Discurso durante a 139ª Sessão Especial, no Senado Federal

Homenagem à memória do médico e geógrafo Josué de Castro pelo transcurso do centenário de seu nascimento.

Autor
Jarbas Vasconcelos (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/PE)
Nome completo: Jarbas de Andrade Vasconcelos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL.:
  • Homenagem à memória do médico e geógrafo Josué de Castro pelo transcurso do centenário de seu nascimento.
Publicação
Publicação no DSF de 08/08/2008 - Página 29533
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, ANIVERSARIO, JOSUE DE CASTRO, ESCRITOR, MEDICO, GEOGRAFO, SOCIOLOGO, CIENTISTA, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE), RECONHECIMENTO, AMBITO INTERNACIONAL, COMENTARIO, IMPORTANCIA, OBRA INTELECTUAL, COMBATE, MISERIA, POBREZA, FOME.
  • REGISTRO, HISTORIA, MEDICO, ESPECIFICAÇÃO, VIDA, POLITICA, ATUAÇÃO, PROFESSOR, DITADURA, REGIME MILITAR, EXILIO, DIFICULDADE, DEBATE, ASSUNTO, FOME, INSTRUMENTO, MANIPULAÇÃO, SOCIEDADE, INFLUENCIA, MANIFESTAÇÃO, CULTURA, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE), PROJETO, NATUREZA SOCIAL, IMPORTANCIA, INICIATIVA, FUNDAÇÃO, PRESERVAÇÃO, OBRAS, RECONHECIMENTO, EMPENHO, MELHORIA, POPULAÇÃO, BAIXA RENDA, NECESSIDADE, CONCLUSÃO, BIBLIOTECA, MEMORIAL.
  • DEFESA, ALTERAÇÃO, POLITICA, ASSISTENCIA, POPULAÇÃO, AMPLIAÇÃO, PROJETO, EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO PROFISSIONAL, CRITICA, UTILIZAÇÃO, PARTIDO POLITICO, PROGRAMA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL, AUXILIO, ELEIÇÃO.
  • IMPORTANCIA, CIENTISTA, DIAGNOSTICO, FOME, NECESSIDADE, COMBATE, DESIGUALDADE SOCIAL, REGISTRO, DECLARAÇÃO, FILHO, ELOGIO, ATUAÇÃO, MISERIA, TENTATIVA, ALTERAÇÃO, HISTORIA, BRASIL.

O SR. JARBAS VASCONCELOS (PMDB - PE. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Exmº Sr. Presidente do Senado, Senador Garibaldi Alves; Sr. Senador Cristovam Buarque; Srª Socióloga Anna Maria Castro, filha do homenageado, Josué de Castro; Sr. Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias; Sr. Prefeito da cidade do Recife, João Paulo Lima e Silva; e Srª Tereza Sales, Presidente do Centro Josué de Castro. Ainda presentes à solenidade o Sr. José Arlindo Soares, Diretor-Técnico do Centro Josué de Castro; o Sr. Francisco de Assis Machado dos Santos, representante da Fundação Banco do Brasil;

Srs. Embaixadores e demais membros do Corpo Diplomático; Srs. Deputados Federais, representando aqui a Câmara dos Deputados; Sr. Romero de Oliveira Andrade, Desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco, aqui representando aquela Corte; Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores; senhoras e senhores convidados.

Quero, nestas minhas primeiras palavras, agradecer a presença de todos que deixaram os seus afazeres diários, para vir hoje ao Senado Federal e participar desta sessão solene em homenagem aos 100 anos de nascimento de Josué de Castro.

Trata-se de uma iniciativa conjunta do Senador Cristovam Buarque e deste orador, com o apoio de todos os que têm assento nesta Casa. Minha sincera gratidão a todos.

Lembrar a vida e a obra desse nobre pernambucano é manter acesa a chama da luta contra a pobreza e a fome, que infelizmente continuam manchando a agenda mundial em pleno século 21. No entanto, o tema não é mais um tabu como era na década de 1930, quando Josué de Castro iniciou sua cruzada para derrubar preconceitos e idéias pré-concebidas.

Josué de Castro foi o primeiro cientista brasileiro a ter o reconhecimento internacional. Seu livro mais conhecido, Geografia da Fome, editado pela primeira vez em 1946, foi traduzido para 25 idiomas.

Nosso homenageado de hoje nasceu na cidade do Recife, em 1908. Vinte e um anos depois se formava em Medicina pela Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil. Começava uma trajetória intelectual e acadêmica admirável, que abriria as portas para uma atuação política também referencial.

Josué foi Livre-Docente de Fisiologia da Faculdade de Medicina do Recife, Professor Catedrático de Geografia Humana da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais do Recife, Professor Catedrático de Antropologia da Universidade do Distrito Federal, Professor Catedrático de Geografia Humana da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil.

Essa excelência científica, Sr. Presidente, levou Josué de Castro a expor suas idéias - para muitos perigosas - em dezenas de países, onde pregou contra a miséria, contra o subdesenvolvimento e suas conseqüências sobre as populações em todos os continentes.

Entre as décadas de 1930 a 1970, Josué de Castro teve uma ascendente atuação social e política, que o levou a exercer o mandato de Deputado Federal pelo Estado de Pernambuco, entre 1954 e 1962. Em seguida, foi Embaixador do Brasil na ONU em Genebra, de 1962 a 1964.

A trajetória de Josué, Srªs e Srs. Senadores, foi interrompida em conseqüência do Golpe Militar de 31 de março de 1964 que, por meio do Ato Institucional Nº 1, lhe cassou os direitos políticos, em 9 de abril do mesmo ano.

Enviado para o exílio pelo regime de exceção, como tantos outros brasileiros honrados, Josué de Castro viu crescer seu prestígio internacional durante a década de 1960, quando a política em todo o mundo viveu uma efervescência única, que viria a influenciar, de forma contundente as décadas seguintes. Nesse período, Josué foi integrante de várias Associações e Academias no Brasil e no exterior.

Josué de Castro fundou e presidiu o Centro Internacional para o Desenvolvimento, sediado em Paris. Também foi Presidente da Associação Médica Internacional para o Estudo e Condições de Vida e Saúde e Professor Estrangeiro Associado ao Centro Universitário Experimental de Vincennes, na Universidade de Paris, entre 1968 a 1973.

Exilado em Paris, França, o político e intelectual pernambucano veio a falecer em 24 de setembro de 1973.

Sr. Presidente, quantos intelectuais têm o privilégio de manter vivos os seus ideais, geração após geração? Muito poucos. Nesse grupo restrito está Josué de Castro. Além de ser uma referência para médicos, sociólogos, gestores e pensadores sociais, Josué foi uma das principais influências do Movimento Mangue, criado em Pernambuco em meados da década de 1990, com inspiração na música, na literatura, nas artes plásticas e na moda.

Josué também foi referência no trabalho de Herbert de Souza, Betinho, que fundou nos anos 90 a Ação da Cidadania. Um movimento que existe até hoje sob o preceito de que democracia e miséria são incompatíveis.

Em Pernambuco, temos o Centro Josué de Castro, que mantém viva a memória e os pensamentos de seu patrono, mas também atua em diversas parcerias com o setor público e a iniciativa privada para mudar a realidade dos setores menos favorecidos da sociedade.

O Centro é pioneiro no chamado Terceiro Setor do Brasil, pois foi criado ainda em 1979, em plena ditadura militar, por um grupo altruísta de pesquisadores, educadores e técnicos da área social.

A luta atual do Centro é para concluir a Biblioteca e o Memorial Josué de Castro que, quando concluídos, reunirão cerca de 15 mil livros e documentos inéditos, se constituindo num dos centros culturais e de pesquisa mais importantes do Brasil.

Srªs e Srs. Senadores, Josué de Castro se tornou ainda em vida um profeta do combate à fome, uma luta que classificou como “bastante delicada e perigosa”. Isso, no entanto, não impediu que ele dedicasse toda a sua vida, toda a sua trajetória pessoal, política e profissional à causa do combate à miséria.

Entre os méritos de Josué de Castro está o de apontar que “a fome é a expressão biológica de males sociológicos”. A partir dessa premissa, ele demoliu mitos que apenas justificavam a fome, como é o caso da superpopulação.

Outro aspecto fundamental do trabalho de Josué foi ter apontado como um fenômeno muito mais freqüente e mais grave a chamada “fome parcial” ou “fome oculta”, por meio da qual - com a falta permanente de determinados elementos nutritivos, em seus regimes habituais - grupos inteiros de populações morrem lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias.

E por que não lembrar as preocupações ambientais de Josué de Castro? Ele foi um dos primeiros pensadores contemporâneos a enxergar nosso Planeta Terra como um único ser vivo e não como um mero endereço residencial e comercial da espécie humana.

Disse Josué, de forma clara, transparente e com a contundência que é própria do raciocínio simples:

Vivemos atualmente num mundo que é um organismo vivo, unitário, onde todas as partes estão indissoluvelmente ligadas, o que significa que, desde que uma dessas partes sofra de fome e esteja ameaçada de morrer e apodrecer na miséria, todo o organismo está ameaçado pela mesma infecção.

Esse é um diagnóstico, Sr. Presidente, brilhante na sua clareza, exemplar no seu poder de sintetizar a necessidade do ser humano suprir suas necessidades, sem abusar dos recursos naturais e dos seus semelhantes. Não é uma concepção científica fria, laboratorial. Trata-se de uma avaliação humanista, superior, muito à frente de seu tempo.

Quem deseja mudar o mundo para melhor jamais pode abrir mão dos seus sonhos, recuando diante dos primeiros obstáculos. E Josué de Castro, apesar do reconhecimento internacional por seu trabalho, não teve vida fácil. Muito pelo contrário. O tema “delicado e perigoso” não agradava os poderosos, para os quais a pobreza serve mais como um instrumento de manipulação política.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, Srªs. e Srs. Convidados, a retomada da democracia no Brasil em meados da década de 1980 pôs de volta o tema do combate à fome e à miséria na agenda da nossa sociedade.

No entanto, só a partir dos anos de 1990 é que uma política consistente passou a ser implementada, principalmente com a criação do Programa Comunidade Solidária, comandado pela saudosa e admirável Ruth Cardoso, durante os oito anos do Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002.

Programas como Bolsa Escola, criado a partir de uma iniciativa do então Governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque, que hoje honra o Senado da República, passaram a integrar administrações as mais variadas no espectro ideológico brasileiro. O combate à fome e à miséria, pelo menos no Brasil, deixou de ser uma bandeira apenas da esquerda. Transformou-se num programa de Estado e não deste ou daquele Governo, deste ou daquele partido.

No atual Governo, programas como o Bolsa Escola, o Bolsa Alimentação, o Vale Gás e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil tiveram seus cadastros unificados no âmbito do Bolsa Família, que hoje beneficia 11 milhões de famílias ou cerca de 45 milhões de pessoas.

O grande desafio é compreender que precisamos criar uma porta de saída para a política assistencial. E o caminho está na Educação e na Formação Profissional. Não há como alguém ser contra programas que visam a dar de comer a quem tem fome. E não se trata de oportunismo político, mas de solidariedade humana.

São princípios que estão presentes em todas as grandes religiões, de alimentar quem tem fome e saciar quem tem sede.

O que não podemos concordar - e para isso podemos nos lembrar das palavras de Josué de Castro - é com a manipulação e o uso político-partidário que se faz de um programa que é de Estado e não desse ou daquele governante em especial.

Atendendo em parte os objetivos preconizados por Josué de Castro, o combate à fome entrou na agenda política não apenas do Brasil, mas da própria comunidade internacional. A questão é que o avanço das novas tecnologias e o aprofundamento de alguns conflitos de ordem política e religiosa terminaram por criar novos e confusos muros, um preocupante e incógnito cenário que alguém já ousou batizar como Choque de Civilizações.

Basta observar atentamente o que ocorre no Continente Africano, onde as riquezas naturais não só são insuficientes para financiar o combate à fome e à miséria, como também servem de pretexto para assassinatos e violações em massa de populações inocentes. Na maior parte do mundo, a riqueza e a desigualdade ainda caminham lado a lado. Enquanto essa perversa equação não for solucionada, veremos o ser humano submetido à miséria e à injustiça.

Alguém já afirmou certa vez que a melhor maneira de se tornar universal é não perder de vista o que acontece ao nosso redor. Pois foi assim, Sr. Presidente, que Josué construiu uma obra que ao escrever sobre problemas brasileiros terminou identificando as origens de um problema de escala planetária.

Gostaria agora de reproduzir parte de um texto que Josué de Castro escreveu em maio de 1953, especialmente para o prefácio da sua primeira edição popular do livro Geografia da Fome, a sua obra mais conhecida internacionalmente.

Enquanto alguns apregoam que para salvar o país se faz necessária a reeducação das elites, aparentemente tão desviadas de seus deveres cívicos, de dirigir a vida pública, eu sou daqueles que acreditam que a nossa salvação está muito mais na educação adequada das massas, no seio das quais se encontram enormes reservas humanas até hoje deixadas à margem da ação política e social pela falta de recursos educacionais adequados e melhor distribuídos.

Em pleno século 21, infelizmente, a fome à qual se referiu Josué de Castro ganhou atuais e desafiadores contornos. Ela hoje não é apenas a situação de míngua, a escassez de alimento, a penúria, a miséria - tão evidentes durante o conturbado século passado. O uso do advérbio se faz necessário porque a fome diagnosticada por Josué de Castro permanece manchando a civilização contemporânea como uma chaga, um câncer sem cura.

O mais grave, no entanto, Srªs e Srs. Senadores, é que o avanço tecnológico e a era da informação tornaram mais dramática e premente a necessidade de se combater com fervor e consistência o abismo que separa os pobres e os ricos.

A complexidade, Srªs Senadoras e Srs. Senadores, do problema alimentar, exposta com pioneira perspectiva por Josué de Castro, só se sofisticou nas últimas décadas. E esta diferença não se pode avaliar apenas pelo aspecto do consumo, de quem compra mais ou menos.

Nos últimos anos, o quanto as famílias consomem passou a ser um referencial quase que mágico para muitos analistas - dentro e fora do Governo. A meu ver, este é um imenso e aterrador equívoco político.

Sou favorável à consolidação de um forte e importante mercado consumidor no Brasil, mas isso é insuficiente para se construir uma sociedade mais justa.

No Brasil de 2008, existe uma grande fome a ser combatida, a ser debelada definitivamente: é a fome do conhecimento, é a carência do saber. Não foi por outra razão que Josué de Castro dizia que a salvação da nossa civilização está em assegurar Educação de qualidade para o nosso povo.

Como afirmou a professora Anna Maria de Castro, filha de Josué, a vida deste pernambucano foi uma grande lição de engajamento em sua própria realidade, sua própria cultura. Josué tentou criar, Sr. Presidente, uma teoria explicativa para a triste realidade do subdesenvolvimento, da pobreza e da miséria. Tentou modificar a história de seu país.

Anna, quero assegurar que concordo plenamente com você: é este homem que o Brasil de hoje precisa deixar de ignorar. Viva Josué de Castro.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/08/2008 - Página 29533