Discurso durante a 53ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentários sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal, que julgou constitucional a demarcação contínua da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Contestação da "dívida histórica" que o Brasil teria para com o Paraguai.

Autor
Gerson Camata (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/ES)
Nome completo: Gerson Camata
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INDIGENISTA. POLITICA EXTERNA.:
  • Comentários sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal, que julgou constitucional a demarcação contínua da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Contestação da "dívida histórica" que o Brasil teria para com o Paraguai.
Publicação
Publicação no DSF de 17/04/2009 - Página 11974
Assunto
Outros > POLITICA INDIGENISTA. POLITICA EXTERNA.
Indexação
  • APOIO, DECISÃO, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), JULGAMENTO, AÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE, MANUTENÇÃO, DEMARCAÇÃO, RESERVA INDIGENA, CRIAÇÃO, MODELO, COMBATE, ABUSO, PROCESSO, ESPECIFICAÇÃO, SOBERANIA, UNIÃO FEDERAL, TERRAS, USUFRUTO, INDIO, PROIBIÇÃO, AMPLIAÇÃO, RESERVA, RESTRIÇÃO, PODER, FUNDAÇÃO NACIONAL DO INDIO (FUNAI), PARTICIPAÇÃO, ESTADOS, MUNICIPIOS.
  • QUESTIONAMENTO, POLITICA INDIGENISTA, ISOLAMENTO, INDIO, ALEGAÇÕES, PRESERVAÇÃO, CULTURA, COMENTARIO, SITUAÇÃO, TERRITORIO, ESTADO DE RORAIMA (RR), INFERIORIDADE, TERRAS, ATIVIDADE ECONOMICA.
  • CRITICA, PORTARIA, FUNDAÇÃO NACIONAL DO INDIO (FUNAI), DEMARCAÇÃO, TERRAS INDIGENAS, ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL (MS), AREA, SUPERIORIDADE, PRODUÇÃO, SOJA, MILHO, PECUARIA, ANALISE, ERRO, POLITICA INDIGENISTA, INJUSTIÇA, ABANDONO, INDIO, DESCONHECIMENTO, INTEGRAÇÃO, APREENSÃO, CLANDESTINIDADE, GARIMPAGEM, DIAMANTE, NIOBIO, URANIO, OURO, CASSITERITA, ESTADO DE RORAIMA (RR), ATUAÇÃO, ORGANIZAÇÃO NÃO-GOVERNAMENTAL (ONG), FRONTEIRA, INCENTIVO, CONTRABANDO, AUTONOMIA, SEPARAÇÃO, NACIONALIDADE, AUXILIO, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU).
  • COMENTARIO, TENTATIVA, PAIS ESTRANGEIRO, PARAGUAI, COBRANÇA, BRASIL, PERDÃO, DIVIDA CONSTITUIDA, ITAIPU BINACIONAL (ITAIPU), ALEGAÇÕES, COMPENSAÇÃO, DIVIDA, HISTORIA, CAMPANHA DO PARAGUAI, APOIO, ITAMARATI (MRE), REJEIÇÃO, PROPOSTA, ANALISE, FATO, REGISTRO HISTORICO, RESPONSABILIDADE, CONFLITO, GOVERNANTE, DITADURA, GOVERNO ESTRANGEIRO, INVASÃO, ESTADO DE MATO GROSSO (MT).
  • CRITICA, TENTATIVA, REABILITAÇÃO, VULTO HISTORICO, FALSIDADE, ENSINO, HISTORIA, PAIS ESTRANGEIRO, INICIATIVA, ALFREDO STROESSNER, EX PRESIDENTE, DITADURA.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. GERSON CAMATA (PMDB - ES. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional a demarcação em faixa contínua da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. A decisão não é novidade, pois a questão estava liquidada tecnicamente desde dezembro do ano passado, quando o julgamento foi interrompido por um pedido de vista do ministro Marco Aurélio Mello.

A decisão do Supremo Tribunal tem de ser respeitada, embora a demarcação em faixa contínua transforme em intrusos agricultores que compraram legalmente suas terras, que delas extraem o sustento, e onde nasceram seus filhos e netos. De positivo, cabe ressaltar que o STF também criou, com sua sentença, um novo modelo demarcatório que inviabiliza os excessos que vinham sendo cometidos.

Concede-se aos índios o usufruto das terras, mas elas continuam de posse da União, que poderá, com autorização do Congresso, explorar os recursos hídricos e minerais do território. Também não será necessária permissão das comunidades indígenas e da Funai para o ingresso das Forças Armadas e da Polícia Federal para defender as fronteiras, bem como para a construção de instalações militares. Nada mais certo, pois, como afirmou o ministro Cezar Peluso, “as tarefas de segurança nacional não podem ficar a cargo de populações que não têm capacidade nem equipamentos”.

Não haverá também impedimento para a construção de estradas e redes de comunicação, e os habitantes da reserva não poderão fazer garimpo, cobrar tarifas ou pedágios, e tampouco arrendar as terras que lhes foram concedidas.

Os Ministros proibiram ainda a ampliação de reservas já demarcadas e eliminaram o arbitrário processo de demarcação vigente, em que todo poder era concedido à Fundação Nacional do Índio, a Funai, como tem ocorrido até agora. União, Estados e municípios passam a participar de todas as etapas do processo de demarcação. Na verdade, a Funai vinha produzindo uma verdadeira reconfiguração do território nacional, amputando unidades federativas, com base em avaliações superficiais e laudos imperfeitos, lastreados menos em verdade histórica que em motivações ideológicas.

Mas meu propósito não é analisar os votos dos Ministros do Supremo, e, sim, discutir em profundidade outra questão, à qual a demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol está intimamente ligada. Ela diz respeito a uma tendência que herdamos do positivismo - o mito de que existe apenas uma verdade, e que os documentos oficiais e fatos políticos expressam fielmente a realidade, seja de épocas remotas, seja do passado recente, seja dos tempos atuais.

Essa visão unilateral é responsável por muitos dos equívocos com que compactuamos e também por boa parte daqueles que nós mesmos cometemos. A visão legada pelo positivismo não contempla a existência de verdades discutíveis. Está muito mais propensa a aceitar dogmas, pontos certos e irrefutáveis, que não estão sujeitos a questionamentos.

Uma dessas verdades discutíveis que ganhou a força de dogma é a de que precisamos isolar e preservar nossa população indígena do contato com a civilização. O “bom selvagem” deve permanecer fiel aos hábitos de seus ancestrais, ou, de acordo com essa ilusão, retomá-los, mesmo que não os pratique há gerações, para manter-se em estado “puro”, distante da influência corruptora dos brancos.

Para que isso aconteça, devemos retornar aos tempos pré-cabralianos, isto é, anteriores ao desembarque da frota de Pedro Álvares Cabral no que é hoje o Brasil. Esse retorno ao passado inclui um processo de reconfiguração territorial, por meio do qual os indígenas retomarão os territórios que lhes foram usurpados séculos atrás.

O que acontece em Roraima é um bom exemplo. Naquele Estado, 47% de seu território são ocupados por áreas indígenas. Somem-se as unidades de conservação ambiental, pântanos e terras de propriedade do Exército, e teremos 75% da área total de Roraima interditados para qualquer atividade produtiva. Será um Estado praticamente inviável, embora o Presidente Lula, no final de janeiro, tenha assinado uma medida provisória repassando 6 milhões de hectares de terras da União para o governo estadual - como uma forma de compensação pelas perdas que sofrerá com a demarcação.

Mas não é só Roraima que corre perigo. Em 14 de julho do ano passado, a Funai editou 6 portarias para a demarcação de terras indígenas no Mato Grosso do Sul, abrangendo 26 municípios, com uma área total de 12 milhões de hectares, quase um terço do território estadual. São áreas responsáveis por 70% da soja e 70% do milho produzidos no Estado, e que abrigam 4 milhões de cabeça de gado. Devido aos protestos, os estudos antropológicos acabaram sendo suspensos em setembro, mas a ameaça permanece.

As demarcações de mais de 600 reservas indígenas em todo o País destinam-se a abrigar 500 mil índios, menos de 0,3% da população brasileira. A área a que eles têm direito equivale a 12,5% do nosso território. São mais de 1 milhão de quilômetros quadrados, o equivalente à soma de Grã-Bretanha, Itália e França. É bom lembrar que nesses 3 países vivem mais de 200 milhões de pessoas.

Estamos fazendo justiça, redimindo-nos da colonização genocida praticada por nossos ancestrais? Duvido muito. Para começo de conversa, a distribuição dessa área gigantesca está sendo feita de maneira extremamente desigual. Enquanto índios do Norte do País, como ocorre agora com os que habitam a Reserva Raposa Serra do Sol, são contemplados com territórios enormes, outros, no Sul, como é o caso dos guaranis em Santa Catarina, recebem pequenas áreas.

Se nossa política indigenista parece ter a melhor das intenções, o fato é que ela, como toda política movida por dogmas, é superficial, e acaba prejudicando quem pretendia beneficiar, além de causar danos colaterais.

Vejamos o caso da Reserva Raposa Serra do Sol. Ela abriga atualmente cerca de 4 mil fazendeiros e lavradores e 19 mil índios. Os primeiros, plantadores de arroz, muitos deles também índios, ocupam menos de 1% das terras da reserva e respondem por 6% da renda gerada em Roraima. A maioria foi estimulada pelo governo, durante a década de 1970, a migrar do Sul do País, para colonizar a região. Outros chegaram lá no início do século 20, quando o território ainda tinha suas fronteiras ameaçadas pelas ambições territoriais de outros países.

A demarcação contínua fará dos 19 mil índios os únicos habitantes de uma área de 1 milhão e 700 mil hectares. Ou será que não? Na verdade, mapas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, datados de 2005, demonstram a existência, nos limites da reserva, de 26 áreas ativas de garimpo de diamantes, todas ilegais.

De 2005 para cá, sabe-se lá quantos outros garimpos ilegais surgiram. E o governo sequer tem idéia de onde ficam - logo, está impedido de autuá-los e fazer com que cessem suas atividades. Além de diamantes, a área da reserva tem outros recursos valiosos em seu subsolo, entre os quais nióbio, urânio, ouro e cassiterita. É o caso de indagar quem vai impedir a exploração clandestina desses minerais. Serão os 19 mil novos donos do território? Será o Estado, cuja presença em toda a região já é mínima, limitada pela falta de recursos?

Vale citar o diagnóstico do antropólogo Adauto Carneiro, que tem mais de 30 anos de convivência com os índios no Estado do Mato Grosso. Para ele, existe uma grande ironia na política indigenista brasileira, pois ela não cria perspectivas para seus supostos beneficiários. Pelo contrário, faz deles “latifundiários miseráveis, presas fáceis para grileiros e outros tipos de criminosos”. As reservas assemelham-se a enormes zoológicos, em que os índios ficam abandonados à própria sorte.

Para piorar a situação, somos signatários da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela Organização das Nações Unidas, que garante aos índios o direito de posse e autonomia sobre as terras por eles ocupadas, consideradas “nações”. O Cimi, Conselho Indigenista Missionário, já levantou a voz para sugerir o reconhecimento internacional dessas “nações”, o que configuraria um verdadeiro atentado à soberania nacional e à unidade federativa.

Junte-se a isso a ação de organizações não-governamentais estrangeiras na região amazônica, e teremos um coquetel perigoso. O ministro da Justiça, Tarso Genro, já admitiu a existência de ONGs que “escondem interesses relacionados à biopirataria e à tentativa de influência na cultura indígena, para apropriação velada de determinadas regiões”. No início de fevereiro, ONGs estrangeiras tiveram que fornecer ao governo detalhes de suas operações e efetuar seus registros junto a autoridades, incluindo a Polícia Federal. Apenas 90 entre centenas dessas entidades cumpriram as exigências.

Quando se trata de apropriação, velada ou ostensiva, nada melhor que voltar ao passado para nele recolher lições que podem muito bem se aplicar ao presente. A região do Pirara, a leste de Roraima, já fez parte do território brasileiro, mas hoje integra a Guiana. No século 19, a Inglaterra criou uma disputa fronteiriça com o Brasil, alegando que os índios que habitavam a região reivindicavam proteção inglesa. Nosso país cedeu e retirou-se do Pirara.

Foi o que bastou para a Inglaterra colocar, em 1842, marcos fronteiriços, apropriando-se de terras brasileiras para sua colônia. Em 1904, um laudo arbitral da Itália, reconhecido pelo Brasil, deu parecer favorável aos ingleses. Perdemos 19.630 quilômetros quadrados de território.

Estaremos sujeitos a uma repetição do episódio do Pirara? O jornalista Ruy Fabiano, em artigo publicado no Correio Braziliense, relembra um depoimento do saudoso sertanista Orlando Villas-Boas, que dedicou aos índios mais de meio século de sua vida. Na década de 1970, Villas-Boas já acenava com a possibilidade de que índios submetidos à influência de organizações estrangeiras declarassem a autonomia de seus territórios, com ajuda das Nações Unidas.

Passaram-se décadas desde o depoimento do sertanista, mas o mito do “bom selvagem” persiste. Ignoramos a aculturação da maioria da população indígena, fazemos vista grossa ao relacionamento cada vez maior entre índios e não-índios e desdenhamos a possibilidade de integrá-los à civilização sem desrespeitar sua cultura.

Triste herança positivista, essa que carregamos. É ela também que nos faz acreditar em outro mito, que ressurgiu com força nos últimos meses. Trata-se da chamada “dívida histórica” que teríamos para com o Paraguai, fruto do suposto genocídio cometido no século 19, durante a guerra entre aquele país e a Tríplice Aliança, formada por Brasil, Argentina e Uruguai.

É a essa “dívida” que tem recorrido o Paraguai, para justificar sua alegação de que é necessário rever o Tratado de Itaipu, firmado em 1973 para a construção da hidrelétrica do mesmo nome. O “perdão” da dívida financeira de 19 bilhões e 600 milhões de dólares, contraída para concretizar a obra, saldaria a “dívida histórica”. Felizmente, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, rejeitou sumariamente a proposta descabida.

Como surgiu a versão da “dívida”? Ao longo dos anos, a historiografia oficial, em todos os países envolvidos no conflito, descartou a responsabilidade de Solano López, ditador paraguaio na época, pelo desencadear da guerra, com a invasão do Mato Grosso, e pela destruição do seu país.

Como explica o historiador brasileiro Francisco Doratioto, especialista no tema e autor de “Maldita Guerra”, uma obra definitiva sobre o conflito, de ambicioso, tirânico, cruel e quase desequilibrado, Solano López foi promovido a líder antiimperialista, empenhado em garantir o bem-estar de seu povo, governante de um país progressista, aniquilado pela Tríplice Aliança.

Gerações de estudantes aprenderam, e ainda aprendem, que o Paraguai era “o único Estado economicamente livre” da América Meridional, e que foi destruído por Brasil, Argentina e Uruguai, sob a influência do imperialismo inglês.

Ambos os lados cometeram atrocidades durante os 5 anos que durou a guerra, mas o fato é que ela foi desencadeada por um ditador com ambições territoriais, e que não hesitou em sacrificar seu povo, inclusive mulheres e crianças, para alcançar a vitória, mesmo depois que ela se tornou impossível.

A ironia maior é que o grande promotor da reabilitação de Solano López foi outro ditador, Alfredo Stroessner, que se serviu da falsificação do passado para legitimar a longa opressão a que submeteu seus conterrâneos. Hoje, o governo paraguaio, eleito democraticamente, faz uso da mesmo revisionismo histórico tão apreciado pelo ditador para reclamar do Brasil uma “compensação” a que não tem direito.

Nosso senso crítico não pode ser anestesiado por falsidades que ganharam foro de verdade só por terem sido repetidas durante tanto tempo. Devemos desconfiar dos dogmas políticos ou históricos, pois são a fonte de que se alimentam fanatismos de toda espécie, e é neles que se amparam ditadores e ideologias totalitárias.

Era o que eu tinha a dizer.

Muito obrigado.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 17/04/2009 - Página 11974