Discurso durante a 174ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Comemoração ao centésimo aniversário de nascimento de Salvador Allende, ex-Presidente da República do Chile.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. EDUCAÇÃO.:
  • Comemoração ao centésimo aniversário de nascimento de Salvador Allende, ex-Presidente da República do Chile.
Aparteantes
Eduardo Suplicy, Jarbas Vasconcelos.
Publicação
Publicação no DSF de 18/09/2008 - Página 37901
Assunto
Outros > HOMENAGEM. EDUCAÇÃO.
Indexação
  • ELOGIO, ALOIZIO MERCADANTE, SENADOR, INICIATIVA, REALIZAÇÃO, SESSÃO ESPECIAL, PERIODO, ELEIÇÃO.
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, SALVADOR ALLENDE, EX PRESIDENTE, PAIS ESTRANGEIRO, CHILE, COMENTARIO, HISTORIA, ATUAÇÃO, IMPORTANCIA, DISCURSO, DIA, MORTE, ELOGIO, VIDA PUBLICA, CONTRIBUIÇÃO, DEMOCRACIA, AMERICA LATINA, LUTA, SOCIALISMO.
  • COMENTARIO, HISTORIA, GOLPE DE ESTADO, PAIS ESTRANGEIRO, CHILE, COMPARAÇÃO, TENTATIVA, ATUALIDADE, GOVERNO ESTRANGEIRO, BOLIVIA.
  • DEFESA, MELHORIA, EDUCAÇÃO, REDUÇÃO, DESIGUALDADE SOCIAL.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Boa-tarde a cada uma e a cada um. Sr. Presidente da Mesa, Senador Papaléo Paes, Sr. Embaixador Álvaro Diaz, um grande amigo do Brasil, pelos contatos que já tive; cumprimento também a Srª Embaixatriz do Chile, que nos honra com a sua presença; cumprimento a Srª Miréya Pérez, mãe do nosso Embaixador; o filho e o neto do Embaixador; Srªs Embaixatrizes e Srs. Embaixadores, quero começar parabenizando o Senador Aloizio Mercadante não tanto pela idéia da homenagem, que acho que muitos queriam, mas pela ousadia de propor uma homenagem no meio do período das eleições que acontecem no Brasil, o que obviamente esvazia o Senado Federal.

O Senador Aloizio Mercadante teve a ousadia de reconhecer que o nome Allende seria capaz de justificar uma sessão como esta, mesmo durante um processo eleitoral. Por isso, fico feliz em ver alguns dos Srs. Senadores e tantas pessoas convidadas que aqui vêm prestar homenagem a Allende.

Hoje de manhã, já tivemos uma homenagem, quando o Embaixador Álvaro Diaz colocou uma coroa de flores no busto de Salvador Allende, em Brasília. É possível que poucos saibam, no Brasil inteiro, que aqui em Brasília há um local onde há uma quantidade de bustos de grandes personalidades do mundo inteiro, uma alameda dos próceres, e ali há um busto de Salvador Allende.

Há 15 dias estive em um debate, numa minúscula cidade da França, chamada Niort. E ali, passando no ônibus, vi uma avenida chamada Salvador Allende. Isso está em todo o mundo.

Salvador Allende é um nome que justifica plenamente a ousadia do nosso amigo Mercadante em fazer esta homenagem, mesmo num período de tão pouca presença de Senadores aqui em Brasília, porque ele foi capaz de alguns fatos que o tornaram um dos maiores personagens do século XX em todo o mundo.

Em primeiro lugar, nessa sua importância, coloco a idéia do socialismo, que ele foi capaz de abraçar, idéia que poucos políticos adotam e assumem na história do nosso continente. E, para justificar essa importância dele no mundo inteiro como um dos personagens mais importantes do nosso continente, ele teve a competência de ser um político que chega ao poder pelo voto direto. E teve também a persistência de disputar uma, duas, três, quatro vezes, e chegar à Presidência da República. Mas, sobretudo, o que fez dele esse nome universal foi o gesto de não seguir o exemplo de tantos outros políticos no nosso continente, aos quais nenhum de nós deve criticar, mas que, no momento exato entre dar a vida ou continuar a luta, eles preferiram continuar a luta em outros lugares, em outras posições. O gesto de Salvador Allende, de resistir até o fim, dizendo que resistia, comprometendo-se a resistir e cumprindo a resistência até o último instante da sua vida, é um gesto que, sem dúvida alguma, faz parte de um elenco de qualidades, de fatos da sua vida que o levaram a essa posição privilegiada que ele tem no mundo inteiro. Como poucos outros, como Che, que também fez o gesto de levar a sua idéia, o seu compromisso até às últimas instâncias.

É por isso que estamos aqui; é por isso que, hoje de manhã, prestamos-lhe uma homenagem no seu busto, em Brasília; e é por isso que, nesta tarde, graças à iniciativa do Senador Aloizio Mercadante, estamos lembrando Salvador Allende.

Aqueles que são da minha geração têm uma razão a mais para estar aqui, se não fisicamente, como nós, até sem saber que aqui estamos, pelo menos ligados a esse gesto de homenagem. É porque, na nossa geração, três documentos ficarão para sempre na história do pensamento político brasileiro.

O primeiro é a Carta Testamento do Presidente Getúlio Vargas, que escreveu ali, quase com sangue, que resistiria até às últimas instâncias. Dando a sua própria vida como um gesto que impediu o golpe militar, dizia: “Eu resistirei às forças da reação, às forças que lá de fora tentam impedir o progresso do Brasil”. Esse documento, eu cresci lendo, na parede da minha casa, colocado pelo meu pai.

O segundo documento, de que eu já tive conhecimento com um pouco mais de idade, na minha adolescência, é o discurso A História me Absolverá, de Fidel Castro. Quando aquele menino - era quase um menino -, aquele jovem, diante do tribunal, sabendo que, depois daquele discurso, poderia ser morto com a maior facilidade pelas forças da ditadura do seu país, assume com a convicção imensa de que não importa a vida: “a história me absolverá”. E, em vez de fugir, em vez de se esconder, em vez de pedir desculpas, em vez de fazer qualquer gesto que permitisse absolvê-lo naquele momento, ele preferiu apostar na absolvição pela história, não pelos juízes daquele momento.

E o terceiro documento é o discurso, se a gente pode chamar assim, de Allende, no La Moneda, naquela manhã de 11 de setembro. Ler aquele documento, fruto da transcrição do que se espalhou pelas rádios do Chile naquela manhã, demonstração de sua persistência, de sua coragem; ler a análise que ele faz, sabendo que tinha poucos minutos de vida, é algo que deveria ser obrigatório para as nossas crianças, para os nossos jovens e, sobretudo, para todos os políticos. Ali, no último momento, como fez Getúlio um dia, ele analisa as coisas, mostra por que estão acontecendo e diz que a história vai continuar; e diz, como ali está escrito, de outra maneira, o que disse Fidel, que a “história me absolverá”.

E foi muito mais rápido até do que qualquer um poderia pensar, a ponto de colocarem bustos desse homem em tantos pontos do mundo, e tantas ruas e praças do mundo inteiro terem o seu nome. Isso eu creio que foi conseguido pelo que a gente pode lembrar de palavras que identificam a figura de Salvador Allende, não na ordem de importância, porque cada uma delas carrega a sua importância. Mas, por exemplo, a palavra “diálogo”. Quantos políticos a gente pode carimbar como homem de diálogo, como foi Salvador Allende? Claro que existem, mas não são muitos. Ainda mais, diálogo estando no poder! Porque diálogo, estando na oposição, até que é fácil; mas diálogo, estando no poder, não é fácil. E Allende soube manter o diálogo até o último instante. Na véspera do 11 de setembro, estava ele tentando dialogar com as forças que tentavam dar o golpe, desde que fossem pessoas sérias e decentes.

A democracia. Presidente, naquele momento, é capaz de dar a vida, estando no poder, para manter a democracia. Resistir às tentações que devem ter ocorrido na sua cabeça, que o cercavam, inclusive, como a gente sabe, por muitos que diziam: é possível se antecipar ao golpe e fazer uma medida preventiva que assegure que o poder continuará nas mãos das forças progressistas. E ele preferiu manter o seu compromisso com a democracia.

A consistência do Allende. Desde jovem, é um homem que seguiu uma linha de pensamento, que não houve mudança ao longo de todos os seus quase 65 anos de idade. A consistência do seu pensamento, baseado em duas palavras: socialismo e democracia. Quantos de sua geração não tentaram, em alguns momentos, desviar-se para um lado, saindo do socialismo, ou desviar-se para outro, saindo da democracia, como era absolutamente natural, sobretudo no momento da Guerra Fria, que levava a isso? Ainda mais, dentro da América Latina, em que a presença do império faz com que seja muito difícil construir um processo progressista democraticamente. Mas ele manteve essa consistência.

O sentimento. Um homem de sentimento: primeiro, pelo seu povo; segundo, pelo Chile, a sua pátria; terceiro, pelas pessoas, como vemos nas biografias sobre Salvador Allende. A sensação que tenho é a de que Salvador Allende era um homem que fazia política como se fizesse poesia e não apenas uma engenharia, como muitos fazem política hoje em dia.

Outro ponto fundamental era a oratória de Salvador Allende. Esse discurso do 11 de setembro é uma peça de oratória. Mas o discurso dele nas Nações Unidas, creio que um ano antes, é uma peça marcante de oratória, algo parecido com Aimé Césaire, o poeta, quando falava do colonialismo, com palavras lúcidas de um analista e com um sentimento poético da maior perfeição.

Eu coloco também a audácia. Salvador Allende era um homem de audácia, a própria audácia de, num país latino-americano, como o Chile, enfrentar as visões tradicionais de quase todos nós em relação a como implantar o socialismo, a audácia teórica; e a audácia política de enfrentar as forças da resistência.

A perseverança, a persistência que esse homem tinha. Tentar uma vez, duas vezes, três vezes, quatro vezes, até ser eleito. A persistência de defender cada um dos princípios que ele colocou no seu programa de governo, sem esquecer um único, podendo não conseguir realizá-lo, mas sem deixar de, persistentemente, defendê-lo.

A coragem. Essa talvez seja a palavra mais forte para nós que lembramos daquele 11 de setembro, nos estrondos das bombas que saíam dos aviões. A coragem de ouvir os ruídos, de sentir as paredes caindo, de ver o regime sumindo naquele momento da história, mesmo assim a coragem cívica e a coragem pessoal. Duas coragens que não são a mesma coisa, e ele teve as duas. Há muitas pessoas que têm coragem cívica, há muitas que têm coragem pessoal, raras têm a coragem cívica e a coragem pessoal. Allende tinha as duas.

A competência. Obviamente, tanto a competência política de compor uma frente, o que não é fácil nos nossos países, com tantas divisões partidárias - e ele foi capaz de ter essa competência -, e a competência profissional, ao longo de sua vida.

A liderança. Quando se fala com aqueles que conviveram com Allende, e já tive essa oportunidade muitas vezes, quando se lê a história do Chile recente, vê-se que ali estava um homem que não era apenas um político, ele era um líder. Ele sabia conduzir as coisas, sem impor, mas ele conduzia.

Finalmente, embora pudesse ter outras palavras, mas dessas poucas que coloco, coloco a palavra sonho. Ele era um homem que sonhava. Ele era um político do sonho. Ele não era um político do dia-a-dia, dos jogos da política. Ele não via a política como uma brincadeira que adultos fazem quando são incapazes de outros jogos. Não. Ele via a política como um instrumento para a realização de um sonho para o seu país, para o seu povo e para a humanidade inteira. E essa capacidade de sonhar, com coragem, com audácia, com persistência, com todas essas qualidades que ele tinha, essa capacidade de sonhar é que fez dele o mártir, mas que fez dele o herói, que fez dele aquele que morreu obviamente antes do tempo, com menos de 65 anos de idade, mas, ao mesmo tempo, fez dele um homem que vai viver para sempre, um homem como poucos na história do mundo inteiro e, especialmente, do nosso continente.

Salvador Allende não é um cidadão - desculpe-me, Embaixador - apenas chileno. Salvador Allende é um cidadão do nosso continente, é um latino-americano e é um ser humano, um humanista da melhor qualidade que a humanidade teve; como teve um Ghandi, na Índia, nós tivemos um Allende. Por isso, no centésimo aniversário do seu nascimento, que quase coincide com o trigésimo quinto aniversário da sua morte, do fim da democracia no Chile, creio que é hora de nós sonharmos junto com ele.

Senador Jarbas, V. Exª está pedindo a palavra para um aparte?

O Sr. Jarbas Vasconcelos (PMDB - PE) - Sim, porque tenho um compromisso, nobre Senador.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Com o maior prazer, incluo o seu aparte no discurso.

O Sr. Jarbas Vasconcelos (PMDB - PE) - Obrigado. O ideal era que esta Casa estivesse cheia e essa homenagem não fosse em um momento eleitoral, a menos de três semanas da eleição municipal, mas V. Exª fez muito bem em ressaltar a ousadia do Senador Aloizio Mercadante, marcando para o mês de setembro essa homenagem. Quero louvar a V. Exª e ao orador que o antecedeu, o ilustre Senador Eduardo Suplicy. Não vou falar mais sobre Allende porque V. Exª já disse tudo o que deveria ser dito. Salvador Allende não foi apenas uma figura de destaque no Chile e na América Latina, mas no mundo inteiro. A sua dimensão, a sua sensibilidade, a sua grandeza como político, como homem, como médico, ultrapassou todas as fronteiras do Chile e da própria América Latina, para o caracterizar no mundo inteiro, no século passado, como uma das maiores figuras, um dos maiores estadistas. O que falta dizer neste momento, com relação aos Estados Unidos, é o papel nefasto que estes cumpriram naquela ocasião do assassinato de Salvador Allende. As forças armadas chilenas, por si só, não teriam nível de organização e competência para fazer a deposição e o assassinato do Presidente Salvador Allende. Os Estados Unidos desestabilizaram a economia do Chile, por intermédio do Departamento de Estado e da CIA, ajudaram a promoção das greves, como a dos caminhoneiros, e tiveram uma forte influência na classe média chilena, que, com medo da radicalização ficou ao lado das forças golpistas. Eu queria apenas relatar para V. Exª, diante de todo esse clima de emoção que toma conta do Senado hoje, que comecei minha carreira política como Deputado Estadual em Pernambuco, Líder da Oposição do antigo MDB, exatamente no período da turbulência do Chile. A imprensa dava grande destaque e eu pude acompanhar, através dos grandes jornais - lá em Pernambuco, nós chamamos de jornais do sul - a cobertura que se dava sobre os acontecimentos no Chile, sobretudo no ano de 1973. E o ambiente no Brasil não era diferente. Imagine V. Exª que estava fora da política nesta época e é pernambucano, que a Bancada na Assembléia Legislativa de Pernambuco era composta por 39 Deputados; 30 da antiga Arena, Aliança Renovadora Nacional e 9 do MDB. E na própria tarde do dia 11 de setembro, nós requeremos um Voto de Pesar pela morte de Salvador Allende e a Assembléia Legislativa de Pernambuco derrotou esse voto - no dia 12, no dia seguinte, eu, como Líder, fui obrigado a levar a Assembléia Legislativa de Pernambuco a um dos maiores constrangimentos de toda a sua história, porque pedi votação nominal para que a história registrasse, naquele momento e no futuro, para as futuras gerações, o que uma Ditadura fazia - do medo que a Ditadura impunha às pessoas. Nem o meu Partido votou. Eram 9 Deputados do MDB e o Voto de Pesar obteve apenas dois votos - o meu e de um outro Deputado cujo nome infelizmente não me recordo agora. Então, tudo isto é importante e esta data não poderia passar em branco. Hoje, os Estados Unidos já não têm mais esse poder - não apenas por ter uma pessoa incompetente à frente dos seus destino, é porque perdeu essa força e já não tem mais como influenciar. Pode influenciar, mas não na dimensão e do tamanho que exerceu na queda de Salvador Allende no Chile. Quem derrubou Salvador Allende foram os Estados Unidos. Não fosse o papel pernicioso da C.I A e do Departamento de Estado, talvez Salvador Allende, com a força que tinha, a competência que tinha, a sensibilidade, a dimensão que lhe era peculiar, tivesse vencido tudo aquilo e contornado os problemas no Chile. Dessa maneira eu não poderia deixar de me congratular com a Casa, com o autor do requerimento e com V. Exª, que tem cada vez mais evidenciado a sua grandeza, a sua dimensão nesses momentos. Não poderia deixar de marcar a minha posição, a minha admiração, por Salvador Allende e saudar todos os chilenos aqui na pessoa do embaixador. O Chile é um país admirável, que recebeu os nossos exilados com a maior hospitalidade. Exilados como o Fernando Henrique Cardoso, que chegou à presidência da República, José Serra, que hoje é governador do estado de São Paulo, várias pessoas do Governo, como ressaltou aqui o Senador Eduardo Suplicy. Sempre tivemos admiração pelo povo chileno, mesmo quando o Chile esteve submetido a uma das piores ditaduras do universo, que foi a ditadura de Pinochet. De forma que quero saudar V. Exª e a todos que contribuíram para que o Senado não deixasse passar em branco os 100 anos de Salvador Allende.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Obrigado, Senador. Passo a palavra ao Senador Suplicy.

            O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Querido Senador Cristovam Buarque, o testemunho do Senador Jarbas Vasconcelos é muito importante e enriquecedor. Eu estava aqui observando, e quem sabe V. Exª me permite, com a generosidade do nosso Presidente Papaléo Paes, registrar algo que me parece muito relevante. Quando do aniversário de 100 anos de Salvador Allende, o Presidente Fidel Castro Ruz publicou um artigo de muita relevância, em que, inclusive, publicou algumas das suas cartas e as últimas para Salvador Allende. Elas têm muito significado. Se me permite, eu faria aqui o registro das suas duas últimas cartas. Em 30 de junho de 73, a penúltima, ele diz:

Salvador:

O anterior é o convite oficial, formal, para a comemoração do 20º Aniversário [da Revolução Cubana]. O formidável seria que você pudesse dar um pulo em Cuba nessa data. Você pode imaginar o que significaria isso de alegria, satisfação e honra para os cubanos. Sei que isso, no entanto, depende mais que nada dos seus trabalhos e da situação nesse. Deixamos, portanto, para sua consideração.

Ainda estamos sob o impacto da grande vitória revolucionária do dia 29 e do seu brilhante papel pessoal nos acontecimentos. É natural que muitas dificuldades e obstáculos subsistirão, mas estou certo de que esta primeira prova exitosa lhes dará grande fôlego e consolidará a confiança do povo.

Internacionalmente deu-se grande destaque aos acontecimentos e aprecia-se como um grande triunfo.

Atuando como o fez em 29, a revolução chilena sairá vitoriosa de qualquer prova por difícil que seja.

Reitero-te que os cubanos estão ao seu lado e que você pode contar com seus fiéis amigos de sempre.

            E prossegue no artigo:

Em 29 de julho de 1973 envio-lhe a última carta:

Querido Salvador:

Com o pretexto de discutir contigo qüestões referentes à reunião de países não alinhados, Carlos e Piñeiro realizam uma viagem a essa. O objetivo real é de se informar sobre a situação e oferecer-lhe como sempre nossa disposição a cooperar frente às dificuldades e perigos que obstaculizam e ameaçam o processo. A estadia deles será muito breve porque têm aqui muitas obrigações pendentes e, não sem sacrifício de suas atividades, decidimos que fizessem a viagem.

Vejo que estão agora na delicada questão do diálogo com a D.C. no meio de acontecimentos graves como o brutal assassinato do seu assessor naval e a nova greve dos donos de caminhões. Imagino por isso a grande tensão existente e seus desejos de ganhar tempo, melhorar a correlação de forças para no caso de que estale a luta e, ser for possível, achar um caminho que permita seguir adiante o processo revolucionário sem contenda civil, ao mesmo tempo que salvar sua responsabilidade histórica pelo que possa ocorrer.

Estes são propósitos louváveis. Mas no caso que a outra parte, cujas intenções reais não estamos em condições de avaliar daqui, empenhasse-se em uma política pérfida e irresponsável exigindo um preço impossível de ser pago pela Unidade Popular e a Revolução, o que é, inclusive, bastante provável, não esqueça por um segundo a formidável força da classe operária chilena e o respaldo enérgico que te ofereceu em todos os momentos difíceis; ela pode, ao seu chamado ante a Revolução em perigo, paralisar aos golpistas, manter a adesão dos vacilantes, impor suas condições e decidir de uma vez, se é preciso, o destino do Chile. O inimigo deve saber que está alerta e pronta para entrar em ação. Sua força e sua combatividade podem inclinar a balança na capital ao seu favor ainda que outras circunstâncias sejam desfavoráveis.

Sua decisão de defender o processo com firmeza e com honra até o preço da sua própria vida, que todos sabem que você é capaz de cumprir, arrastarão para seu lado todas as forças capazes de combater e todos os homens e mulheres dignos do Chile. Seu valor, sua serenidade e sua audácia nesta hora histórica de sua pátria e, sobretudo, sua chefatura firme, resolvida e heroicamente exercida, constituem a chave da situação.

Faça com que Carlos e Manuel saibam como podem cooperar seus leais amigos cubanos.

Reitero-te o carinho e a ilimitada confiança do nosso povo.

            Daí prossegue o artigo:

Isto o escrevi um mês e meio antes do golpe. Os emissários eram Carlos Rafael Rodríguez e Manuel Piñeiro.

Pinochet havia conversado com Carlos Rafael. Tinha-lhes simulado uma lealdade e firmeza similares às do general Carlos Pratts, Comandante em Chefe do Exército durante parte do governo da Unidade Popular, um militar digno que a oligarquia e o imperialismo puseram em total crise, o que o obrigou a renunciar ao comando, e foi mais tarde assassinado na Argentina pelos esbirros da DINA, após o golpe fascista de 1973.

Eu desconfiava de Pinochet desde que li os livros de geopolítica que me obsequiou durante minha visita ao Chile e observei seu estilo, suas declarações e os métodos que como Chefe do Exército aplicava quando as provocações da direita obrigavam ao Presidente Allende a decretar estado de sítio em Santiago do Chile. Recordava o que advertiu Marx no 18 Brumário.

Muitos chefes militares do exército nas regiões e seus estados maiores queriam conversar comigo onde quer que chegasse, e mostravam notável interesse pelos temas de nossa guerra de libertação e as experiências da Crise de Outubro de 1962. As reuniões duravam horas nas madrugadas, que era o único tempo livre para mim. Eu acedia por ajudar a Allende, inculcando-lhes a idéia de que o socialismo não era inimigo dos institutos armados. Pinochet, como chefe militar, não foi uma exceção. Allende considerava úteis estes encontros.

Em 11 de setembro de 1973 morre heroicamente defendendo o Palácio de La Moneda. Combateu como um leão até o último suspiro.

Os revolucionários que resistiram ali à investida fascista contaram coisas fabulosas sobre os momentos finais. As versões nem sempre coincidiam, porque lutavam de diferentes pontos do Palácio.

Ademais, alguns de seus mais próximos colaboradores morreram, ou foram assassinados após o duro e desigual combate.

A diferença dos depoimentos consistia em que uns afirmavam que os últimos disparos os fez contra si próprio para não cair prisioneiro, e os outros que sua morte se deu por fogo inimigo. O Palácio ardia atacado por tanques e aviões para consumar um golpe que consideravam trâmite fácil e sem resistência. Não há contradição alguma entre ambas as formas de cumprir o dever. Em nossas guerras de independência houve mais de um exemplo de combatentes ilustres que, quando já não havia defesa possível, privaram-se da vida antes de cair prisioneiros.

Há muito que dizer ainda sobre o que estivemos dispostos a fazer por Allende, alguns o escreveram. Não é o objetivo destas linhas.

Hoje se cumpre um século de seu nascimento. Seu exemplo perdurará, Fidel Castro Ruz.

Junho 27 de 2008.

E, hoje, podemos dizer, caro Senador Cristovam Buarque - e cito também, porque nos pediu que falasse em seu nome, o Senador Aloizio Mercadante: os povos das Américas estão hoje, certamente, orgulhosos dos objetivos que estão, cada vez mais, sendo alcançados por Salvador Allende. Há um fato que ocorreu recentemente - tenho certeza que ele deixaria Salvador Allende também sorrindo: em 24 de julho deste ano, diante da Porta de Brandemburgo, onde, há 60 anos, haviam iniciado a construção de um muro, o Senador Barack Obama dizia algo que tinha muito a ver com os ideais de Salvador Allende: que não é mais possível continuarmos a tolerar muros que separam os que muito têm dos que não têm; os muçulmanos dos judeus, dos cristãos e das pessoas de todas as religiões; os muros que separam os negros, os brancos, os vermelhos, os amarelos. É importante que caiam os muros nas nossas três Américas, para que possamos caminhar em direção aos ideais de Salvador Allende, de igualdade, justiça e fraternidade entre todos os povos.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Obrigado, Senador Suplicy.

            Quero lembrar como mudou nosso Continente! Em 73, um país: Cuba. Não me lembro da posição do México, mas sei que, certamente, de todos os outros, nenhum se aliou na defesa da legalidade no Chile.

            O Senador Jarbas fez um belo depoimento, ainda que triste, por ter acontecido tudo aquilo, mas é preciso lembrar que não são as Forças Armadas americanas, mas as Forças Armadas dos países latino-americanos, sobretudo daqueles ao redor do Chile, perto mesmo da fronteira com o Brasil, que colaboraram com as Forças Armadas dos Estados Unidos.

            Hoje, anos depois, a gente vê que é no Chile que a Presidente Bachelet reúne os Presidentes de todos os países da América do Sul para impedir um golpe na Bolívia.

            Caminhamos um longo caminho desde aquele solitário Fidel, defendendo a legalidade, o Chile, até todos os presidentes reunidos, em Santiago, a defenderem a democracia no país, que, agora, está ameaçada.

            Mas eu quero concluir dizendo que, de todas aquelas qualidades que eu li, que caracterizam a figura do Allende, não dá para exigirem de nós coragem, audácia, persistência; não dá. Agora, uma coisa dá. Uma dessas qualidades não pode faltar em nenhum de nós: a capacidade de sonhar, a capacidade de sonhar que é possível não apenas recuperar a democracia, como conseguimos, mas mudar a realidade social de nossos países.

            Isso pode simbolizar a idéia citada pelo Senador Suplicy da derrubada dos muros, mas, para mim, há um muro que é a mãe de todos os muros, é a mãe do muro da desigualdade, é a mãe do muro dos preconceitos, é a mãe do muro da ineficiência, é a mãe do muro da corrupção: é o muro que cerca as escolas boas contra os filhos dos pobres nelas entrarem.

            É a desigualdade na educação, que faz com que nós tenhamos todos os outros problemas que enfrentamos, especialmente o da desigualdade. Por isso, se derrubarmos o muro que há em torno de cada escola boa, onde só entra quem pagar, como se alugasse a chave para passar pela porta do muro, se a gente derrubasse esse muro, Senador Papaléo, eu creio que os outros muros seriam derrubados.

            Por isso, eu quero concluir conclamando a necessidade de os sonhos continuarem e, obviamente, a capacidade de os sonhos se adaptarem.

            Para mim, hoje, o sonho que representaria tudo aquilo que Allende pensou tão corretamente nos anos 60 seria em torno do filho do mais pobre na mesma escola que o filho do mais rico. Mais do que a idéia de tirar o capital das mãos dos capitalistas para colocar na mão dos trabalhadores, o sonho, hoje, seria colocar o filho do trabalhador na escola do filho do capitalista. Em Cuba, foi preciso fazer uma revolução para fazer isso.

            Eu creio que, a partir de agora, esta é a revolução que vai possibilitar realizar o resto. Eu creio que se estivesse, hoje, ativo, Salvador Allende seria um educacionista, ainda mais do que socialista, embora o fosse também, mas educacionista no sentido de dizer: “Agora, a igualdade que vai construir as igualdades não está na economia, está na escola; não está no chão de fábrica, está nas bancas da escola”.

            Salvador Allende, quando eu falo dessa revolução educacionista, está presente na minha cabeça, como está Lumumba, como está Gandhi, como estão todas essas grandes figuras que não apenas ousaram, mas morreram em nome das suas ousadias.

            Aqui estamos para homenagear a figura humana desse grande político, mas, sobretudo, para homenagear a sua coerência, a sua ousadia, a sua coragem, o seu patriotismo, não apenas no sentido antigo de um país, mas o patriotismo no sentido moderno de um homem do mundo inteiro.

            Salvador Allende foi um homem do mundo. Foi um brasileiro do ponto de vista de ser de todos e é como um homem de todos, e não apenas dos chilenos, que nós aqui estamos homenageando e, por meio desta homenagem, tentando recuperar energia e força, cada um de nós, como se baixasse o espírito dele em nós, para que a gente não pare de sonhar.

            Era isso, Sr. Presidente, que eu tinha para dizer. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/09/2008 - Página 37901