Discurso durante a 227ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Homenagem pelo transcurso do centenário da morte de Machado de Assis.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA DO MEIO AMBIENTE. HOMENAGEM.:
  • Homenagem pelo transcurso do centenário da morte de Machado de Assis.
Publicação
Publicação no DSF de 02/12/2008 - Página 48703
Assunto
Outros > POLITICA DO MEIO AMBIENTE. HOMENAGEM.
Indexação
  • SOLIDARIEDADE, DISCURSO, AUTORIA, JOÃO PEDRO, SENADOR, CONGRATULAÇÕES, GOVERNO, LANÇAMENTO, PROGRAMA, CONTROLE, CLIMA, BRASIL, IMPORTANCIA, PRESERVAÇÃO, NATUREZA, MEIO AMBIENTE, IMPEDIMENTO, PROPAGAÇÃO, OCORRENCIA, CALAMIDADE PUBLICA.
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, ANIVERSARIO DE MORTE, MACHADO DE ASSIS, ESCRITOR, POETA, JORNALISTA, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), REGISTRO, HISTORIA, VIDA, RELEVANCIA, OBRA LITERARIA, LITERATURA BRASILEIRA.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, sempre tenho de começar meus pronunciamentos nesta Casa agradecendo a generosidade de V. Exª, que nunca faltou com este seu velho amigo.

Quero dizer que, com absoluta correção, cedi a palavra ao Senador Gilberto Goellner, que brindou a Casa com um discurso vigoroso, com a experiência que possui com relação à agricultura de Mato Grosso.

Ao nosso querido colega, Senador José Nery, quero também me associar. Associo-me às congratulações que fez ao Governo pelo lançamento do Programa de Controle Climático do Brasil. Na realidade, o problema ecológico, cada vez mais, é predominante nas discussões em todos os lugares do mundo. Como disse Lévi-Strauss, se o homem é o principal poluidor da Terra e se não tomarmos providências dessa natureza, marcharemos, sem dúvida, para um suicídio conduzido pelo próprio homem. E sabemos que os 10 mil anos de existência da nossa civilização documentada coincide com o maior período em que o homem tem danificado a Terra.

Mas Lovelock teve a oportunidade de dizer que a Terra era um organismo vivo que reagia a essas agressões. Agora mesmo estamos assistindo a uma tragédia nacional que ocorre com as chuvas: enchentes e deslizamentos no Estado de Santa Catarina e, agora também, um pouco no Estado do Rio de Janeiro, em Campos.

Antigamente, a religião era muito forte no homem primitivo. Assim, quando aconteciam esses fenômenos da natureza, dizia-se que eram “castigos de Deus” - os terremotos, os maremotos, os tsunamis. Hoje, já há uma consciência de que Deus, na realidade, deu-nos a Terra para que dela usufruíssemos, e não a matássemos com essa ação corrosiva que tem existido sobre todos os setores que têm modificado a natureza humana.

Portanto, o Presidente Lula agiu, como bem disse o Senador Nery, com muita objetividade, estabelecendo metas, juntamente com o Ministro do Meio Ambiente, a serem perseguidas. Já estabelecemos alguns programas de metas no âmbito mundial, mas esses programas fracassaram, inclusive o acordo de Kyoto, que começou a ser bombardeado pela negativa do Presidente Bush em subscrevê-lo.

Sr. Presidente, divagando um pouco sobre esses assuntos, quero dizer que venho à tribuna do Senado para resgatar comigo mesmo um dever. Na sessão do Senado que relembrou o centenário da morte de Machado de Assis, eu devia estar presente nesta tribuna, se não fossem por outros motivos, até mesmo por pertencer à casa que Machado fundou e de que foi o consolidador: a Academia Brasileira de Letras. Mas não só isso. Se fizermos uma história mundial da literatura e escolhermos os grandes escritores do mundo inteiro, certamente aí estará incluído Machado de Assis. A sua obra é realmente notável.

Ele faleceu em 1908 - num tempo em que a Medicina tinha suas limitações - com grande sofrimento, cercado de amigos, do apoio e do lamento da sociedade brasileira, principalmente dos intelectuais que constituíam seu círculo de amizades.

Antes, porém, de prosseguir falando sobre Machado de Assis, peço desculpas, pois, por um lapso de linguagem, chamei o Senador João Pedro de Nery. Acho que não o ofendi, pois são colegas nossos da mesma região, um Senador respeitável. De qualquer forma, na realidade, eu precisava fazer essa retificação. Aliás, E essas coisas, Sr. Presidente, V. Exª, como médico, sabe que são lapsos de velho.

O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PMDB - PI) - Emoções, como aquela música de Roberto Carlos. V. Exª ficou emocionado por ser o único brasileiro a poder, por três vezes, presidir esta Casa.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Muito obrigado.

Eu ia dizendo que o primeiro emprego de Machado, que nasceu no Rio de Janeiro, foi de caixeiro. Mas, realmente, ele não nasceu para caixeiro. Logo em seguida, com o apoio de Paula Brito, ele se transforma em caixeiro de livros e em tipógrafo.

Depois, Manuel Antônio de Almeida, o grande autor das Memórias de um Sargento de Milícias - esse livro que pode ser considerado o romance fundador do romance de costumes no Brasil -, que era diretor da Imprensa Nacional, convida o jovem, quase menino, Machado para ser aprendiz de tipógrafo, onde passa também pouco tempo. Mas essa função marcaria sua vida, porque, para compor a sua personalidade, ele começa justamente tratando com os tipos, num exercício que está ligado profundamente à imprensa, que é o grande veículo da palavra escrita.

Esse emprego durou apenas dois anos. Aí ele entra na vida do jornalismo, quando começa sua vida literária, com colaborações avulsas.

Esse tempo é mais ou menos a época de 1860, exatamente o ano que ele relembra, na crônica O Velho Senado, haver entrado para a imprensa. Essa crônica é uma página memorável, notável, não só pelo estilo, mas pela quantidade de informações, num verdadeiro quadro que ele pinta, do ponto de vista psicológico, sobre o que era o velho Senado do Império, que, como sabemos, era o Senado vitalício a que muitos devem a consolidação do País. O Brasil consolidou-se nas suas fronteiras e definiu não somente a sua configuração geográfica, mas também as suas instituições, conforme é citado pelos historiadores, pelo Conselho de Estado e pelo Senado, eis que, embora vitalício - e seria impossível pensar-se hoje num Senado vitalício, ainda que existente na Inglaterra, como é o caso da Câmara dos Lordes, e também na Itália -, o Senado vitalício dava uma certa continuidade a um país que nascia, a um país que começava a construir suas instituições.

Nesta crônica O Velho Senado, ele disse:

Neste ano, [1860] entrara eu para a imprensa [um jovem jornalista]. Uma noite, como saíssemos do Teatro Ginásio, Quintino Bocaiúva e eu fomos tomar chá. (...) conversamos primeiramente de letras e, pouco depois, de política, matéria introduzida por ele, o que me espantou bastante; não era usual nas nossas práticas. Nem é exato dizer que conversamos de política, eu antes respondia às perguntas que Bocaiúva me ia fazendo, como se quisesse conhecer as minha opiniões.

            Machado era muito reservado nas suas opiniões políticas. Ele sempre foi um homem que não se exaltava. Chegamos a quase ter argumentos para achar que ele não gostava muito de exprimir as suas convicções políticas.

Provavelmente, não as teria fixas nem determinadas; mas, quaisquer que fossem, creio que as exprimi na proporção e com a precisão apenas adequadas ao que ele me ia oferecer.(...)

Tratava-se do Diário do Rio de Janeiro, que ia reaparecer sob a direção política de Saldanha Marinho. Vinha dar-me um lugar na redação com ele e Henrique César Múzio.

Talvez suas idéias fossem mais vagas que as de Quintino Bocaiúva, cujo destino era ser o grande publicista da República, o único civil no golpe da República de 15 de novembro, o grande jornalista que foi, ao lado de Evaristo da Veiga. Se eram vagas, não eram absolutamente descompromissadas. Com Quintino e Saldanha Marinho, faz do Diário do Rio de Janeiro um baluarte liberal. E Machado de Assis sempre procurou se manifestar, embora com aquela moderação do seu estilo, como um liberal. E algumas de suas desavenças são justamente pelo que os chefes consideravam excessos.

Qual era a visão de Machado sobre a política? Nas anotações que fiz para fazer o discurso daquele dia, procurei justamente não analisar a vasta obra de Machado de Assis, mas apenas dela extrair um pouco sobre o seu pensamento sobre a política e, sobretudo, sobre o Senado, porque devemos a ele, que cobriu o Senado como jornalista, algumas das passagens importantes da vida desta Casa.

Qual era a visão de Machado sobre o Senado?

Em 1861, aos 21 anos, a crítica ao Senado era dura:

Os tipos deste gênero são mais vulgares do que muita gente pensa; - espíritos medíocres, não podendo abraçar a amplidão do espaço em que a civilização os lançou, olham saudosos para os tempos e as coisas que já foram, e caluniam, menos por má vontade que por inépcia, os princípios em nome dos quais se elevaram.

Seus comentários refletiam a sua oposição.

Em março de 1862, o Governo fingiu acreditar em um ataque de surpresa dos liberais que se opunham à inauguração da estatua eqüestre de Dom Pedro I no Largo do Rocio, e adiaram a cerimônia por causa da chuva. Comentou Machado, com a sua mordacidade:

É amanhã a inauguração da memória do Rocio. É também amanhã o aniversário da proclamação da nossa carta política. Por último, na opinião do ministério, é amanhã a realização de uma revolta popular, preparada pelos chefes liberais a bem de se apossarem do Governo.

Dom Pedro I ficou, durante todo o tempo do Primeiro Reinado, um pouco, desde a abdicação, sem ter a simpatia geral do Pais, até mesmo porque era tido que queria restaurar o Partido Português e voltar um pouco na história para que o Brasil voltasse a ser colônia de Portugal.

Essa ironia era a tônica de seus comentários:

Supunha-se que o gabinete tivesse olhado as coisas políticas da Europa de um ponto de vista justo e portanto elevado. Era caluniá-lo; e para não haver dúvida veio ele próprio declarar que faz a sua apreciação do movimento do espírito humano do alto da varanda do Palácio Imperial.

Sua posição política se mantinha, como disse, alinhada com o liberalismo de Saldanha Marinho, no jornal no qual ele trabalhava.

Sobre a República, ele divergia de Quintino:

Eu peço aos deuses (também creio nos deuses) que afastem do Brasil o sistema republicano, porque esse dia seria o nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais alumiou. Mas, na realidade, o Brasil não é uma monarquia constitucional, mas uma oligarquia absoluta.

O problema do sistema eleitoral, naquele tempo, dominava as preocupações da época. Indagava Machado:

Mas que remédio dou, então, para fazer todas as eleições puras?

Acompanhava as idéias mais avançadas da época, como a da abolição da pena de morte e até o sufrágio universal:

Não é tempo de iniciar francamente a idéia da eleição direta, e não censitária, (porque seria injusta e odiosa) de maneira a tornar efetiva a soberania popular? [Ele era a favor da eleição direta:] Não é este um grande dever e uma bela ação de um partido liberal sincero e convencido?

Sobre a questão da legislação eleitoral, devo recordar que o Conselheiro Saraiva, quem fundou Teresina - V. Exª bem se lembra quando ele foi Governador da província -, a sua grande obsessão e presença na Casa era justamente a de fazer a reforma da legislação eleitoral, que chegou a fazer em 1885, na Lei dos Círculos.

Várias vezes, mais tarde, no tempo das reminiscências, menciona a campanha liberal de 1860. Diz Machado:

(...) 1860! Quem se não lembra da célebre eleição desse ano, em que Otaviano, Saldanha e Ottoni derrubaram as portas da Câmara dos Deputados à força da pena e da palavra? [O lencinho branco] de Ottoni era a bandeira dessa rebelião, que pôs na linha dos suplentes de eleitores os mais ilustre chefes conservadores (...).[ O tema vai ecoar novamente na crônica que ele fez sobre o velho Senado].

Entre suas lembranças permanece o problema do sistema eleitoral:

Sou um homem que, por ler jornais e haver ido em crianças às galerias das câmaras, tem visto muita reforma, muito esforço sincero para alcançar a verdade eleitoral, evitando a fraude e a violência, mas, por não saber de política, ficou sem conhecer as causas do malogro de tantas tentativas.

As crônicas de reminiscências, de que o ponto alto é a O Velho Senado, já não têm a ironia ferina, mas sim o senso preciso de observação que deixa a crítica se esgueirar por trás do texto.

Um dos meus hábitos é ir, no tempo das câmaras, passar as horas nas galerias [Ele freqüentava as galerias do velho Senado!]. No Senado, nunca pude fazer a divisão exata, não porque lá falassem mal; ao contrário, falavam geralmente melhor do que na outra Câmara. Mas não havia barulho. Tudo macio [O Senado está mudando um pouco]. O estilo era tão apurado, que ainda me lembro de certo incidente que ali se deu, orando o finado Ferraz, um que fez a lei bancária de 1860. Creio que era então Ministro da Guerra, e dizia, referindo-se ao um Senador: [Ferraz, como todos nós sabemos, era Ministro da Guerra e não gostava do velho Caxias. Até dá-se como uma das crises da queda do Gabinete o fato da divergência entre Ferraz e Caxias].

Eu entendo, Sr. Presidente, que o nobre senador não entendeu o que disse o nobre ministro da marinha, ou fingiu que não entendeu”. O visconde de Abaeté, que era o presidente, acudiu logo: “A palavra fingiu acho que não é própria”. E o Ferraz replicou: “Peço perdão a V. Exª, retiro a palavra”.

         Era o Senado naquele tempo: achava-se que a palavra de um colega dizendo que ele fingiu não devia constar dos Anais da Casa. Essas descrições não davam trabalho para a Drª Cláudia de ter que falar para a Taquigrafia retirar palavras. Essas descrições surgem freqüentemente, mostrando que seu interesse pela política permaneceu, tomando, depois de 1868, a posição de observador. Transcrevo:

Oh! As minhas belas apresentações de ministério! Era um regalo ver a Câmara cheia, agitada, febril, esperando o novo gabinete. Moças nas tribunas, algum diplomata, meia dúzia de senadores. De repente, levantava-se um sussurro, todos os olhos voltavam-se para a porta central, aparecia o ministério com o chefe à frente, cumprimentos à direita e à esquerda. Sentados todos, erguia-se um dos membros do gabinete anterior e expunha as razões das retiradas; o presidente do conselho erguia-se depois, narrava a história da subida, e definia o programa. Um deputado da oposição pedia a palavra, dizia mal dos dois ministérios, achava contradições e obscuridades nas explicações, e julgava o programa insuficiente. Réplica, tréplica, agitação, um dia cheio.

Trata de um velho sistema da política brasileira, o de uma elite que se reúne e é decisiva. Diz Machado:

Tempos do papa! Tempos dos cardeais! Não falo do papa católico, nem dos cardeais da santa Igreja Romana, mas do nosso papa e dos nossos cardeais. Francisco Otaviano, então jornalista, foi quem achou aquelas designações para o Senador Eusébio e o estado-maior do Partido Conservador. [...] Um dia, um domingo, havia eleições, como hoje. Papa e cardeais tinham o poder nas mãos, e, sendo o regímen de dois graus, entraram eles próprios nas chapas dos eleitores, que eram escolhidos pelos votantes. Os liberais resolveram lutar com os conservadores, apresentaram chapas suas e os desbarataram.

Naquele tempo, Sr. Presidente, chamavam-se “os papas e os cardeais” da Casa. Como vi hoje nos jornais, eu e o Senador Presidente da Casa, Garibaldi, que fomos testemunhas do casamento da filha do Maranhão na Paraíba, somos chamados de caciques, que lá estavam apadrinhando a filha do nosso querido Senador. Naquele tempo, seríamos cardeais.

Machado, naturalmente, guardou sempre a visão mais favorável ao seu grupo. Ele sempre lembra a dignidade de Saldanha Marinho:

Ouço ainda os aplausos de 1868, estrepitosos, sinceros e unânimes. Os ministros entraram, com Itaboraí à frente, e foram ocupar as cadeiras onde dias antes estavam os ministros liberais. [...] Itaboraí levantou-se e pediu os orçamentos. Foi então que desabou uma tempestade de vozes duras e vibrantes. Posto soubesse que se despedia a si mesma, a Câmara votou uma moção de despedida ao ministério conservador. [...] Uma das vozes duras e vibrantes foi a de Saldanha Marinho. Escolhido Senador pelo Ceará, nessa ocasião, bastava-lhe pouco para entrar no Senado - para esperá-lo, ao menos. O silêncio era o conselho do sábio. [...] O senador escolhido deitou fora até a esperança. Ergueu-se, e com poucas palavras atacou o ministério e a própria coroa; lembrou 1848, a que chamou estelionato, e deixou-se cair com os amigos.

Lembrando palavras que não eram permitidas naquele tempo, eu recordo um episódio do Visconde de Abaeté, que, durante muitos anos, presidiu esta Casa. Um certo colega estava tido como se tivesse tomado algum vinho no almoço e tivesse se excedido, e, quando pediu a palavra, Abaeté disse: “V. Exª não está em condições de deliberar”. Então, era uma maneira muito delicada para comentar o almoço do colega.

Já vou longe em minhas citações, mas me permitam destacar a importância dessa crônica. Os personagens da Casa, do velho Senado, diz Machado:

[...]tinham um ar de família, que se dispersava durante a estação calmosa, para ir as águas e outras diversões e que se reunia depois, em prazo certo, anos e anos [com os mesmo costumes].

E Machado lembra a freqüência, as reuniões, a ligação com o passado. Há certamente uma ligação entre essas páginas e as de Joaquim Nabuco em Um Estadista do Império, esse livro tão extraordinário, talvez o melhor livro, de melhor estilo, escrito em nossa língua, cuja composição é mais de uma vez evocada por Machado.

Sobre Um Estadista do Império, não resisto a contar que, quando pedi a meu pai que me orientasse, porque eu gostava de escrever, de ler, ele me disse: “Leia Vieira”. E eu perguntei: “E depois?”. Ele disse: “Leia Vieira”. E eu perguntei pela terceira vez: “E depois, meu pai?”. Ele disse: “Leia Vieira, mais uma vez”. Eu contraí esse hábito e passei a ler Vieira a vida inteira, até como livro de cabeceira. Mas ele acrescentou: “Quando você estiver além dos preparatórios” - porque, naquele tempo, não se chamava curso ginasial, nem científico, chamavam-se preparatórios -, ele disse: “Leia Um Estadista do Império, que é o melhor livro...” - e repito a palavra que ele disse - “e o melhor escrito em nossa língua”. E eu também cumpri com essa orientação dele, lendo o livro do Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império.

O que em Nabuco é um prenúncio para a matéria política, no entanto, em Machado é a condensação, num cristal do tempo, da Casa, dos seus grandes nomes. Lembro alguns:

Ouro Preto e Sinimbu, diante da multidão a os apupar. Diz Machado: “Ouro Preto fitava-a com a cabeça erguida e certo gesto de repto; Sinimbu parecia apenas mostrar ao colega um trecho de muro, indiferente”.

Sobre Zacarias, que era muito satírico e muito vigoroso, tanto que, em uma página de Joaquim Nabuco que fala sobre os Anais, em Discursos Parlamentares, ele fala que o Visconde do Rio Branco tinha as mãos de mármore, quando, da tribuna, vinham as flechas de Zacarias, que era sempre mordaz. Machado diz:

Zacarias fazia reviver o debate pelo sarcasmo e pela presteza e vigor dos golpes. Tinha a palavra cortante, fina e rápida, com uns efeitos de sons guturais, que a tornavam mais penetrante e irritante [diz Machado]. Quando ele se erguia, era quase certo que faria deitar sangue a alguém.

Em vez de sangue, eram as mãos brancas de mármore que o Visconde do Rio Branco tinha. É o que cita Joaquim Nabuco, na sua obra, Discursos Parlamentares, referindo-se a esse episódio, falando dos negócios lóios, na defesa do Ministro João Alfredo, que tinha sido Ministro da Abolição, que estava sendo muito atacado, e Nabuco julgava que ele era atacado porque tinha feito a Abolição.

         Sobre Nabuco de Araújo, não Joaquim Nabuco, mas o pai dele, Conselheiro Nabuco de Araújo, diz:

A palavra do velho Nabuco era modelada pelos oradores da tribuna liberal francesa. O gesto não era vivo, [...] mas pausado, o busto cheio era tranqüilo, e a voz adquiria uma sonoridade que habitualmente não tinha.

Sobre o Marquês de Olinda, o velho Marquês de Olinda:

Olinda aparecia-me envolvido na aurora remota do reinado [...]. [E, surdo] Quando tinha de responder a alguém, ia sentar-se ao pé do orador, e escutava atento, cara de mármore, sem dar um aparte, sem fazer um gesto, sem tomar uma nota. E a resposta vinha logo; tão depressa o adversário acabava, como ele principiava, e, ao que me ficou,lúcido e completo.

         Então, ele tinha ouvidos que não ouviam muitos elogios, mas às críticas ele estava atento e pronto para responder.

         Sobre o Visconde de Jequitinhonha, a Montezuma, que vinha desde a Constituinte, porque ele participou da Constituinte, dizia:

[...] foi preciso [...] ouvir-lhe a ironia de hoje para entender a ironia daquela retificação que ele pôs ao texto de uma pergunta ao Ministro do Império, na célebre sessão permanente de 11 a 12 de novembro: ‘Eu disse [falava Montezuma] que o Sr. Ministro do Império, por estar ao lado de Sua Majestade, melhor conhecerá o ‘espiríto da tropa’, e um dos senhores secretários escreveu ‘o espiríto de Sua Majestade’, quando não disse tal [Montezuma, com sagacidade, disse], porque deste não duvido eu’.”

Ele falava da tropa que tinha fechado a Constituinte.

Sobre o Visconde do Rio Branco, que era o Paranhos... No princípio, eu pensava que era maior do que o Barão - o Visconde do Rio Branco era pai do Barão. Quando cheguei à Presidência da República, cheguei à conclusão de que o Barão era maior do que o seu pai. O Barão foi o grande estadista que pensou no futuro da grande Nação que iríamos ser, moldando a Nação com a política externa que desenvolveu, embora o Visconde do Rio Branco seja um homem extraordinário. Seus discursos são discursos que mostram uma cultura muito grande.

Ele teve oportunidade de participar de muitos episódios, como a Lei do Ventre Livre, em que ele foi o condutor, e de discutir com José de Alencar a Lei da Regência. O Imperador ia viajar - como disse V. Exª, ele viajou duas vezes -, e era preciso uma Lei da Regência. Então, há um discurso entre os dois que mostra uma grande beleza de dois grandes oradores. O José de Alencar de que estou falando não é o escritor, é José de Alencar o pai do escritor, que foi Senador da República.

Dizia de Visconde do Rio Branco:

Paranhos foi demitido, e, aberta a sessão parlamentar, cuidou de produzir a sua defesa. [...] costumava falar com moderação e pausa; firmava os dedos, erguia-os para o gesto lento e sóbrio, ou então para chamar os punhos da camisa [dava uma puxadinha para chamar os punhos da camisa], e a voz ia saindo meditada e colorida.

Vemos, aqui, como Machado era precioso nos detalhes. É possível a gente reconstituir e ver como ele descrevia a sessão do Senado e como ele fazia esse retrato de cada um deles. Essas pinceladas nos dão, mais do que se víssemos o retrato, uma visão psicológica de cada um.

         Naquele dia, porém, ânsia de produzir a defesa era tal, que as primeiras palavras foram antes bradadas que ditas:Não a vaidade, Sr. presidente...” Daí a um instante, a voz tornava ao diapasão habitual, e o discurso continuou como nos outros dias. Eram nove horas da noite, quando ele acabou, estava como no princípio, nenhum sinal de fadiga nele nem no auditório, que o aplaudiu. Foi uma das mais fundas impressões que me deixou a eloqüência parlamentar. A agitação passara com os sucessos, a defesa estava feita. Anos depois do ataque, esta mesma cidade aclamava o autor da lei de 28 de setembro de 1871, como uma glória nacional...

Durante algum tempo, acreditou-se que Machado havia sido candidato a deputado em 1866, por Minas Gerais. Tenho uma certa desconfiança de que ele foi candidato, de que, pelo menos, candidatou-se, propôs-se a candidatar-se. Quando fiz meu discurso de ingresso na Academia, tive a oportunidade de falar do político e do literato e de dizer que Machado também tinha sido seduzido um pouco pela política quando tentou candidatar-se por um distrito de Minas Gerais, onde Saldanha Marinho era Presidente. Trata-se de uma menção de uma chapa com Sizenando Nabuco e Quintino Bocaiúva. Mas a mesma fonte registra, duas semanas depois, que “soube à última hora que o Sr. Machado de Assis retira a sua candidatura”. Quer dizer, ele retirara a candidatura, mas chegara a ter vontade de se candidatar. Naquele tempo, não havia registro de candidatura, não havia esse cerimonial todo da nossa lei atual. Eram quase gestos feitos apenas para cumprir a normalidade.

Na realidade, sua relação com o Diário entrara em crise.

Ao contrário da imagem corrente, o jovem Machado tinha excelente saúde, que, com o tempo, começara a declinar. Na época de seu casamento, a epilepsia ainda estava sob controle, distante do público. Com o tempo, ela vai acentuar-se, e ele ficará levemente gago. Seu primeiro problema grave é a doença ocular que, em 1878, afasta-o do trabalho e faz durante algum tempo de Carolina, sua esposa, sua leitora e secretária. Nas crises de saúde, sempre que possível, refugiavam-se na serra, em Petrópolis ou em Nova Friburgo.

Enquanto isso, o escritor se transforma. Cada romance - Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena, Iaiá Garcia - marca um avanço, como numa corrida para o grande salto da literatura brasileira, que é a aparição, em 1881, das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Nesse livro, sua visão sempre irônica do mundo e das gentes, umas “rabugens de pessimismo”, um “sentimento amargo e áspero”, revelam um mundo novo. A originalidade não está na fórmula de abrir com o óbito do autor, mas na capacidade, então revelada, de transmitir uma compreensão da natureza humana ainda não experimentada na literatura. Se há, sem dúvida, uma forte influência de autores ingleses e franceses, a linguagem de Brás Cubas é bem brasileira, separando de vez as duas grandes literaturas de língua portuguesa.

Os contos tornam-se, também, exemplos de domínio do tema e da linguagem. Considero que Machado é tão grande nos contos quanto o foi nos romances, e alguns deles, podemos dizer, nivelam-se aos seus grandes romances. Papéis Avulsos e Histórias Sem Data cobrem o longo intervaldo de dez anos até Quincas Borba. Dos contos longos, como O Alienista, aos contos curtos, como Noite de Almirante, Machado fixa as referências básicas do gênero no Brasil: um humor suave, o mergulho rápido e inicial no cerne mesmo da história, envolvendo o leitor num laço que o prende até o desfecho.

Se Brás Cubas tratava do desengano do mundo, Quincas Borba, sua seqüência, trata da desilusão do homem. Morto no capítulo XI, dos 201 da narrativa, Quincas Borba é substituído pelo cão a quem dera seu nome. Personagens mortos, Quincas Borba e Brás Cubas atravessam a literatura brasileira mais vivos que nunca. Há muitos que dizem que Machado até não devia ter dado o título de Quincas Borba a esse livro, porque Quincas Borba não é, na realidade, o personagem central. Machado reclamava da popularidade de uma frase, que todos nós repetimos muito e que é muito citada no Brasil: “Ao vencedor, as batatas!”. “Pois esta gente não vê que o Rubião teve as batatas e não venceu?”, pergunta ele.

Enquanto escreve Dom Casmurro, dois episódios marcam, de maneira distinta, a vida de Machado. Reunidos em torno de Machado na Revista Brasileira, um grupo de escritores resolve fundar um clube, a Academia Brasileira, instituição central da nossa vida literária a que me orgulho de pertencer e de que lamento ser o decano - isto é, sou o sobrevivente de todos os que me elegeram e de muitos que lá chegaram depois de mim.

Em janeiro de 1900, saíra um novo romance, justamente Dom Casmurro, desde logo saudado como uma obra-prima - e até hoje lido, relido, citado, estudado em todas as universidades, com todos os leitores. Nunca uma figura se consolidou na literatura brasileira como Capitu e, no entanto, é um personagem sutil, impalpável no seu enigma, com seus “olhos de cigana, oblíqua e dissimulada”, que se tornavam de repente em “olhos de ressaca”, arrastando Bentinho no retorno das ondas. E a pergunta do Bentinho: “a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos?”, com a resposta “uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca” só nos traz mais dúvidas.

Eu li hoje em Carlos Heitor Cony uma crônica na qual ele fala de Capitu. E diz, ao mesmo tempo, que se ela traiu ou se não traiu, isso de nada interessa porque todos nós ainda hoje ficamos com essa pergunta. E muitos desejam opinar sobre a conduta de Capitu.

O ano de 1904 é todo marcado pela doença de Carolina, sua mulher. Da dor de Machado falam os belíssimos versos que ele escreveu, um dos sonetos mais bonitos da língua portuguesa que é “A Carolina”, considerado por Manuel Bandeira como uma das obras-primas de nossa literatura.

Eu não me fujo, Sr. Presidente, já a hora é alta, tenho pulado muitos trechos dessas palavras, mas não fujo de ler este soneto de Machado sobre a mulher:

A Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro

Em que descansas dessa longa vida,

Aqui venho e virei, pobre querida,

Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

Que, a despeito de toda a humana lida,

Fez a nossa existência apetecida

E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, - restos arrancados

Da terra que nos viu passar unidos

E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos.

Sem a esposa, é tênue o laço que o prende à vida. Entre os papéis de Machado surge anotações dessa época, com uma letra irregular que contrasta com sua escrita fina e ordenada: “4 de set. a ausência em casa do Garnier, onde bebi água e Lansac me deu sais a cheirar. Era de tarde. Fizera-me sentar, e eu respondi em português, ao que ele me disse em francês.” Adiante: “Caso da bacia, à noite (ausência?)” A epilepsia já estava fora de controle.

Machado foi um homem social. Todos pensam que ele foi um “caturrão”, mas na realidade ele foi um homem social. O sentimento de generosidade, cujo melhor exemplo é talvez a carta resposta a Alencar sobre Castro Alves, é uma constante em sua vida. É também um homem apaixonado que passou de vários amores da mocidade para o único amor da sua vida, que foi Carolina, mas sem perder a chama.

Machado saiu da condição mais humilde para se tornar o maior escritor brasileiro. Sua obra consegue tocar a essência da vida carioca e, ao mesmo tempo, compreender o ser humano universal. Como o Conselheiro Aires, Machado observa o mundo com uma ponta de humor, com uma pitada de nostalgia, com um punhado de piedade e faz uma literatura leve de profundidade infinita.

A obra e Machado é por excelência grandemente coerente, no sentido de “que adere reciprocamente”, no dizer de Houaiss. Chegado à maturidade com as Memórias Póstumas de Brás Cubas, segue um caminho de simplicidade, sem falhas, construindo um universo ficcional próprio.

A importância da obra de Machado deixa muitas vezes de lado um aspecto que revela muito de sua vida e é um paraíso para quem os que a conhecem: o vulto de sua obra de circunstância, obra de um trabalhador quase braçal da imprensa brasileira. Sua crônica, seus contos, seus poemas, alguns romances saíram do papel do jornal antes de assentarem em livro. E aí adquire todo o sabor a frase curta, a capacidade de síntese e contenção que marcam o seu estilo.

Quando saiu o Primo Basílio, Machado fez uma crítica muito severa do livro - e Eça de Queiroz, curiosamente, fez de Machado o detentor dos direitos autorais do livro no Brasil. O que condenava Machado era o “realismo sem condescendência, é a sensação física”. A ele, que na época publicava as Memórias Póstumas de Brás Cubas, o que importava era a sensação intelectual. Assim, sua obra não descreve a trajetória de superação dos desafios sociais e econômicos que realizara em proporção maior do que qualquer outro brasileiro, mas se concentra na captura da alma brasileira.

Machado deixa o grande painel de sua obra neste Brasil em que nos reconhecemos como personagens da humanidade, independentemente de tempo e espaço - o final do século XIX e a pequena cidade do Rio de Janeiro - e essa obra se estende em vôo alto acima do resto da literatura brasileira.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 02/12/2008 - Página 48703