Discurso durante a 196ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Registro da realização da Celebração Latino-Americana e Caribenha do Oitavo Centenário do Carisma Franciscano, em Brasília, no período de 17 a 19 de outubro.

Autor
Pedro Simon (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: Pedro Jorge Simon
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
IGREJA CATOLICA.:
  • Registro da realização da Celebração Latino-Americana e Caribenha do Oitavo Centenário do Carisma Franciscano, em Brasília, no período de 17 a 19 de outubro.
Publicação
Publicação no DSF de 23/10/2008 - Página 41251
Assunto
Outros > IGREJA CATOLICA.
Indexação
  • REGISTRO, REALIZAÇÃO, CAPITAL FEDERAL, CONFERENCIA, AMBITO, AMERICA LATINA, AMERICA CENTRAL, COMEMORAÇÃO, CENTENARIO, VOCAÇÃO, SANTO PADROEIRO, POBREZA, COMENTARIO, ENTREGA, ENTIDADE, CARTA, DESTINATARIO, VICE-PRESIDENTE DA REPUBLICA, SOLICITAÇÃO, TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO.
  • COMENTARIO, DISCURSO, ORADOR, CONFERENCIA, ANALISE, VIDA PUBLICA, SANTO PADROEIRO, IMPORTANCIA, ABSTENÇÃO, RIQUEZAS, BUSCA, INTERESSE, POPULAÇÃO CARENTE, RESPEITO, VALORIZAÇÃO, NATUREZA, DEFESA, SOLIDARIEDADE, COMPARAÇÃO, PERIODO, HISTORIA, SIMILARIDADE, ATUALIDADE, OCORRENCIA, TRANSFORMAÇÃO, REALIDADE, NATUREZA ECONOMICA, NATUREZA POLITICA, EXCESSO, PODER, COMERCIO.
  • DEFESA, IMPORTANCIA, POLITICO, ATUALIDADE, REPETIÇÃO, CONDUTA, SANTO PADROEIRO, AUSENCIA, BUSCA, INTERESSE PARTICULAR, FAVORECIMENTO, POPULAÇÃO, DESVALORIZAÇÃO, RIQUEZAS, ANALISE, COMPORTAMENTO, CIDADÃO, FALTA, SOLIDARIEDADE, EXCLUSÃO, POPULAÇÃO CARENTE, EXCESSO, INDIVIDUALIZAÇÃO, PREJUIZO, EDUCAÇÃO, FAMILIA, IGREJA.
  • COMENTARIO, SITUAÇÃO, ATUALIDADE, ALTERAÇÃO, CLASSE POLITICA, AMERICA LATINA, ESPECIFICAÇÃO, BRASIL, ELEIÇÃO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, ORIGEM, POPULAÇÃO CARENTE, EXPECTATIVA, ELEIÇÕES, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), POSSIBILIDADE, VITORIA, PIONEIRO, CANDIDATO ELEITO, NEGRO.
  • ADVERTENCIA, SUPERIORIDADE, GRAVIDADE, FOME, MUNDO, ESPECIFICAÇÃO, VITIMA, CRIANÇA, EXCESSO, MENOR ABANDONADO, COMENTARIO, RECURSOS, GOVERNO ESTRANGEIRO, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), DOAÇÃO, BANCOS, MOTIVO, CRISE, MERCADO INTERNACIONAL, POSSIBILIDADE, EXTINÇÃO, MISERIA, PAIS SUBDESENVOLVIDO.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. PEDRO SIMON (PMDB - RS. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, no período de 17 a 19 de outubro último, Brasília teve a honra de receber centenas de irmãos e irmãs franciscanos, para a Celebração Latino-Americana e Caribenha do Oitavo Centenário do Carisma Franciscano. Foi um dos mais belos e participativos eventos, dos que já participei, na minha vida política e religiosa.

Durante o encontro, diversos temas foram discutidos, com o relato e o debate de situações e de experiências nos países da América Latina e do Caribe, culminando com uma grande caminhada, até o Palácio do Planalto, onde tivemos a oportunidade entregar, ao Sr. Vice-Presidente da República, José de Alencar, a “Carta de Brasília”, uma reedição, a partir da realidade atual, da “Carta aos Governantes”, escrita por São Francisco de Assis. Peço ao Sr. Presidente, a transcrição deste documento, para que fique registrado nos anais do Senado Federal, a visão de mundo e os anseios dos irmãos franciscanos, por “um desenvolvimento que respeite a dignidade das criaturas”, por “uma economia solidária que valorize e promova a pessoa humana”, e por “um autêntico processo democrático que assegure a autodeterminação dos povos e a efetiva integração continental”.

Tive a satisfação do convite para falar aos irmãos franciscanos presentes sobre o tema “O franciscano no mundo da política”. A partir dessa mesma perspectiva de vida política e religiosa, inseparável por princípio, é que eu também trago, para registro, as minhas palavras pronunciadas naquela oportunidade, que tem, como se observará, os mesmos anseios contidos na “Carta de Brasília”.

Ser franciscano no mundo da política, nos dias atuais, é marchar contra a corrente. Pelo menos da prática política. Nada mais coerente para um político que procura seguir o carisma franciscano: São Francisco, igualmente, optou, através da confissão e da prática religiosa, pela contramão da política, no seu tempo. Mais do que isso: ele tinha a opção, garantida, de viver na opulência, de usufruir da política daquela época, mas preferiu a humildade religiosa, que continuou, felizmente, tempos afora.

Eu não consigo imaginar, hoje, um mundo sem o legado de São Francisco de Assis. Mas, eu não vejo, também, na história, um momento em que fosse tão necessária a prática franciscana, como agora. Principalmente a prática franciscana no mundo da política.

Não há dúvida de que, no Brasil e na imensa maioria dos países, o discurso político tem fortes correlações com o franciscanismo. A ação, nem sempre. Na palavra, a opção preferencial pelos pobres. Na prática, a ação preferencial pelos “nobres”. Está aí, quem sabe, espelhando-se no exemplo de vida de São Francisco, a chave mestra para a disseminação do carisma franciscano no mundo da política: fazer aproximar o discurso da prática.

A principal característica de um franciscano, fora ou dentro da política, é a sensibilidade. Ser capaz de compartilhar a dor do semelhante. Incluir-se no projeto divino da criação, não apenas como um indivíduo, isolado, como se este mesmo projeto se resumisse, apenas, ao sexto dia. Ou, pior ainda, ao sétimo. A dedicação de São Francisco de Assis às plantas, aos animais, ao sol, à lua e às estrelas é o melhor ensinamento de que o homem tem que se imaginar integrado na natureza idealizada pelo Criador.

Eu entendo que é possível, mantidas as devidas proporções, fazer um paralelo entre o mundo atual e o momento histórico vivido por São Francisco de Assis. Isso é importante para que a gente possa refletir como é possível ser franciscano no mundo da política, nos dias atuais. Como uma história que aconteceu há oitocentos anos pode se constituir, ainda, passado tanto tempo, de referência para explicar e, sobretudo, para orientar a ação verdadeiramente política, em favor de toda a população, principalmente dos mais pobres.

A época de São Francisco foi um momento de grandes mudanças no que podemos chamar, agora, de “economia”. Foi o tempo em que a moeda adquiriu a função nos moldes que conhecemos hoje. Essa mudança também refletiu na política da época. Houve uma profunda alteração no perfil do poder vigente naqueles tempos. Os senhores feudais deram lugar a uma nova classe dominante, ligada ao mundo dos negócios, ao mercado, ao domínio das cidades sobre a nobreza do campo.

A Igreja da época também não fugia a essas transformações. Ela demarcava o seu poder exatamente pela posse de bens materiais. Para isso, os representantes da Igreja eram, muitas vezes, mais guerreiros do que missionários. Havia, inclusive, uma supremacia dos papas sobre os reis. Imagine-se, então, São Francisco de Assis, com sua pregação de humildade, de solidariedade e de pobreza, neste mundo material, de opulência.

É bastante evidente que, em proporções maiores, o nosso momento também é de grandes turbulências no cenário econômico, que vem de muito antes da atual crise. Isso tem mudado, também, o perfil da política, do poder. Hoje, não há dúvida, por exemplo, da supremacia do capital financeiro nos destinos da economia, da sociedade e, conseqüentemente, da política. 

Como, então, ser franciscano, neste mundo da política? Como pregar e, sobretudo, exercitar, a humildade, a solidariedade e o amor ao próximo, em um mundo que se constrói, cada vez mais, a partir de interesses materiais e, sobretudo, financeiros? Como, onde e o que ouviríamos de São Francisco, se ele vivesse nos nossos dias?

Hoje, assiste-se a uma total mercantilização da vida, em todos os aspectos, inclusive na religião. O “ter” tomou, numa escala preocupante, o lugar do “ser”. Até algum tempo atrás, era preciso ser, para ter. Hoje, a sociedade, mercantilizada, inverteu estes papéis: é necessário ter, para ser.

Isso dividiu o mundo em dois, separados por um muro de paredes virtuais, mas de alicerces bastante concretos, construído pelo mercado. De um lado, os que conseguem ultrapassar este muro, com o passaporte das melhores grifes; de outro, os “excluídos”, nossos semelhantes, mas que são considerados, pelo mercado, o “lado escuro”. Os primeiros “têm”. Os segundos, nem chegam a “ser”, do ponto de vista dos que “têm”. Muitas vezes, são considerados como um fardo, algo pesado e custoso, contabilizados na “conta” do “passivo”. O mundo do mercado pratica, portanto, um franciscanismo às avessas.

São Francisco experimentou, também na sua época, os dois lados deste muro. Ele, que tinha vivido no lado da opulência, mudou, a partir de sua conversão, para uma vida marcada pela humildade e pelo total despojamento. Seu pai era um representante daquela mesma burguesia emergente, como grande comerciante de tecidos. Mas, Francisco optou por uma vida contrária a tudo o que estava acontecendo no seu tempo e, como decorrência, contra todos os representantes dessas classes, até então dominantes, ou emergentes. A história mostra que contra o seu próprio pai.

As suas ações o colocavam contra os antigos burgueses, contra a nova classe dominante e contra a Igreja ávida por posses. Em suma, ele se colocou contra o Poder. Não é à toa que ele era considerado um “intruso” para todas essas classes civis e religiosas. Como contraponto, a nova classe dominante tentava ridicularizá-lo. O povo, influenciado, deixou de lhe doar, inclusive, os restos de comida. A Igreja, observando que o número de seus seguidores aumentava, cada vez mais, tentou burocratizá-lo, através de regras, ou enquadrá-lo numa ordem já existente.

É mais ou menos isso o que acontece quando alguém, hoje, se propõe cultivar, e difundir, princípios franciscanos no mundo da política. Há que se ter coragem, inclusive sabendo que se pode ser “ridicularizado”, tal e qual aconteceu com São Francisco. No mínimo, o que pode ocorrer é “uma pregação no deserto”. O discurso franciscano não combina com os interesses do mundo dos negócios. O lucro não tem pudor.

Na política, o que vemos, nos dias atuais, é algo bem parecido. O pudor não tem orientado as melhores ações, neste campo. Entretanto, tanto na economia, como na política, estamos vivendo uma época de grandes transformações, no Brasil e no mundo. Nos países mais desenvolvidos, a vitória de correntes que poderiam ser consideradas menos tradicionais. A possível eleição de Barack Obama é um dos exemplos mais significativos desta mudança de perfil político. A América Latina também passou, nos últimos anos, por modificações profundas, em termos de representação política. O Brasil não fugiu à regra.

Houve uma significativa alteração no perfil das nossas elites. Ela se renovou, e um novo segmento ocupou o lugar dos antigos “coronéis da política”. Neste cenário, no Brasil, também como exemplo, elegeu-se um presidente que saiu das classes menos favorecidas da população. Houve, então, uma grande expectativa de que, a partir daquele momento, teríamos uma mudança de postura política, no Brasil.

Mas, isso aconteceu, também, em um momento de, poderia dizer, total mercantilização da vida. Derrubou-se um muro e fortaleceu-se outro, agora com a argamassa do mercado. Diria mais ainda: instituiu-se uma espécie de novo-Deus, o deus-Mercado. É ele que dita as normas de procedimento, os valores, os costumes, os modos de vida. E a política foi atrás. Quem sabe, na frente.

Esse deus-Mercado criou, também, uma nova espécie de religião: o consumismo. Idem, uma nova “bíblia”: a globalização. Ai de quem não seguir os dogmas do consumismo: são excomungados pelos novos “sacerdotes” do deus-Mercado. Ridicularizados, excluídos, considerados, também, o “lado escuro do mundo”.

Isso provocou, igualmente, uma mudança radical de valores. O individualismo tomou o lugar do coletivismo. O homem passou a ser um, na multidão. Ele se conecta com o mundo, mas vive entre quatro paredes, como que um eremita por penitência ao consumismo.

O espaço público, onde as pessoas se integravam, deu lugar aos corredores dos shoppings centers, onde as pessoas buscam prazeres individuais, hipnotizadas pelo apelo ao consumo, sob pena de exclusão.

O “próximo” deixou de ser um semelhante, e se transformou em um concorrente. Pela vaga no emprego, na escola, no estacionamento e, até mesmo, na fila do hospital. É um, no lugar do outro, e não mais a soma dos dois.

Os pilares que sustentavam a formação das pessoas também se corroeram, em todo esse processo de mudança. A família, a escola e a igreja deram lugar, principalmente, para a televisão. Hoje, as crianças e os adolescentes passam mais tempo na frente da TV, do que nas salas de aula e das moradias e nas catequeses. O diálogo deu lugar ao monólogo. Os pais, professores e pastores já não são os principais educadores. A informação ocupou o lugar da formação.

Mas, o que chama mais a atenção é que a TV se transformou, também, em instrumento de “doutrinação” do “deus-Mercado”, com pressões, diretas e subliminares, pelo consumismo. Para que se transponha para o seu lado do muro, mesmo que seja através da violência. Não há dúvida de que a barbárie é, na sua formação, fruto da perda de valores antes disseminados por aquelas três instâncias de formação e de educação.

Neste mundo de individualização, a política seguiu, também, os mesmos passos. Ela deixou de se constituir numa atividade com finalidades coletivas, para ser, cada vez mais, individual, ou de interesse de grupos. O político não pensa mais no povo enquanto coletividade, mas naquele que financiou a sua campanha, ou que poderá, ainda, fazê-lo. Pior, pensa em si próprio. Embora, ainda, com uma propaganda de “obra para o povo”, o seu esforço se dá no sentido no maior retorno para si, ou para os seus seguidores mais próximos. Há, portanto, um discurso e uma prática, transitando em mãos diferentes de direção.

É interessante, para ilustrar essa mudança, a própria orientação ditada na chamada “Oração de São Francisco”. Até um determinado momento, “é dando que se recebe” significava uma espécie de indulgência, para quem se doava pelo povo, principalmente os mais necessitados. O importante, neste ensinamento, era o “doar”. Hoje, a mesma frase passou a significar o contrário: o que vale, na mesma lição, é, muito mais, o “receber”. Não há que se doar. Tem-se que “receber”. Ou, se doa no discurso, e se recebe na prática. A ação não é mais aquela que beneficia um número maior de cidadãos que dela necessita, mas a que propicia maior retorno, financeiro inclusive, para o político que por ela decidiu.

Então, ser franciscano no mundo da política, nos nossos tempos, é, como São Francisco na sua época: marchar contra o poder, agora em novos moldes. Um poder que se preocupa, individualmente, com bens materiais. Não mais com o bem coletivo, como se fazia política, há algumas décadas.

Quem faz política hoje, nos moldes franciscanos, corre o risco de ser, no mínimo, “folclorizado”, recebe a pecha de ultrapassado, de jurássico, extemporâneo. A política também criou, portanto, a sua “grife”. Quem não a usa, está “fora de moda”. É ilustrativa a experiência, quando se aborda, na tribuna do Senado, temas como humildade e solidariedade, princípios típicos do franciscanismo, portanto. Não há a devida repercussão interna. Entretanto, são os temas que mais instigam o recebimento de mensagens de todos os cantos e recantos deste país. Isso quer dizer que o discurso político se distanciou dos princípios franciscanos. Imagine-se, então, a prática.

Aí, então, vem à tona um outro preceito vivido por São Francisco: a prática, e não apenas o discurso, a fala, a palavra. Ele dizia, inclusive, que a Igreja do seu tempo apenas pregava o evangelho. Mas, não o exercitava. Não há diferença, portanto, da política, nos nossos tempos. Uma distância maiúscula entre o discurso e a prática. Promete-se muito, para se atrair, cada vez mais, fiéis, denominados “eleitores”, mas pouco se faz, depois de eleitos. O discurso é coletivo, e a prática, individual.

São Francisco tinha o contraponto dos cardeais. Eram eles que alertavam o Papa sobre o perigo do crescimento de uma congregação, que pregava o desapego às coisas materiais. Isso ia contra os interesses da Igreja da época. É, também, algo parecido com o mundo da política, nos nossos dias. O discurso “franciscano” da humildade, da solidariedade, do bem coletivo e do amor ao próximo afronta a prática do compadrio, do interesse individual e de grupos. Portanto, na política, também existem os “cardeais”, que se travestem de “líderes”, de lobistas, de financiadores de campanhas, entre outros “representantes”. São eles os novos “cardeais” da política. Eles, igualmente, temem que um discurso de “sacerdócio na política” também estimule um grande número de seguidores, capaz de lhes empanar a prática do “dando, que se recebe”, agora num sentido antifranciscano.

O que fazer, então?

Talvez não haja referência melhor, para o mundo da política, que o franciscanismo. Aliás, São Francisco de Assis deveria ser o patrono da classe política, em todo o mundo. O político deveria abrir mão, ao contrário do que acontece hoje, de toda e qualquer idiossincrasia individual. Ele deveria ser, como concepção de vida, um ser eminentemente coletivo. A política como um verdadeiro sacerdócio, e não como realização pessoal, como status ou, pior, como instrumento de locupletação com dinheiro público.

São Francisco também teve a opção, até mesmo a “tentação” de se isolar numa montanha, num lugar que lhe seria doado. Mas, ele preferiu continuar na sua pregação, junto ao povo.

É por isso que eventos como a Celebração Latino-Americana e Caribenha do Oitavo Centenário do Carisma Franciscano deveria incluir propostas de conversão. Não do povo aos preceitos de São Francisco de Assis, porque ele já sobrevive, aos milhões, na miséria vivida por ele. A conversão ao franciscanismo, no caso, tem que ser dos seus representantes políticos, exatamente para que o povo não continue a viver na miséria, como São Francisco.

Hoje, o mundo tem mais de um bilhão de pessoas passando fome. É de uma profunda consternação as imagens veiculadas pela imprensa nos campos de miséria da África, do Haiti e de tantos outros cantos do planeta, principalmente nas periferias das grandes cidades. Não é para estes irmãos que temos que pregar o franciscanismo. É por eles. O mundo da política tem que se converter a princípios como os pregados por São Francisco, para que esses irmãos sejam incluídos na nossa mesa de comunhão.

Acho que não cabe, nos dias atuais, uma pregação, pura e simples, contra o supérfluo. Não há que se blasfemar contra o “deus-Mercado”. Seria algo assim como se insurgir contra “moinhos de vento”. Seria confundir personagens da literatura e da história. Nada contra se praticar, na política, além do franciscanismo, o “quixotismo”. Mas, eu creio que o melhor caminho seja, hoje, lutar pela melhor distribuição do necessário. Não há como conviver, ainda, com tamanha disparidade de distribuição de renda, nos nossos países da América Latina e do Caribe, ou da África.

Não há como conviver com tantas crianças morrendo de fome, enquanto impera a opulência em, apenas, um dos lados do mundo. No Brasil, quase a metade das famílias com crianças na primeira infância possui rendimento médio per capita de até meio salário mínimo. No mundo, duzentos milhões de crianças dormem, todos os dias, na rua. A fome já atinge, como disse, um bilhão de pessoas. 

Numa visão otimista, como sempre foi a minha, é desta forma que eu vi, inicialmente, o Programa Fome Zero, no Brasil. Não só uma necessária distribuição de alimentos para quem passa fome. Para quem não tem absolutamente nada para comer. Mas, eu também vejo a experiência como uma enorme oportunidade de despertar os mais nobres sentimentos de solidariedade, muitas vezes existentes, mas adormecidos. De repente, parece que a população percebeu que havia uma multidão do outro lado do mundo do mercado.

Foi assim que eu entendi a proposta do Betinho. Não só uma coisa imediatista e, muito menos, populista. Menos ainda para angariar eleitores e votos. Ao contrário, eu vi na idéia do Betinho um patamar inicial de construção da verdadeira cidadania. Que, numa etapa posterior, o tal muro, para essas populações, seria transposto, pelo menos quanto aos bens de primeira necessidade, adquiridos através do trabalho e do suor.

Mas, tal e qual em outros grandes problemas brasileiros, esses sentimentos afloram, quase que somente, nos momentos de comoção e de indignação. Uma grande catástrofe e a radicalização da violência, por exemplo. Além disso, o querer “ter”, cada vez mais, no lugar do “ser”, somado à necessária, e árdua, luta pela sobrevivência, imposta pelo mundo atual, ocupa, também cada vez mais, a energia das pessoas. Sobra, portanto, muito menos tempo para a prática da solidariedade. Menos tempo, inclusive, para o convívio familiar. É o mundo moderno dificultando a prática franciscana da solidariedade.

Portanto, não haverá melhores resultados de programas que incitem os sentimentos franciscanos, se eles forem concebidos, apenas, em momentos de “soluço”. É por isso que o “carisma franciscano” é tão importante nos dias de hoje. É preciso, portanto, incutir, na sociedade como um todo, os princípios que fundamentam o franciscanismo, enquanto modo de vida, na sua essência, e não, apenas, como resposta a acontecimentos eventuais, passageiros, que se vão nas dobras das esquinas dos nossos esquecimentos.

Não há, também, que se esperar que o “mundo político” se converta aos princípios franciscanos. A “mercantilização” da política parece ser, igualmente, um caminho de difícil retorno. A permanecer a situação atual, as decisões políticas maiores sempre se voltarão, prioritariamente, para um lado do muro. Para o outro lado, quando muito, políticas compensatórias. Exemplo mais evidente, e atual, é a liberação de recursos para estancar a recente quebra dos mercados financeiros de todo o mundo. Foram trilhões de dólares, tomadas de imediato. Pois bem, para se dobrar a produção de alimentos no planeta, e matar a fome de mais de um bilhão, seriam necessários menos de trinta bilhões de dólares, valor relativamente tão menor, que vem sendo reclamado há muitos anos, sem o merecido sucesso.

Desta forma, o carisma franciscano somente se disseminará de fora para dentro do mundo da política. E, ele deve ser resgatado a partir dos mesmos “pilares” que se corroeram nestes tempos de mercantilização, inclusive da própria política: a família, a escola e a igreja. Nenhum destes “pilares” se sustenta, sozinho. Há que se resgatar, no diálogo familiar, na educação escolar e na evangelização, os valores que se perderam nestes tempos em que o mercado e o lucro ditaram as normas de conduta da população e dos seus representantes políticos.

Com certeza, haverá, aí, também, tentativas de ridicularizar esse discurso e essa prática. Haverá, como nos tempos de São Francisco, uma forte corrente contrária, ora para, aos moldes daqueles tempos, tentar burocratizar esse mesmo discurso, ora para seduzir os “seguidores” do carisma franciscano de hoje com adaptações que não impliquem em mudanças significativas na prática.

Que este encontro, nesta melhor hora, se transforme, portanto, em um passo seguro para uma maior aproximação do carisma franciscano ao mundo da política. Este evento será, com certeza, coroado de êxito nos seus discursos e nas suas propostas. Mas, como nos ensinamentos de São Francisco de Assis, é preciso partir para a prática. Despertar a solidariedade que mora no coração do ser humano, desde a sua concepção, e que se encontra hipnotizado pelos pêndulos do mercado. O franciscanismo é o contraponto do consumismo. É preciso resgatar o verdadeiro sentido do “ser” humano. Um ser criado por Deus, à Sua imagem e semelhança. Cumprir os destinos traçados por Este mesmo Criador: o trabalho, com o suor do próprio rosto. Não como castigo por eventuais pecados originais, mas como um exercício pleno de cidadania. Quem sabe possamos, então, inverter o enunciado: não mais o “carisma franciscano no mundo da política”, mas “a política no mundo do carisma franciscano”.

Era o que eu tinha a dizer.

Muito obrigado.

 

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DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR PEDRO SIMON EM SEU PRONUNCIAMENTO.

(Inserido nos termos do art. 210, inciso I e § 2º, do Regimento Interno.)

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Matéria referida:

“Carta de Brasília.”


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 23/10/2008 - Página 41251