distrito Federal. Lá também era um programa administrado pela Secretaria da Assistência Social, não pela Secretaria de Educação. Lá, o objetivo era, sim, assistir mais do que educar.

A dona Ruth foi fundamental na criação do programa no Brasil inteiro.

Hoje, todas essas mães que recebem o Bolsa-Família - e que têm toda a razão de agradecer ao Presidente Lula por ter aumentado de 4 milhões para 10 milhões de famílias - deveriam se lembrar da Dona Ruth Cardoso. Ela esteve por trás, Senador Paim, da transformação de um pequeno programa do Distrito Federal em um programa, eu diria, médio no Brasil e que o Lula fez grande no Brasil.

Houve esse aumento que algumas pessoas contestam porque estamos em momento eleitoreiro. Eu insisto que esse não é um problema nosso. É a Justiça que deve dizer se é ou não oportuno. Mas quando se diz que estão gastando muito aumentando o Bolsa-Família, eu digo: “Gente, vão ser R$0,20 por mês por família! É muito pouco!” Hoje, a média deve estar em torno de R$80,00. O aumento de 8% vai dar R$6,00. Seis reais por mês dá vinte centavos por dia. Não dá para achar que é muito. O problema não é que é muito. O problema, na verdade, é que hoje não está vinculado diretamente à educação. E o segundo problema, claro, é que, embora sejam R$0,20 por mês por família - pelas minhas contas rápidas - deve dar um gasto de R$700 milhões por ano. E temos que tomar cuidado para que isso não pressione os gastos públicos. Se esse aumento que vai para os pobres vai sair de onde existam recursos concretos.

Voltando à Drª Ruth Cardoso, eu creio que o papel dela como militante social foi fundamental. E essa é uma marca que a gente não pode esquecer. Mas de tudo o que ela fez, a meu ver, aquilo que mais deixa sua marca, Senador Paim, é o firme compromisso na luta pela erradicação do analfabetismo no Brasil.

Mais do que ter influído para que a Bolsa-Família chegasse ao Brasil com o nome de Bolsa-Escola, como era - aí ela foi uma auxiliar -, mais do que isso, foi o programa de alfabetização que ela levou ao Brasil inteiro mediante a Comunidade Solidária.

Das coisas que a gente vai sentir falta nesses próximos meses, eu não tenho a menor dúvida de que a maior é a ausência dela entre aqueles que, como eu, concentram esforço político na luta pela educação das massas brasileiras e, portanto, desde logo, a alfabetização dos cerca de 16 milhões que já chegaram à idade adulta e não sabem ler, nem escrever. Ela fez do seu tempo uma grande dedicação e deixou sua marca na luta pela erradicação do analfabetismo.

Por isso, vim aqui prestar uma homenagem a essa figura, a essa mulher, a essa personagem, a essa personalidade que ontem nos deixou, mas deixando também um exemplo de quem dedicou seu tempo às letras para si como estudiosa, mas também às letras para os outros como militante da alfabetização.

A grande homenagem, porém, que poderíamos prestar a ela seria transformar este nosso sentimento pela sua morte em ações concretas para levar adiante a luta dela. Que tenhamos aqui um programa radical de erradicação do analfabetismo. Não um programinha de alfabetizar aos poucos um número maior de pessoas, tal como D. Pedro criou ainda no tempo do Império, mas um programa radical que marque o prazo, que diga o dia em que o Brasil vai se declarar território livre do analfabetismo.

Essa seria a grande homenagem que poderíamos prestar a Dona Ruth Cardoso, independentemente do partido em que ela estivesse ou do partido de família, especialmente do seu esposo.

A outra homenagem é que a Bolsa-Família de fato reconheça que não é mais, nem deveria ter sido nunca, um programa de um partido e de um governo, mas, sim, um programa de uma Nação que quer ver-se emancipada e sabe que para isso é preciso emancipar o povo. E o caminho da emancipação do povo é a escola igual para todos. E, para que haja escola igual para todos, é preciso apoiar financeiramente aqueles que não têm dinheiro para comer e, por isso, precisam trabalhar no lugar de estudar ou, sem comer, não conseguem estudar.

Daí a grande sacada da Bolsa-Escola: dinheiro para que as pessoas possam tirar os filhos do trabalho e ter dinheiro para comer, e isso vinculado à educação. Mas isso significa que a escola tem que melhorar. A Bolsa-Família ou Bolsa-Escola paga, mesmo exigindo a freqüência, sem qualidade da escola, não dá resultado, porque não é escola o que nós temos; é quase-escola. É preciso transformar as quase-escolas em escolas de verdade.

É esta homenagem: um programa de erradicação do analfabetismo e a Bolsa-Família ter, ao mesmo tempo, dois aspectos: compromisso com a freqüência das crianças às aulas e, por outro lado, a transformação das quase-escolas brasileiras em escolas verdadeiras.

Eu deixo aqui essas palavras de homenagem a essa pessoa que tive o privilégio de conhecer e com ela conviver e de sentir o seu lado de simpatia profunda, de modéstia, eu diria, mas ao mesmo tempo de firmeza, de compromisso e de militância social.

Encerro, sem esquecer os meus cumprimentos à sua família, ao seu esposo, aos seus três filhos, dizendo-lhes que perderam uma esposa e uma mãe, e o Brasil perdeu uma grande companheira da militância pela educação no Brasil, uma mulher que foi exemplo pela sua luta intelectual e pela sua militância política.

Que fique aqui a minha homenagem a Dona Ruth Cardoso, nesta tarde em que muitos estão presentes na despedida final a ela.

Eram essas as minhas palavras, Presidente Jefferson Praia.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 26/06/2008 - Página 23196