Discurso durante a 139ª Sessão Especial, no Senado Federal

Homenagem à memória do médico e geógrafo Josué de Castro pelo transcurso do centenário de seu nascimento.

Autor
José Nery (PSOL - Partido Socialismo e Liberdade/PA)
Nome completo: José Nery Azevedo
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. DIREITOS HUMANOS.:
  • Homenagem à memória do médico e geógrafo Josué de Castro pelo transcurso do centenário de seu nascimento.
Publicação
Publicação no DSF de 08/08/2008 - Página 29542
Assunto
Outros > HOMENAGEM. DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, ANIVERSARIO, JOSUE DE CASTRO, GEOGRAFO, MEDICO, ESCRITOR, SOCIOLOGO, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE), ESFORÇO, COMBATE, DESIGUALDADE SOCIAL, RECONHECIMENTO, AMBITO INTERNACIONAL, PARTICIPAÇÃO, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ALIMENTAÇÃO E AGRICULTURA (FAO), ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), IMPORTANCIA, OBRA INTELECTUAL, ESPECIFICAÇÃO, GEOGRAFIA, FOME, DEMONSTRAÇÃO, VINCULAÇÃO, MISERIA, NATUREZA POLITICA.
  • COMENTARIO, CRISE, ALIMENTOS, CRITICA, MODELO, AGRICULTURA, EXCLUSIVIDADE, LAVOURA, TRANSPOSIÇÃO, RIO SÃO FRANCISCO, LIBERAÇÃO, CULTIVO, VEGETAIS, ALTERAÇÃO, GENETICA.
  • IMPORTANCIA, MELHORIA, JUSTIÇA, APOIO, ORADOR, REVISÃO, LEI DE ANISTIA, INICIATIVA, MINISTRO DE ESTADO, MINISTERIO DA JUSTIÇA (MJ), CHEFE, SECRETARIA ESPECIAL, DIREITOS HUMANOS, NECESSIDADE, PUNIÇÃO, RESPONSAVEL, TORTURA, EXILIO, PERIODO, DITADURA, REGIME MILITAR.
  • SAUDAÇÃO, INICIATIVA, CRISTOVAM BUARQUE, JARBAS VASCONCELOS, SENADOR, CRIAÇÃO, SESSÃO ESPECIAL, HOMENAGEM, JOSUE DE CASTRO, GEOGRAFO, MEDICO, SOCIOLOGO, ESCRITOR, NECESSIDADE, REALIZAÇÃO, HOMENAGEM POSTUMA, ARCEBISPO.

O SR. JOSÉ NERY (PSOL - PA. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente Senador Jarbas Vasconcelos, saúdo o Sr. Ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias; saúdo a socióloga Anna Maria Castro, filha do homenageado; bem como o Senador Cristovam Buarque; a Srª Tereza Sales, Presidente do Centro Josué de Castro; o Sr. Prefeito de Recife, João Paulo Lima e Silva; saúdo também outras autoridades presentes: o Desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Dr. Romero de Oliveira Andrade; Dom Mauro Morelli, a quem homenageio pela luta em defesa dos excluídos e de combate à fome em nosso país; o Patriarca da Igreja Ortodoxa; saúdo as senhoras e senhores membros e presidentes de organizações não-governamentais; a todos os Srs. Senadores e a todas as Srªs Senadoras e a todos os pernambucanos e pernambucanas que comparecem a esta sessão do Senado em homenagem a um grande brasileiro. Quero cumprimentar, com uma saudação especial, os Senadores Jarbas Vasconcelos e Cristovam Buarque, proponentes desta sessão especial a que, com certeza, todo o Senado Federal se associa.

Sr. Presidente, minhas senhoras e meus senhores, “um dos traços fundamentais de Josué de Castro era a sua clarividência. A clarividência é uma virtude que se adquire pela intuição, mas sobretudo pelo estudo. É tentar ver a parte do presente que se projeta no futuro”. Estas não são palavras minhas; elas pertencem ao também geógrafo Milton Santos.

É rica a biografia de Josué de Castro, já mencionada pelos oradores que me antecederam, mas não é demais repetir alguns feitos da extraordinária trajetória desse brasileiro que nasceu em Recife, em 1908. Formou-se em Medicina pela Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil, em 1929; foi Livre-docente em Fisiologia na Faculdade de Medicina do Recife, em 1932; professor catedrático de Geografia Humana na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais do Recife, de 1933 a 1935; de Antropologia, na Universidade do Distrito Federal, de 1935 a 1938; e de Geografia Humana, na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, de 1940 a 1964.

O médico, sociólogo, político e geógrafo Josué de Castro foi responsável pela colocação do tema “fome” na pauta acadêmica e política de nosso País e do mundo, e falou, com muita simplicidade, como teve contato com essa temática.

O próprio Josué de Castro revela que não foi na Sorbonne nem em qualquer outra universidade que travou conhecimento com o fenômeno da fome, mas na sua convivência, nos mangues, com os pobres, com os moradores dos bairros de Recife. Esses seres humanos, às vezes, até se pareciam, pensavam e se sentiam como caranguejos. E foi nessa realidade que ele conheceu e vivenciou o tema da fome.

Josué de Castro, em 1933, chefiou a Comissão que realizou o inquérito sobre as Condições de Vida das Classes Operárias do Recife, que foi o primeiro dessa natureza levado a efeito no País. Três anos mais tarde, foi membro da Comissão de Inquérito para Estudo da Alimentação do Povo Brasileiro, realizado pelo Departamento Nacional de Saúde. Dedicou sua vida ao estudo do fenômeno e ao combate à fome; foi idealizador, organizador e Diretor do Serviço Central de Alimentação, depois transformado no Serviço de Alimentação da Previdência Social, de 1939 a 1941; foi Presidente da Sociedade Brasileira de Alimentação, de 1942 a 1944; foi idealizador e Diretor do Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil em 1946.

Em 1946, publicou o livro Geografia da Fome. Esta obra colocou a fome no panorama político. Na oportunidade, Josué de Castro buscava identificar os motivos de a fome aparecer como um verdadeiro tabu nos debates políticos e acadêmicos:

Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econômicos das minorias dominantes também trabalhavam para escamotear o fenômeno da fome do panorama espiritual moderno. É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo interessava que a produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos - dirigidos e estimulados dentro de seus interesses econômicos - e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública.

Em 1947, Josué de Castro foi Delegado do Brasil na Conferência de Alimentação e Agricultura nas Nações Unidas, convocado pela FAO. De 1952 a 1956, foi Presidente do Conselho da Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas. Foi Deputado Federal pelo Estado de Pernambuco, de 1954 a 1962. Em seguida, tornou-se Embaixador do Brasil na ONU. Demitiu-se em virtude do golpe militar de 31 de março de 1964, que, através do Ato Institucional nº 1, cassaria seus direitos políticos em 09 de abril do mesmo ano.

Portanto, nada mais oportuno do que comemorar o centenário do nascimento de Josué de Castro no momento em que o mundo atravessa uma crise alimentar, crise esta que afeta diretamente o nosso País.

É uma oportunidade para registrar que o atual modelo agrícola privilegia o agronegócio, produzindo os desertos verdes das monoculturas de eucalipto, pinus, soja, cana-de-açúcar e algodão, a migração de milhares de assalariados superexplorados e o trabalho escravo; que o incentivo massivo ao biocombustível como uma das matrizes energéticas representa mais uma ameaça à soberania e à segurança alimentar, pois a tendência é a expansão dos monocultivos nos vários biomas; que a liberação dos transgênicos pelo Governo brasileiro negou o princípio da precaução e colocou em risco a saúde da população e o meio ambiente; que os grandes projetos de integração e infra-estrutura para a Amazônia e a América do Sul, conhecidos como IIRSA, e o Projeto de Transposição do rio São Francisco não garantem o acesso à água às populações mais vulneráveis, aprofundando a concentração de terras e provocando a expulsão das populações locais e tradicionais, colocando em risco a segurança alimentar e nutricional das famílias que vivem no entorno das áreas envolvidas com esses projetos.

Observei, quando o Senador Jarbas Vasconcelos fazia, aqui, o seu pronunciamento de homenagem, que S. Exª falou da fome do conhecimento, da fome da educação, por cuja erradicação é necessário e urgente trabalharmos. Eu diria que, igualmente, temos fome de justiça em nosso País: de justiça social, de igualdade, de respeito aos direitos fundamentais, diante de tantas tragédias, de tanta violência e insegurança, do desprezo aos direitos dos povos ancestrais e tradicionais. A violência é cometida todos os dias, todas as horas, por atos, por palavras, por medidas, muitas vezes por agentes do próprio Estado ou agentes do poder econômico que dominam a sociedade. Eu diria que há fome de justiça também pela punição daqueles que, em passado recente, no período do regime de exceção e da ditadura, promoveram atos de brutalidade, de tortura, de violência institucional, de cassação de direitos.

Josué de Castro foi uma das vítimas dessa violência do Estado brasileiro, no regime militar. Era representante do Brasil na ONU e cassaram seus direitos políticos.

Talvez alguém me pergunte: “Mas por que o senhor fala em fome de justiça?“ Porque o Brasil, na verdade, tem fome de justiça para garantir a punição exemplar daqueles que cassaram, mataram e torturaram. Falo disto porque, nesses dias, por iniciativa de dois Ministros da República, Tarso Genro e Paulo Vannuchi, veio à tona o tema da revisão da Lei da Anistia, que, perversamente, trata como crimes conexos aqueles praticados como atos de combate, de enfrentamento ao regime vigente à época, a ditadura, e daqueles que cometeram a violência da tortura sob todas as formas.

Ao trazer esse tema para o debate na sociedade brasileira, por meio de um seminário, percebemos, tristemente, que vários setores da sociedade brasileira - o que lamento - fazem reprimendas públicas, ou mesmo veladas, à iniciativa de tratar do assunto “punição dos torturadores”, seja ela tortura física ou psicológica, seja ela a tortura do exílio e da saudade, o que levou à morte Josué de Castro, em 23 de setembro de 1973. Com certeza, iniciativas dessa natureza devem merecer de toda a sociedade - do Parlamento, da imprensa, dos sindicatos, dos movimentos sociais -, enfim, dos que têm responsabilidade com a construção de um País mais justo, mais digno e verdadeiramente democrático, o mais veemente repúdio, para que não se deixe a história ser jogada debaixo do tapete. É preciso, verdadeiramente, passar o Brasil a limpo. Isto significa punir, com rigor, aqueles que, na ditadura, usando de todos os mecanismos possíveis para intimidar, caluniar, prender, cassar, torturar e assassinar, hoje, vivem por aí, livres, leves e soltos como a zombarem daqueles que perderam seus entes queridos, dos que foram vítimas de um dos períodos mais tristes da nossa história.

Portanto, Srªs e Srs. Senadores, Srªs e Srs. convidados, ao homenagearmos Josué de Castro, que lutou e combateu a fome - a fome de alimentos, a fome da nutrição necessária à vida humana, a fome de conhecimento de que falava o nosso Senador pernambucano Jarbas Vasconcelos, a fome de educação - elenco mais uma: a fome de justiça. E isso faz com que possamos, todos, nos empenhar para que o Brasil, que há vinte e poucos anos encerrou o período da ditadura, possa se libertar.

Quem trata desse tema quer provocar a cizânia, quer abrir feridas? Não. As feridas existem, estão abertas; e só há um jeito de curá-las: fazermos um acerto de contas com a história, Senador Cristovam Buarque.

O Governo do Presidente Lula tem de ter a responsabilidade, a coragem e a ousadia de promover, sim, a revisão da Lei da Anistia, para punir todos os criminosos que, como agentes do Estado brasileiro, expulsaram, mataram, cassaram, violentaram a vida de milhares de brasileiros. E a primeira medida a ser tomada com esse fim seria a abertura dos arquivos da ditadura para saber onde estão todos os vitimados pela violência institucional do regime militar.

Senador Cristovam Buarque, talvez, muitos podem estar se perguntando: “Por que falar desse período numa homenagem a Josué de Castro?” Porque o seu senso de humanismo, de justiça, de igualdade, de decência, pede para combater a fome, para combater a miséria, para combater o analfabetismo, por meio da educação, e também para que se faça justiça, punindo exemplarmente aqueles que, inclusive, foram responsáveis por Josué de Castro não retornar ao nosso País e aqui não pudesse desenvolver, até o último dos seus dias, seus projetos, pesquisas, estudos, ajudando-nos, como bem poderia ter feito em boa parte da sua vida, quando foi obrigado, inclusive, a se exilar do País.

É por essa razão que, ao brilhantemente proporem essa homenagem a Josué de Castro, os Senadores Cristovam Buarque e Jarbas Vasconcelos merecem de todos nós o reconhecimento e o agradecimento pela oportunidade.

Falar sobre Josué de Castro faz-me lembrar de outra iniciativa proposta pelo Senador Cristovam Buarque, que solicitou - e me parece já está aprovada - a realização de uma outra sessão especial para homenagear um cearense de origem, mas um pernambucano de corpo e alma: Dom Hélder Câmara, cujo falecimento, no dia 28 próximo, completa nove anos. Tenho certeza de que os pernambucanos e pernambucanas se orgulham muito de, ao longo daquele período tão difícil da vida nacional, haver tido um religioso, o Bispo da Teologia da Libertação, dos pobres, oprimidos e perseguidos, que não se cansou de defendê-los. Essa importante figura da nacionalidade também será homenageada no final deste mês por este Senado Federal.

Assim, neste mês de agosto, o Senado Federal, que muitas vezes é marcado por fatos que o diminuem, terá pelo menos dois grandes motivos para nos trazer orgulho: a homenagem a dois brasileiros da coerência, da história e da trajetória de Josué de Castro e de Dom Hélder Câmara.

Minhas saudações a todos e um grande abraço!

Parabéns pela iniciativa, e a certeza de que precisamos continuar juntos, lutando para que o nosso País possa, verdadeiramente, encontrar-se com o seu destino, aliás, não é isso que querem os especuladores, os poderosos, os quais, todos os dias, inventam fórmulas de continuar dominando nossa gente, nosso povo.

Vamos nos unir, cada vez mais, para promovermos as mudanças que o Brasil realmente precisa para ser um País mais digno e mais justo!

Muito obrigado. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/08/2008 - Página 29542