Discurso durante a 140ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Associação ao pronunciamento da Senadora Marina Silva. Reflexões sobre o debate acerca do termo de revisão da Lei de Anistia. (como Líder)

Autor
José Nery (PSOL - Partido Socialismo e Liberdade/PA)
Nome completo: José Nery Azevedo
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA FUNDIARIA. DIREITOS HUMANOS.:
  • Associação ao pronunciamento da Senadora Marina Silva. Reflexões sobre o debate acerca do termo de revisão da Lei de Anistia. (como Líder)
Publicação
Publicação no DSF de 08/08/2008 - Página 29718
Assunto
Outros > POLITICA FUNDIARIA. DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • APOIO, MARINA SILVA, SENADOR, IMPORTANCIA, ZONEAMENTO ECOLOGICO-ECONOMICO, PRE REQUISITO, ORGANIZAÇÃO FUNDIARIA, DEFESA, MOBILIZAÇÃO, POLITICA, SOCIEDADE.
  • ELOGIO, POSIÇÃO, MINISTRO DE ESTADO, MINISTERIO DA JUSTIÇA (MJ), RETOMADA, DEBATE, REVISÃO, LEI DE ANISTIA, REGISTRO, HISTORIA, LEGISLAÇÃO, IMPORTANCIA, PROCESSO, REDEMOCRATIZAÇÃO, LEITURA, ARTIGO, IMPUNIDADE, TORTURA.
  • COMENTARIO, INICIATIVA, AMERICA LATINA, ESPECIFICAÇÃO, PAIS ESTRANGEIRO, CHILE, ARGENTINA, URUGUAI, PERU, REVISÃO, LEGISLAÇÃO, POSTERIORIDADE, DITADURA, NECESSIDADE, ADAPTAÇÃO, DIREITOS HUMANOS.
  • LEITURA, LIVRO, ANALISE, REGIME MILITAR, BRASIL, VIOLAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, DEFESA, PUNIÇÃO, ACUSADO, PARTICIPAÇÃO, TORTURA.
  • COBRANÇA, PRESIDENTE DA REPUBLICA, ABERTURA, ARQUIVO, EXERCITO, ESCLARECIMENTOS, NECESSIDADE, AMPLIAÇÃO, CONHECIMENTO, PERIODO, REGIME MILITAR.

            O SR. JOSÉ NERY (PSOL - PA. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente Virgínio de Carvalho, Srªs e Srs. Senadores, quero me associar à manifestação feita pela Senadora Marina Silva e dizer que, infelizmente, eu não estava presente quando da votação da Medida Provisória que os movimentos sociais consignaram chamar de “MP da Grilagem”.

            Foi uma tentativa de aprovar aqui uma emenda que tentava preservar pelo menos um mecanismo para que, como disse a Senadora Marina, o zoneamento econômico-ecológico fosse uma pré-condição para a regularização fundiária. Infelizmente, o veto do Presidente Lula não ajuda muito nesse esforço que temos feito. Falo não só de nós, Parlamentares, mas também dos movimentos sociais da Amazônia, dos trabalhadores rurais, dos ecologistas, de todos aqueles que têm compromisso com um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia, em que a regularização fundiária é aspecto fundamental para colocar termo à destruição e, evidentemente, com a busca que fazemos para um novo modelo de desenvolvimento para a região.

            Associo-me às preocupações manifestadas pela Senadora Marina Silva e afirmo que só um processo de mobilização social mais efetivo e, principalmente, uma tomada de consciência política de vários setores da sociedade, em nossa região e que esses setores da sociedade enviem para o Congresso Nacional uma representação e possa ecoar aqui não só a voz, mas também o compromisso do voto por mudanças efetivas que ajudem a mudar os padrões de desenvolvimento, dos planos de desenvolvimento que têm sido concebidos e, invariavelmente, têm significado destruição da floresta, crimes no campo, enfim, toda a sorte de desatinos que infelizmente atingem os mais pobres e os excluídos.

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Senador Paulo Paim, Presidente da Comissão de Direitos Humanos, o tema que vou enfocar aqui tem exatamente a ver com a dimensão da luta por justiça e direitos humanos em nosso País.

            Nos últimos dias o termo de revisão da Lei de Anistia voltou a ser debatido em nosso País. Após posicionamento favorável do Ministro da Justiça, Tarso Genro, iniciou-se intenso debate dentro e fora do Governo e do Parlamento, sem falar na manifestação de vários setores da sociedade, em relação à revisão da Lei da Anistia.

            A Lei da Anistia foi importante conquista do povo brasileiro e se insere num momento de enfraquecimento da ditadura militar, da perda de apoio político dos militares e de ascenso das lutas populares em nosso País.

            Esse processo desembocou na chamada redemocratização do País e na elaboração de uma nova carta política em 1988.

            No seu art. 1º, a Lei 6.683, de 1979, concede benefícios “a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de Fundações vinculadas ao Poder Público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”.

            Concordamos com o jornalista Hélio Bicudo, brasileiro incansável na defesa dos direitos humanos, que afirma que a referida lei considera “crimes conexos”, para os seus efeitos, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados com motivação política.”

            Contudo, a brecha jurídica dos chamados “crimes conexos” foi utilizada por juristas e pelos militares para anistiar todos aqueles agentes do Estado que cometeram tortura naquele período.

            Esse debate também é influenciado pela postura dos paises vizinhos que passaram igualmente pela experiência traumatizantes dos regimes de exceção no mesmo período.

            No ano de 2005, a Corte Suprema de Justiça da Argentina considerou que eram incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos as leis de Ponto Final ( Lei nº 23.492/86) e de Obediência Devida (Lei nº 23.521/87), que impediam o julgamento de violações cometidas no regime repressivo de 1976 a 1983, abrindo a possibilidade de julgamento de militares por crimes praticados durante a repressão. Igual procedimento teve a justiça chilena: o Decreto-Lei de nº 2.191/78, que previa anistia aos crimes perpetrados de 1973 a 1978. Fatos semelhantes aconteceram no Uruguai e no Peru.

            Srªs e Srs. Senadores, qual é a definição de tortura? A Convenção contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas e Degradantes, subscrita e ratificada pelo Brasil e incorporada ao nosso ordenamento jurídico, com força de lei, define tortura da seguinte forma:

Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter dela ou de terceira pessoa informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência”

            Em 1994, o então Cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, escreveu no prefácio do livro O Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil:

Tocar nos corpos para machucá-los e matar. Tal foi a infeliz, pecaminosa e brutal função de funcionários do Estado em nossa Pátria brasileira, após o golpe militar de 1964.

Tocar nos corpos para destruí-los psicologicamente e humanamente. Tal foi a tarefa ignominiosa de alguns profissionais da Medicina e de grupos militares e paramilitares durante 16 anos em nosso País. Tarefa que acabamos exportando ao Chile, Uruguai e Argentina. Ensinamos outros a destruir e a matar. Lentamente e sem piedade. Sem ética nem humanismo.

            É sobre os agentes do Estado que cometeram esses crimes contra centenas de brasileiros, muitos dos quais continuam até hoje como “desaparecidos”, cujas famílias não conseguem o direito de enterrá-los dignamente, que estamos falando.

            A Lei da Anistia não incorporou o perdão para os torturadores. A reação das forças conservadoras, inclusive dos militares da reserva, é sintomática nas feridas abertas que precisam ser expostas e tratadas. Crime de tortura é crime hediondo, crime contra a humanidade. Não pode haver perdão, tem que haver punição.

            Sou favorável à revisão da legislação para evitar o seu uso como suporte para a impunidade a atos de tortura, todos cometidas sob o manto protetor do Estado Brasileiro.

            Recorro novamente ao jurista Hélio Bicudo, que, ao comentar a exposição de motivos enviada pelo então Presidente João Batista de Figueiredo, afirma que:

Os agentes do Estado que violaram os direitos humanos desses políticos não cometeram crimes políticos, mas crimes contra a humanidade, que não podem encontrar abrigo na lei, como afirma o então general-presidente da República ao encomendar a aprovação do projeto pelo Congresso Nacional: em outras palavras, as ações contra a humanidade são repelidas pela comunidade internacional. Não poderiam ser reconhecidas pelo Estado nacional.

            O Brasil precisa passar a limpo a sua história recente. Para isso, é necessário punir todos aqueles que, em nome do Estado brasileiro, torturaram e mataram cidadãos e cidadãs.

            Espero que, mais uma vez, este debate, em nome do esquecimento que mais parece um acobertamento, de um perdão que mais parece conivência, não seja encerrado sem resultados práticos.

            Encerro, lendo para os senhores e as senhoras um trecho do Manual da Inquisição, escrito no século XIV, que certamente inspirou e justificou a prática de tortura no Brasil. Faço isso na esperança de que essa prática não apenas seja banida no presente, mas punida pelo praticado no passado recente no nosso País.

(...) O réu indiciado que não confessar durante o interrogatório, ou que não confessar, apesar da evidência dos fatos e de depoimentos idôneos; a pessoa sobre a qual não pesarem indícios suficientemente claros para que se possa exigir a abjuração, mas que vacila nas respostas, deve ir para a tortura. Igualmente, a pessoa contra quem houver indícios suficientes para se exigir a abjuração.

(...) Finalmente, quando se pode dizer que alguém foi “suficientemente torturado”? Quando parecer aos juízes e especialistas que o réu passou, sem confessar, por torturas de uma gravidade comparável à gravidade dos indícios. Entenderão, portanto, que expiou suficientemente os indícios através da tortura. Como o réu confirma a confissão efetuada sob tortura? O escrivão pergunta-lhe depois da tortura: “Lembras-te do que confessaste ontem ou anteontem sob tortura? Então, repete tudo agora com total liberdade”. E registra a resposta. Se o réu não confirmar, é porque não se lembrou e, então, é novamente submetido à tortura.

Sr. Presidente, Srs. Senadores, o Ministério da Justiça e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, comandados pelo Ministro Tarso Genro e pelo Ministro Paulo Vannuchi, realizaram recentemente um seminário sobre esse tema, que despertou declarações apaixonadas de quem não quer que a Lei da Anistia seja revista e que possamos, finalmente, fazer um ajuste de contas com um passado que levou à morte centenas de brasileiros.

Creio que é um dever do Congresso Nacional - e em especial do Senado - trabalhar para que esses crimes sejam não só esclarecidos. Inclusive, cobro do Governo Lula a abertura dos arquivos secretos da ditadura, para que se tenha amplo conhecimento de tudo o que de mau se fez naquele período, de quanta brutalidade foram capazes os agentes do Estado Brasileiro. Identificar e informar onde estão os desaparecidos e onde foram enterrados é uma exigência da consciência democrática deste País e dos que não se acomodam diante das negativas oficiais de que tratar esse tema é abrir feridas. Mas eu diria que não é abrir feridas, porque essas feridas estarão expostas enquanto o Brasil não se dispuser a passar a limpo a história recente do País, que teve na tortura um mecanismo violento, inaceitável, para a perseguição daqueles que se opunham, por palavras e atos, aos que governavam o País em período tão recente da nossa história.

            É a nossa contribuição, é a nossa manifestação, Sr. Presidente. Agradeço a paciência e saúdo o Senador Paim, que tão atentamente acompanha este nosso depoimento, esta nossa manifestação. Com certeza, este tema chegando aqui - a revisão da anistia -, teremos, no Senador Paim, um dos mais dignos defensores dos direitos humanos neste País, um companheiro, um Senador dos mais brilhantes a empunhar essa bandeira em nome da justiça, da liberdade e da construção de um Brasil sem exclusão, de um Brasil onde esses fatos sejam todos esclarecidos.

            Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/08/2008 - Página 29718