Discurso durante a 61ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem ao centenário do nascimento de Dom Helder Camara.

Autor
Inácio Arruda (PC DO B - Partido Comunista do Brasil/CE)
Nome completo: Inácio Francisco de Assis Nunes Arruda
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem ao centenário do nascimento de Dom Helder Camara.
Publicação
Publicação no DSF de 30/04/2009 - Página 13450
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • SAUDAÇÃO, PRESENÇA, SENADO, AUTORIDADE, DIRETOR, FILME, ENTIDADE, IGREJA CATOLICA, HOMENAGEM, CENTENARIO, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, HELDER CAMARA, ARCEBISPO, ESTADO DO CEARA (CE), IMPORTANCIA, ATUAÇÃO, COLABORAÇÃO, CRIAÇÃO, CONFERENCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB), COMBATE, DESIGUALDADE SOCIAL, LUTA, DIREITOS HUMANOS, REDUÇÃO, POBREZA, MELHORIA, HABITAÇÃO POPULAR, BUSCA, REFORMA AGRARIA, MODERNIZAÇÃO, IGREJA, DIVULGAÇÃO, AMBITO INTERNACIONAL, TORTURA, BRASIL, PERIODO, REGIME MILITAR, RECEBIMENTO, PREMIO, RECONHECIMENTO, AUXILIO, POPULAÇÃO, BAIXA RENDA, LEITURA, OBRA LITERARIA, AUTORIA, POETA, ELOGIO.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. INÁCIO ARRUDA (Bloco/PCdoB - CE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Já que chamaram o santo de comunista, nada melhor do que iniciar a lista de oradores com um comunista.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores; senhores representantes do Corpo Diplomático, a quem saúdo na pessoa da 1ª Secretária da Embaixada da França, Srª Cecile Merle; meu caro Arcebispo Emérito de Brasília, Reverendíssimo Cardeal Dom José Freire Falcão; querida sobrinha do nosso homenageado, que nos alegra com sua presença - com sua presença bem alegre, diga-se de passagem -, nossa companheira Myrna Câmara; Secretário Executivo do Centro Nacional Fé e Política Dom Helder Câmara e Assessor Político da CNBB, Reverendíssimo Padre Ernane Pinheiro, nosso irmão de Jaguaribe, no Estado do Ceará; nosso companheiro membro do Conselho Curador do Instituto Dom Helder Câmara, Antônio Carlos Maranhão de Aguiar - muita alegria recebê-lo entre nós; nossa querida amiga, a quem temos dado muito trabalho no seu Departamento de Filatelia e Produtos da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, Maria de Lourdes Torres de Almeida Fonseca, que acabou de nos presentear com este selo belíssimo de Dom Helder Câmara; Diretora do Documentário Dom Helder Câmara - o Santo Rebelde - é isso mesmo -, Erika Bauer, tenho muita alegria em recebê-la; Sr. Presidente; Srªs e Srs. Senadores; amigos aqui presentes, que compartilham este momento de homenagem a esse gigante da vida brasileira, Dom Helder Câmara, que, em 7 de fevereiro passado, completaria 100 anos. Trata-se de uma das figuras que considero das mais respeitáveis do nosso País. O Brasil, digamos assim, reconhece esse fato histórico da passagem de um pequeno gigante entre nós. Uma dessas figuras que não descansam enquanto há uma injustiça a ser desvelada e combatida; que não nos deixam esquecer de nossas limitações e imperfeições, ao mesmo tempo em que nos lembram de nossa força de mudar as coisas e de nossa capacidade de refazer nossas circunstâncias, se assim quisermos. Assim foi Dom Helder Câmara, Arcebispo Emérito de Olinda e Recife, que hoje homenageamos nesta sessão: grande defensor dos direitos humanos, amigo dos mais carentes, dos mais pobres, renhido combatente das injustiças sociais. Esta, a sua característica primeira.

Helder Câmara nasceu na minha querida Fortaleza, no Ceará, décimo primeiro de treze filhos. Sua vocação religiosa surge cedo - consta que aos quatro, cinco anos já brincava de rezar missas. A precocidade dessa sua vocação levou-o ao seminário aos 14 anos de idade e à ordenação aos 22 anos - dois anos antes da idade mínima exigida, o que só foi possível com uma autorização especial da Santa Sé.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, amigos, ordenado Sacerdote aos 22 anos, Dom Helder torna-se Bispo em 1952, com 43 anos de idade. Logo se engaja na mobilização dos Bispos do Brasil e da América Latina, colaborando ativamente na criação do que viria a ser a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que secretariou por 12 anos, até ser sagrado, em 1964, Arcebispo de Olinda e Recife.

Se sua atuação no sacerdócio e sua contribuição ao aperfeiçoamento da instituição católica do Brasil e na América Latina foram importantes, mais relevantes e mais significativas foram suas atividades voltadas para as questões sociais e políticas, sobretudo ao longo do conturbado período do regime militar.

Já desde o início de seu sacerdócio, Helder Câmara envolveu-se com a organização dos movimentos sociais. No mesmo ano em que se ordenou, em 1931, criou, no Ceará, a Liga Cearense do Trabalho, e, dois anos depois, em 1933, algo especialíssimo, inovador e de quebra de preconceitos: a Sindicalização Operária Feminina Católica, reunindo mulheres que trabalhavam como lavadeiras, passadeiras, faxineiras ou empregadas domésticas - empregos precários, sem segurança, mais vulneráveis do que outros à arbitrariedade patronal vigente à época.

Em 1936, transfere-se para o Rio de Janeiro, onde funda, já no final da década de 50, a Cruzada São Sebastião - é muito importante, e faço questão de registrá-la, porque ela surge exatamente em função das políticas de governo locais, que tratavam ou de despejar centenas e centenas de famílias com a tentativa de retirá-las daquele ambiente, ou mesmo por uma política de pressão sobre a pobreza, que se organizava em torno de bairros já considerados nobres no Rio de Janeiro. A Cruzada São Sebastião nasce ali, ao lado do Leblon. É muito significativa essa sua iniciativa urbanística, ousada e pioneira para melhorar as condições de moradia e de vida das famílias faveladas. E a criação de um banco, é isso, Dom Helder criou o Banco da Providência, maior e mais antigo projeto social da Arquidiocese do Rio de Janeiro, que até hoje promove a inclusão social e cidadã de quase 40 mil pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza.

Dom Helder não via essa preocupação social separadamente de sua vocação sacerdotal e de sua atuação pastoral na Igreja. Não era outra coisa, essa preocupação, de seu ponto de vista, do que uma decorrência necessária e inevitável do imperativo erguido pela virtude da caridade. Não é por outra razão que, durante o Concílio Ecumênico Vaticano II, no início dos anos 60, trabalhou a fim de incluir a questão da miséria na pauta das discussões ao lado das questões teológicas, litúrgicas e canônicas. Foi um dos signatários do chamado Pacto das Catacumbas, documento seminal, que se alinhava decididamente às correntes progressistas que pregavam uma modernização da Igreja e que trazia o compromisso daqueles que o assinaram de trazer os pobres para o centro de seu ministério pastoral. Era o germe da Teologia da Libertação que tanta influência teve na atuação da Igreja Católica nas décadas seguintes, sobretudo na América Latina. E digo, especialmente, no Brasil, porque todos nós, eu mesmo, membro do Partido Comunista do Brasil, já atuando na clandestinidade com os militantes comunistas, tínhamos como base principal de atuação a ligação entre os que defendiam o socialismo, os que defendiam a melhoria da qualidade de vida, e encontrávamos entre as Comunidades Eclesiais de Base uma relação muito forte. Quero dizer que, em muitas oportunidades, foi a Igreja brasileira, sob o signo da Teologia da Libertação, que acolheu socialistas, comunistas, democratas perseguidos por qualquer razão durante o período do regime militar. Fomos acolhidos por personalidades do quilate de Dom Helder Câmara.

De volta ao Brasil, e já nomeado Arcebispo, Dom Helder Câmara apóia decisivamente a tradução em ações dos princípios afirmados no Concílio Vaticano II. Reforça e incentiva as Comunidades Eclesiais de Base, cujo papel de resistência e mobilização social, naquele momento preciso da história, dificilmente pode ser exagerado. Verdadeiras escolas de autonomia e auto-organização, as CEBs foram escolas ímpares da democracia, exemplos concretos da força que pode alcançar a mobilização social.

Nesse momento, Dom Helder Câmara já rompera também definitivamente com uma visão assistencialista e populista da ação em prol dos mais pobres. Cada vez mais, acreditava na necessidade de uma grande reforma social e de importantes mudanças políticas para que se instaurasse no País um estado de verdadeira justiça social. Inevitavelmente, sua atuação acabaria ganhando uma conotação política. Isso se acentuou, justamente, sob o pano de fundo sombrio do regime autoritário instalado no País em abril de 1964.

Dom Helder conseguiu, de forma notável, unir com sucesso o homem da Igreja com o agente de mobilização social. O desenvolvimento de suas atividades junto aos movimentos sociais foi o responsável pela conquista do papel político de relevância que desempenhou após o golpe militar de 1964.

Rapidamente, sua atuação social junto aos pobres, sua defesa da inclusão social e sua postura firme na coordenação das desigualdades e das condições em que se reproduz a miséria passam a ser vistas com desconfiança e suspeita pelo regime militar. Disse Dom Helder em frase que ficaria famosa: “Quando dou de comer aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista!”. Dom Helder, o “irmão dos pobres”, ganha a alcunha de “bispo vermelho”, passando a sofrer ameaças, atentados, ultrajes e calúnias. Mas não cala; não se dobra; continua sendo a voz da consciência nacional, trazendo corajosamente a público o que todos se esforçam para esconder ou ignorar.

Incapaz de intimidar o franzino arcebispo, a ditadura se volta contra os seus ajudantes a aliados: em maio de 1969, é encontrado morto, com sinais de tortura, o jovem Padre Henrique Pereira Neto, assessor de Dom Helder Câmara para a área de assistência à juventude, que já recebera inúmeras ameaças por seus contatos frequentes com estudantes cassados e tidos por “subversivos”. Tal episódio rendeu o poema “Padre Henrique contra o Dragão da Maldade”, de autoria de outro ilustre e centenário cearense, Patativa do Assaré.

Dois versos breves:

      Por causa do seu trabalho

       que só o que é bom almeja

      o espírito da maldade

      que tudo estraga e fareja

      fez tristes acusações

       contra D. Helder e a igreja.

      (...)

      Será que ser comunista

       é dar ao fraco instrução,

      defendendo os seus direitos

      dentro da justa razão,

      tirando a pobreza ingênua

      das trevas da opressão?

Impedido de falar no País, o Arcebispo passou a fazer apresentações sobre seu trabalho no exterior. Em 70, em Paris, durante uma conferência sobre direitos humanos, Dom Helder é um dos primeiros a denunciar publicamente a prática da tortura no Brasil pelo regime militar. A coragem de levar ao público essa verdade lhe valeu o ódio do regime, que corta o acesso de Dom Helder aos meios de comunicação - impedidos de sequer citar seu nome, seja de maneira favorável ou desfavorável - e chega a promover uma campanha difamatória contra o Arcebispo. Indicado ao Prêmio Nobel da Paz, a ditadura divulga na Europa, com dossiê, um documento que o acusa de ser comunista.

O Prêmio Nobel não veio, mas outras homenagens rendidas a Dom Helder colaboraram para que ele conduzisse, no Brasil, as primeiras experiências de reforma agrária. Com dois prêmios concedidos a ele pela Noruega e pela Alemanha, na década de 70, entre eles o Prêmio Popular da Paz, Dom Helder comprou uma propriedade de 457 hectares, o Engenho Ipiranga, e cedeu as terras para 39 famílias. Hoje, são cerca de 100 famílias que sobrevivem do que plantam. Outros dois engenhos adquiridos por Dom Helder em Pernambuco também passaram para as mãos dos trabalhadores rurais: Taquari, em Sirinhaém, na Zona da Mata, e Guaretama, em Bonito, no Agreste, totalizando 1.300 hectares. A Operação Esperança, como foi batizada, colocava em prática o trabalho social da arquidiocese: além de atender às necessidades urgentes dos pobres como habitação e terra, havia a preocupação, em plena vigência do regime militar, de conscientizar o povo para as questões sociais.

Além da reforma agrária, outro pioneirismo levado avante por Dom Helder foi uma reforma urbana em plena década de 50 - e já citamos lá atrás -, no Rio de Janeiro, quando fundou a Cruzada São Sebastião para urbanizar favelas.

Ao término do Congresso Eucarístico Internacional, realizado no Rio de Janeiro, em junho de 1955, o então cardeal francês Pierre Gerlier fez um comentário que deixou Dom Helder, então bispo auxiliar do Rio de Janeiro, inquieto: “Não entendo como vocês realizam um congresso tão organizado e bonito e não conseguem acabar com as favelas da cidade”. As palavras do francês incomodaram e estimularam Dom Helder a tocar em frente um projeto ousado para urbanizar as favelas cariocas, reforçando sua opção por lutar pelos pobres e desfavorecidos. Graças à articulação e influência do religioso, construiu-se um conjunto residencial de dez prédios, no bairro nobre do Leblon, na Zona Sul, que se transformou em residência para as famílias da extinta Favela da Praia do Pinto. Até hoje, aproximadamente quatro mil pessoas vivem nos 986 apartamentos, boa parte delas descendentes das primeiras famílias que receberam imóveis de Dom Helder.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a censura foi incapaz de calar aquele que se apresentava como a voz dos “sem vez e sem voz”. A atenção que lhe negavam no Brasil, recebia abundantemente no exterior. Em 1974, chegou a ser convidado a falar no Fórum Econômico Mundial, em Davos, onde, pequeno e frágil, se dirigiu aos grandes senhores do capitalismo, em nome dos dois terços da humanidade que passam fome e vivem na miséria. Humilde, recebeu mais de 30 títulos de doutor honoris causa de universidades pelo mundo todo, que, embora não desprezasse, guardava, segundo seu biógrafo Marcos de Castro, no fundo de um baú, sem ostentação ou vanglória. Conta seu biógrafo que o único título de doutor de que se orgulhava lhe fora informalmente “concedido” em uma paróquia do subúrbio do Engenho Novo, no Rio de Janeiro. Ao ser apresentado pelo pároco como doutor, conta o biógrafo, Dom Helder reagiu dizendo que não possuía tal título - ao que foi contestado pelos paroquianos, que gritaram em coro “É doutor, é doutor!”

Assim foi Dom Helder Câmara, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, senhores presentes, pequeno e franzino por fora, imensamente grande por dentro, grande em sua humildade e em sua força espiritual, grande em seu amor pelo próximo e por seu apego à justiça.

Dom Helder Câmara, tornado Arcebispo às vésperas do golpe de 64, aposentou-se em 1985. Seu arcebispado coincidiu, assim, quase exatamente, com o período do regime militar. Foi o homem certo, na hora certa e no lugar certo - um farol na escuridão, um ponto de luz que resistiu depois que todas as luzes haviam se apagado.

Dessa forma, tornou-se uma referência incontestável para entendermos a história recente do País, ultrapassando largamente os limites da instituição em que se insere - a Igreja Católica - e que ajudou também a transformar e modernizar em meados do século passado. Menciono também, com justiça, outros três grandes nomes e símbolos do engajamento da Igreja nas lutas sociais: Dom Aloísio Lorscheider, arcebispo de Fortaleza; Dom Fragoso, da Diocese de Crateús; e Dom Edmilson da Cruz, atual Bispo Emérito de Limoeiro do Norte, no Ceará.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Dom Helder foi um reformador, um ativista social, um dinamizador da sociedade, um profeta da paz, um arauto dos excluídos e uma das vozes políticas mais potentes e inspiradoras de sua época. Seus exemplos de coragem e de grandeza de alma permanecem como inspirações para todos nós, que vivemos tempos politicamente mais calmos, mas enfrentamos ainda o grave e renitente problema das profundas injustiças sociais que caracterizam o nosso Brasil.

Por tudo isso, Sr. Presidente, ao propor a realização desta homenagem, sinto que não estamos apenas fazendo justiça à memória de um grande homem, de um grande brasileiro, mas estamos cumprindo um dever, o dever de reverenciar nossos grandes heróis, e Dom Helder é um desses.

Um abraço.

Obrigado a todos. (Palmas.)


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 30/04/2009 - Página 13450