Pronunciamento de Marco Maciel em 04/11/2008
Discurso durante a 205ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal
Comemoração do quadringentésimo aniversário de nascimento do Padre Antônio Vieira.
- Autor
- Marco Maciel (DEM - Democratas/PE)
- Nome completo: Marco Antônio de Oliveira Maciel
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
HOMENAGEM.:
- Comemoração do quadringentésimo aniversário de nascimento do Padre Antônio Vieira.
- Publicação
- Publicação no DSF de 05/11/2008 - Página 43911
- Assunto
- Outros > HOMENAGEM.
- Indexação
-
- HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, ANTONIO VIEIRA, SACERDOTE, IGREJA CATOLICA, ESCRITOR, LEITURA, TRECHO, OBRA INTELECTUAL, ELOGIO, VIDA PUBLICA, CONTRIBUIÇÃO, LITERATURA, FILOSOFIA, DEFESA, INDIO, NEGRO, DIREITOS HUMANOS, ATUAÇÃO, BRASIL, PERIODO, IMPERIO, PAIS ESTRANGEIRO, PORTUGAL, AMBITO, POLITICA, RELIGIÃO, APRESENTAÇÃO, DADOS, BIOGRAFIA.
SENADO FEDERAL SF -
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O SR. MARCO MACIEL (DEM - PE. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Exmº Sr. Senador Alvaro Dias, integrante da Mesa, que preside esta sessão; Exmº Sr. Embaixador de Portugal no Brasil, Francisco Seixas da Costa; Revmº Sr. Padre José Carlos Aleixo, que nesta cerimônia representa a comunidade jesuíta, com sede em Brasília - e, ao saudá-lo, quero saudar os sacerdotes jesuítas que integram a comitiva liderada por Sua Reverendíssima -; Exmº Sr. Ministro e Professor Henrique Brandão Cavalcanti; Exmº Sr. Adriano Jordão, Adido Cultural da Embaixada de Portugal no Brasil; Srªs e Srs. Senadores, convidados, autoridades, minhas senhoras e meus senhores,
“... os erros dos homens não provêm apenas da ignorância, mas principalmente da paixão. A paixão é a que erra, a paixão a que os engana, a paixão a que lhes perturba e troca as espécies para que vejam umas coisas por outras. Os olhos vêm pelo coração e assim como quem vê por vidros de diversas cores, todas as coisas lhe parecem daquela cor assim as vistas se tingem dos mesmos humores, de que estão bem ou mal, afetos os corações”.
São palavras do Padre Antônio Vieira no “Sermão da Quinta Quarta-Feira da Quaresma de 1669”.
Sr. Presidente, a filósofos e psicólogos se antecipa Vieira. Pascal um século após repete o seu pensamento com exemplar concisão: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”.
Vieira conhecia profundamente o nosso idioma, observa a Professora Cleonice Berardinelli, “que no século XVII se afirma com toda a sua potencialidade. É autor de um período chamado barroco em que as potencialidades da língua são altamente exploradas. Há - acrescenta -, uma ligação profunda entre Fernando Pessoa e Vieira. (...) São ambos autores cheios de imaginação. Tanto Vieira no século XVII, quanto Pessoa no século XX, sonham com a realização, no futuro, de um V Império no mundo”.
Sr. Presidente, tais comentários servem para assinalar a exuberante contribuição que o Padre Antônio Vieira ofereceu ao mundo em diferentes campos da atividade humana, no instante em que se faz memória da passagem do quarto centenário de seu nascimento. Dotado de personalidade riquíssima e de aspectos aparentemente contraditórios, Vieira, catequista de indígenas, pregador jesuíta, orador em cortes européias, missionário, professor de humanidades e de filosofia, homem de estado, pensador de larga visão, de enorme atividade epistolar e arguto ator em política externa, diplomata síntese de sua época o foi, igualmente, “o mestre da prosa portuguesa clássica”, consoante a definição precisa do professor Rubem Queiroz Cobra. Estava, portanto, Padre Vieira fadado a exercer - mais do que qualquer outro - a primazia de uma dupla influência: na civilização e literatura luso-brasileira e, em decorrência, em nossa língua comum. Vieira enriqueceu nosso idioma em palavras e modismos e, segundo Carlos de Laet, foi ele quem “fixou a sintaxe vernácula, assim como fixara Camões o léxico português”.
O crítico lusitano Mário Gonçalves Viana reconhece que “foi incontestavelmente, no Brasil, que Vieira escreveu as páginas mais belas e mais importantes de toda a sua vida”. E o crítico argentino Eduardo Periê proclama que, “excluir o Padre Antônio Vieira, do catálogo dos escritores brasileiros, é roubar ao Brasil uma de suas mais esplendentes glórias do século XVII” (apud Afrânio Coutinho, em A Literatura no Brasil).
Sr. Presidente, o Padre Antônio Vieira foi o primogênito de quatro filhos de Cristóvão Vieira Ravasco (escrivão alentejano) e Maria de Azevedo (lisboeta). Sua avó materna era negra. Em 1615 mudam-se Antonio Vieira e sua mãe para a Bahia, onde o pai estava desde 1609. Quinze anos após, entra Vieira para o Colégio dos Jesuítas em Salvador da Bahia e, em 1626, é enviado para o Colégio de Olinda, onde ensina retórica. Seus primeiros sermões são proferidos, em Salvador, dois anos antes mesmo de ser ordenado Padre.
Sua identificação com a civilização brasileira deu-se anteriormente à da civilização portuguesa, devido ao fato de haver chegado ao Brasil ainda criança e haver deixado o lar paterno aos quinze anos para ingressar como noviço na Companhia de Jesus em 1623, na província da Bahia. Foi levado para a aldeia do Espírito Santo, onde passou a ter contacto com os indígenas que os padres doutrinavam a poucas léguas da cidade, assim distanciando-o também do inconformismo da família ao que parecera uma peraltice de garoto, quando fora, na realidade, uma chama da Fé. Não era de admirar, por isso, haver sido sua vocação catequética endereçada acima de tudo aos índios - de quem aprendeu sete línguas, para nelas pregar-lhes o Evangelho, sendo por isso chamado pelos silvícolas de Paiaçu (o grande Pai), os quais, por sua vez, foram elogiados por Vieira como “a principal parte do exército português, e a única que, diferentemente dos brancos e negros, de nenhum modo quis entrar em negociações com o invasor” - no dizer do crítico literário Alcir Pécora (em seu Prefácio à coletânea Escritos Históricos e Políticos - Pe. Antônio Vieira).
Essa identificação, Sr. Presidente, deveu-se também à sua condição de sacerdote na mesma Ordem jesuíta aos vinte e sete anos (em 1635), iniciando em nosso país sua extraordinária carreira como pregador, onde proferiu a maior parte e os mais célebres de seus sermões, além dos mais contundentes contra a invasão holandesa. No insuperável e dentre as mais belas de suas prédicas, considerado mesmo uma obra-prima por conceituados críticos, o Sermão contra as Armas de Holanda, pronunciado em 1640, ao haver sido sitiada a cidade de Salvador pelos holandeses, a dialética de Vieira atingiu o paroxismo, quando, abusando das repetições enfáticas, apostrofou o próprio Deus:
“Finjamos, pois, o que até fingido e imaginado faz horror; finjamos que vem a Bahia e o resto do Brasil à mão dos holandeses. Que é o que há de suceder em tal caso? Entrarão nesta cidade com fúria de vencedores e de hereges; não perdoarão a estado, a sexo nem a idade; com os fios dos mesmos alfanjes medirão a todos. Chorarão as mulheres, vendo que não se guarda decoro à sua modéstia; chorarão os velhos, vendo que não se guarda respeito às suas cãs; chorarão os nobres, vendo que não se guarda cortesia à sua qualidade; chorarão os religiosos e veneráveis sacerdotes, vendo que até as coroas sagradas os não defendem; chorarão, finalmente, todos, e entre todos mais lastimosamente os inocentes, porque nem a estes perdoará - como em outras ocasiões não perdoou - a desumanidade herética. (...)
Pois também a Vós, Senhor, vos há de alcançar parte do castigo - que é o que mais sente a piedade cristã - também a Vós há de chegar.
Entrarão os hereges nesta igreja e nas outras; arrebatarão esta custódia em que agora estais adorado dos anjos; tomarão os cálices e vasos sagrados e aplicá-los-ão a suas nefandas embriaguezes; derrubarão dos altares os vultos e estátuas dos santos, deformá-las-ão a cutiladas e metê-las-ão no fogo; e não perdoarão as mãos furiosas e sacrílegas nem as imagens tremendas de Cristo crucificado nem as da Virgem Maria. Não me admiro tanto, Senhor, de que hajais de consentir semelhantes agravos e afrontas em Vossas imagens, pois as já permitistes em teu Sacratíssimo corpo; mas na da Virgem Maria, nas de Vossa Santíssima Mãe, não sei como isto pode estar com a piedade e amor de filho. No Monte Calvário esteve esta Senhora sempre ao pé da Cruz, e com serem aqueles algozes tão descorteses e cruéis, nenhum se atreveu a Lhe tocar nem a Lhe perder o respeito. Assim foi e assim havia de ser, porque assim o tínheis Vós prometido pelo profeta: praga nenhuma chegará a tua tenda [SI XC, 10]. Pois, Filho da Virgem Maria, se tanto cuidado tivestes então do respeito e decoro de Vossa Mãe, como consentis agora que se Lhe façam tantos desacatos? Nem me digais, Senhor, que lá era a pessoa, cá a imagem. Imagem somente da mesma Virgem era a Arca do Testamento, e só porque Oza a quis tocar lhe tirastes a vida [2 Samuel, VI, 6-8].
Enfim, Senhor, despojados assim os templos e derrubados os altares, acabar-se-á no Brasil a cristandade católica; acabar-se-á o culto divino, nascerão ervas nas Igrejas como nos campos; não haverá quem entre nelas. Passará um dia de Natal e não haverá memória de Vosso Nascimento; passará a Quaresma, a Semana Santa e não
se celebrarão os mistérios de Vossa Paixão. Chorarão as pedras das ruas, como diz Jeremias que choravam as de Jerusalém destruída. (...)”.
Sr. Presidente, providencial, mais adiante, foi a integração de Vieira à comitiva em homenagem a D. João IV, o novo monarca, de quem obteve de imediato as boas graças, prolongadas durante os dez anos seguintes. O êxito e merecida fama de sua oratória arrebataram a admiração do soberano, que o apelidou de “o maior homem do mundo”, em 1644 nomeando-o Pregador Régio, não muito após seu sermão pela primeira vez, na Capela Real, no Ano Novo de 1642. Na verdade, veio-se destacando progressivamente Vieira como orador sacro, a cujos sermões o povo acudia em massa, para se deliciar com suas metáforas e alegorias inesperadas, ou para sentir-se vingado dos vícios políticos cometidos pelas autoridades, severamente castigados pela sua argumentação e dialética arrebatadoras.
Sr. Presidente, o século XVII é coetâneo do Padre Vieira. Nascido em Lisboa no início de 1608, sua atividade pervadiu toda a centúria, eis que só faleceu em 1697.
A propósito de seu tempo, observa o escritor Moacyr Scliar, membro da Academia Brasileira de Letras, que foi o “século dezessete, o período em que se consolidaram e se ampliaram os valores de modernidade, um processo iniciado nos séculos anteriores e desencadeado pelo aumento do comércio mundial, pelas viagens marítimas, pelo progresso científico, pelo Renascimento, pela descoberta da imprensa e da pólvora” ...; [época em que surgiram] “os instrumentos científicos como o barômetro, o termômetro e o microscópio, ...”. A época em que “William Harvey descreveu a circulação do sempre lento novo impulso à medicina. O século de Newton, Descartes, Galileu, Pascal, o século do barroco, ... e, na pintura de realistas sombrios como Rembrandt”; enfim “a história da humanidade se transforma numa jornada de progresso contínuo”.
Esses acontecimentos ensejaram, como conseqüência, que se denominasse o século XVIII o Século das Luzes.
Sr. Presidente, não se pode deixar de ressaltar como característica primordial do Padre Vieira a simbiose aparentemente contraditória do orador sacro com o político, aliás, para Aristóteles sinônimo de cidadão, pois seus sermões, sobremodo, foram utilizados como veículo de propagação sacerdotal missionária dos preceitos evangélicos, e coincidiam com a patriótica solução dos problemas múltiplos, sócio-econômicos em especial, em favor de sua pátria-mãe e de suas colônias.
Seu natural talento fê-lo um acendrado defensor de Portugal, na época sob o domínio da Espanha - sendo investido pelo rei de missões diplomáticas junto às cortes de Espanha, Holanda e França - aonde comparecia com a engalanada vestimenta profana e, por vezes, mesmo no âmbito conventual -, quase lhe custando a expulsão da Ordem Religiosa. Em sua visão e desempenho políticos, tão inesperados quão audaciosos para um sacerdote, deu acolhimento à burguesia mercantil, apoiada no poder econômico dos judeus, incluindo os convertidos - denominados “cristãos novos” -, através do afluxo de seus imensos capitais, pretendeu persuadir o rei a obter o financiamento para a guerra da Independência e o armamento para a guerra da Restauração, afora outros projetos arriscados. Conseguiu de D. João IV a fundação, em 1649, da Companhia do Comércio do Brasil, a fim de se poder contrapor à criação, pelos abastados comerciantes holandeses, da Companhia das Índias Ocidentais. Vieira não poupou os nobres e o próprio clero a que pertencia, que gozavam, entre outros privilégios, da isenção de impostos, estes a cargo apenas dos comerciantes e do povo restante - afora a injustiça social e a corrupção de colonos e administradores do Brasil -, sobretudo o miserável estado do Reino na ocasião. E o fez incisivamente, perante as Cortes reunidas em Lisboa, no famoso Sermão de Santo Antônio (1642), quando ainda mister se fazia a congregação de todos para enfrentar a inconformada e ameaçadora Castela, bem como a poderosa pirataria marítima dos holandeses. Vieira diverte-nos então com o seu costumeiro “jeu de mots”:
“Os intentos de Castela são recuperar o perdido; os intentos de Portugal são conservar o recuperado. E como deparar coisas perdidas é o gênio e a graça particular de Santo Antônio, a Castela parece que convinha a assistência de seu patrocínio, que a nós por agora não. Quem nos ajude a conservar o ganhado é o que havemos mister. Ora, Senhores, ainda não conhecemos bem a Santo Antônio? Santo Antônio, para os estranhos, é recuperador do perdido; para com os seus é conservador do que se pode perder.”
É certo, Sr. Presidente, anota o mestre Alcir Pécora, no seu já citado “Escritos Históricos e Políticos”: “No que toca à guerra nas colônias, a principal questão tematizada por Vieira nesse período é relativa à situação de Pernambuco no conjunto das questões a serem negociadas, em Haia, para o estabelecimento da paz com os holandeses. No que fez a favor da entrega de Pernambuco, redigindo em 1648 o ‘Papel Forte’, ele defende a posição que, divulgado por seus inimigos da corte, valeu-lhe o eloqüente epíteto de ‘judas do Brasil’ - de que a Capitania fosse entregue à Holanda a fim de que cessassem imediatamente as hostilidades com esta nação, e, com isto, Portugal não dividisse as suas parcas forças necessárias para garantir a restauração em face da Espanha”.
Mas, como se sabe, o realismo verossímil dos argumentos de Vieira foi desmontado pelo fantástico dos acontecimentos: sem cuidar da análise das forças desiguais que sustentavam um e outro lado da guerra, a próprias expensas e fraquezas, os revoltosos de Pernambuco brancos, negros e indígenas acabaram expulsando de lá os holandeses, e anularam o acordo de paz tão esforçadamente pretendido por Vieira em sua missão diplomática a Haia e a Armsterdã.
Sr. Presidente, mais tarde, em 1655, em outra prédica - o Sermão do Bom Ladrão, demonstra as desonestidades do governo das colônias com a complacência da Corte, evidenciando as conseqüências bem diferentes dos furtos do cidadão comum comparados aos dos dirigentes do povo: “... em vez de levarem os ladrões ao Paraíso, os ladrões são os que levam os reis ao inferno”.
Novamente, Vieira se vale do jogo de palavras:
“Que remédio teremos nós para remediar os remédios?
Muito fácil, diz Santo Antônio.
Da boca do peixe se tirou o dinheiro do tributo, porque ébem que para o tributo se tire da boca. Mas esta diferença há entre os tributos suaves e os violentos: que os suaves tiram-se da boca do peixe, os violentos da boca do pescador. Hão-se de tirar os tributos com tal traça, com tal indústria, com tal invenção - que pareça o dinheiro achado e não perdido, dado por mercê da ventura e não tirado à força da violência”.
Esses posicionamentos, Sr. Presidente, se por um lado lhe granjearam grande simpatia do Rei em vida, em virtude de sua visão dos negócios do Estado, tomando-o como Conselheiro Real, exacerbaram por outro lado o ódio a Vieira por parte dos que viviam de sinecuras e confiscos, como se já não tivessem bastado, contra o precário estado do Reino, as perseguições implacáveis da pirataria holandesa invasora e do jugo espanhol. Vieira veio a sofrer, ainda, por parte de instituições religiosas, como o Santo Ofício inclusive, perante o qual foi processado (1665-1667), havendo sido preso duas vezes, no Porto e em Coimbra, definidas que foram suas posições como heréticas
Sr. Presidente, a propósito, este ano ao celebrarmos a passagem, em 10 de dezembro, dos sessenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, impõe-se dar ênfase ao obstinado papel que exerceu o Padre Vieira na defesa dos índios, negros, escravos, cristãos novos e judeus, enfim, dos excluídos em geral, tema que desenvolve o padre e professor da UnB José Carlos Aleixo (da Companhia de Jesus) no livro “Traços marcantes da vida e obra do Pe. Antônio Vieira”.
Clóvis Bulcão, historiador e escritor de romances históricos, ao se reportar à presença da comunidade judaica do Recife no período da ocupação holandesa (1624-1654), registra a atuação de Vieira entre os cristãos novos, então muito discriminados, e o inclui como o primeiro, à época, a falar da convivência dos cristãos e judeus.
O historiador diz Vieira considerar que a “única forma de conquistar a região amazônica seria por intermédio da catequese dos índios”
Em 1652, retorna Vieira ao Brasil como missionário no Maranhão, empunhando a defesa dos índios, tendo sido de lá expulso, em setembro de 1661, juntamente com os demais jesuítas, pelos moradores, que se sentiram prejudicados pela alforria dos indígenas daquele regime escravocrata que lhes vinham impondo.
E o fazia Vieira através do “púlpito”, segundo o Padre Aleixo, “considerado a única tribuna independente, perante a autoridade civil, para expressar agravos populares”.
A momentosa questão dos direitos humanos já estava, pois, precursoramente empalmada pelo Padre Vieira. Vale salientar duas lúcidas constatações do Embaixador de Portugal no Brasil, Francisco Seixas da Costa, nas “Palavras liminares” à citada obra do Padre José Carlos Aleixo: “quando também agora se assinalam os 200 anos da presença da corte portuguesa, cabe lembrar que a idéia de deslocação da capital do Império para o Brasil havia sido aventada por Vieira bem antes de 1808, pelo que talvez também lhe deva caber parte do mérito de empreendimento fundacional da modernidade brasileira”. A outra explicitação do Embaixador Seixas da Costa é de que “Num tempo em que a ética pública atenta cada vez mais para as questões dos Direitos Humanos, mais notável se torna a presciência de Antonio Vieira ao adiantar, na humanidade de seu verbo, muitas das preocupações que agora nos são comuns mas que, à época, representavam uma nem sempre confortável visão antes do tempo”.
Sr. Presidente, no período de 1669 a 1675 Vieira praticamente homiziou-se em Roma, pregando em italiano e sendo escolhido pela Rainha Cristina da Suécia para seu confessor. Em 1674 obtém um Breve Pontifício, absolvendo-o das penas e isentando-o da jurisdição da Inquisição portuguesa. Volta enfim a Lisboa por ordem do Príncipe Regente D. Pedro, que o recebeu friamente, apartando-se, por isso, dos negócios públicos. Retorna por último ao Brasil, definitivamente, em 1681, alquebrado, entregue tão somente a coligir e repassar seus escritos na cidade de Salvador, na Bahia, onde afinal veio a falecer em 18 de julho de 1697, beirando os noventa anos.
Entretanto, o que mais causa admiração, senão estarrecimento, por esses procedimentos aparentemente contraditórios, é o zelo religioso de seu talento como orador sacro, vazado num estilo tão contundente, que a mera leitura de seus textos nos faz revisualizar, ainda hoje, a imagem dinâmica de seus gestos no púlpito e ouvir-lhe a voz tonitruante. Foram por volta de duzentos sermões eminentemente originais, tendo pregado “seis vezes sobre o Santíssimo Sacramento, nove sobre Santo Antônio, quatorze sobre a Eucaristia, dezoito sobre S. Francisco Xavier e trinta sobre o Rosário” - na sinopse de Afrânio Coutinho, Eugênio Gomes e Barreto Filho (op. cit., vol. I, t. I, p. 358), sem contar mais de setecentas cartas, muitas das quais o historiador Lúcio de Azevedo foi buscar não só em edições anteriores, mas também em códices das bibliotecas nacionais em Évora e na Academia de Ciências de Lisboa (apud Adma Muhana, Prosa e Verso, O Globo, p. 4, edição de 16.08.2008).
Essa exuberante demonstração de criatividade foi naturalmente haurida na Ratio Studiorum dos Jesuítas, toda calcada na Filosofia de Aristóteles, na Teologia de S. Tomás de Aquino e nas Humanidades Clássicas das maiores sumidades greco-romanas. Não são de admirar, assim, suas metáforas, alegorias e inesperadas comparações, que não dispensavam o paradoxo - como no Sermão do SS. Sacramento (1645):
“Milagres feitos devagar são obras da natureza:
obras da natureza feitas depressa são milagres.”
Nem é de estranhar mais esta outra, extraída do Sermão da Epifania (1662):
“O estilo era que o pregador explicasse o Evangelho: hoje o Evangelho há de ser a explicação do pregador. Não sou eu o que hei de comentar o Evangelho: o texto é o que me há de comentar a mim. Nenhuma palavra direi que não seja sua, porque nenhuma cláusula tem que não seja minha. Eu repetirei as suas vozes, ele bradará os meus silêncios”.
Ressalte-se que, como assinalado acima, o Padre Vieira pregou sobre Santo Antônio, nada menos que nove vezes, cabendo agora rememorar o quarto deles - o mais célebre, denominado Sermão aos Peixes -, proferido na Capital do Maranhão em 13 de junho de 1654, ante a rejeição dos brancos em acolher os apelos dos jesuítas em prol dos índios, à semelhança do que ocorrera com o próprio Santo Antônio, desiludido de pregar aos hereges de Arrímino. Vieira inicia com a comparação de Cristo que, aludindo aos pregadores, define-os como o sal da Terra [MT. 5, 13]:
Vós sois o sal da Terra Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da Terra; e chama-lhes sal da Terra, porque quer que façam na Terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a Terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a Terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a Terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. (...)
Pregava Santo Antônio na Itália, na cidade de Arímino, contra os hereges, que nela eram muitos. E como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o Santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele, e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande Antônio?(...) Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina.
Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vão-se ao mar e começa a dizer a altas vozes: ‘Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-se os peixes.’ Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a Terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, Antônio pregava, e eles ouviam!”
Por esse estilo sui generis, Vieira é acusado do próprio Barroquismo cultista que ele tanto criticava nos pregadores da época Nomeadamente no Sermão da Sexagésima (1655) - onde ensina a arte de pregar -, e declara-se conceptista, muito embora as duas escolas se emaranhem em suas comuns extravagâncias:
“Eis aqui como hão de ser os sermões; eis aqui como não são. E assim não é muito que se não faça fruto com eles. Ter nome de pregador, ou ser pregador de nome não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras são as que convertem o mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? É o conceito que de sua vida têm os ouvintes. Antigamente convertia-se o mundo, hoje por que não se converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são tiro sem bala; atroam, mas não ferem. (...)
E acrescenta:
O pregar, que é falar, faz-se com a boca; no pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras.”
Ensina como se devem lavrar os sermões:
“Há de tomar o pregador uma só matéria; há de defini-la, para que se conheça; há de dividi-la para que se distinga; há de prová-la com a Escritura; há de declará-la com a razão; há de confirmá-la com o exemplo; há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências, que se hão de seguir; com os inconvenientes, que se devem evitar; há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades; há de impugnar e refutar com toda a força da eloqüência os argumentos contrários; e depois disso há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar.”
De qualquer sorte, enquanto os sermões de Vieira se dirigem para “os ouvintes de entendimento agudo”, onde tudo no texto haja de “cair com queda, caso e cadência” - no fluxo de suas cartas e peças outras das mais variadas espécies, quais inúmeros relatórios, pareceres e documentos de natureza política ou diplomática, predominam a clareza e a naturalidade.
Sirva de exemplo a Carta Ânua endereçada ao Padre-Geral da Companhia de Jesus, originariamente escrita em latim (conforme consta, segundo os hábitos jesuíticos) pelo ainda escolástico Vieira, que nos amerceia com estas pitorescas e graciosas situações:
“... faltando-lhes as mãos para resistirem, só nos pés lhes sobejou para fugir. (...) Saíram-lhe os nossos logo intrepidamente e, na verdade, vendo-se tão pouco em número e tão inferiores nas armas, se resolveram a que estavam em um de dois extremos mui perigosos, ou de largar a vida pelejando, ou depor a honra fugindo.”
Sirva de exemplo, ainda, a Proposta a el-Rei D. João IV, que representava o miserável estado do Reino e demonstrava a necessidade de se atraírem os judeus mercadores, esparsos pelas mais diversas partes das Europa, em que pese a intransigência da Inquisição:
“... nenhum segue mais leis, que as da conveniência própria. Imaginar o contrário é querer emendar o mundo, negar a experiência e esperar impossíveis. (...) Se o dinheiro dos homens de nação está sustentando as armas dos hereges, para que semeiem e estendam as seitas de Lutero e Calvino pelo mundo, não é maior serviço de Deus e da Igreja que sirva este mesmo dinheiro às armas de rei mais católico, para propagar e dilatar pelo mundo a lei e a fé de Cristo?”
Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, perdoem-me o longo texto por ser difícil fazer uma dissertação completa de personalidade tão opulenta como a de Vieira. Socorro-me das palavras-síntese de Afrânio Coutinho a seu respeito:
“O Padre Antônio Vieira adquiriu tais proporções como homem de pensamento e de ação, no panorama religioso, político e social do século XVII, que seria impossível considerá-lo por um só aspecto, separadamente de qualquer outro.”
Afinal - para não sermos omissos, quanto aos méritos sacramentais do inenarrável zelo missionário do Jesuíta -, cabe-nos ainda exaltá-lo pelo acolhimento esplendoroso que lhe deve ter dado o próprio Altíssimo quando o transferiu para os Seus braços, glorificando-o com as palavras eternas do versículo 13 do Salmo 17:
“Do esplendor de sua presença suas nuvens avançaram:
saraiva e centelhas de fogo!”
As palavras de Vieira, mais de trezentos anos após a sua morte, continuam vivas. Soube Vieira associar pensamento à ação e lutar, apaixonadamente, para converter suas idéias em realidade.
Concluo, Sr. Presidente, com o poeta Fernando Pessoa:
“O céu estrela o azul e tem grandeza
Este, que teve a fama e a glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também”.
Essas palavras inseridas na “Obra Poética” do maior vate de Portugal, no século passado, expressam o reconhecimento ao Padre Antônio Vieira, cidadão de dois mundos - autêntico luso-brasileiro - pois, nele se associam utopia e ação, e, em plena harmonia, fé e atividade missionária.
Era o que eu tinha a dizer.
Muito obrigado! (Palmas.)
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