Discurso durante a 61ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem ao centenário do nascimento de Dom Helder Camara.

Autor
Pedro Simon (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: Pedro Jorge Simon
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem ao centenário do nascimento de Dom Helder Camara.
Publicação
Publicação no DSF de 30/04/2009 - Página 13455
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, HELDER CAMARA, ARCEBISPO, IMPORTANCIA, ATUAÇÃO, COMBATE, DESIGUALDADE SOCIAL, CRIAÇÃO, CONFERENCIA, INSTITUIÇÃO RELIGIOSA, AMERICA LATINA, CONFERENCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB), BUSCA, UNIÃO, IGREJA CATOLICA, AUXILIO, POPULAÇÃO, BAIXA RENDA, RECEBIMENTO, PREMIO, DEFENSOR, DIREITOS HUMANOS, DIVULGAÇÃO, AMBITO INTERNACIONAL, TORTURA, BRASIL, PERIODO, REGIME MILITAR, LUTA, REDEMOCRATIZAÇÃO, RELEVANCIA, MODERNIZAÇÃO, APROXIMAÇÃO, IGREJA, POVO.
  • REGISTRO, LANÇAMENTO, EXIBIÇÃO, FILME, BIOGRAFIA, HELDER CAMARA, ARCEBISPO.

  SENADO FEDERAL SF -

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SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. PEDRO SIMON (PMDB - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente; ilustres membros da Mesa e convidados já referidos pelos meus antecessores; Srªs e Srs. Senadores; meus irmãos, para falar de Dom Helder Câmara não sei se esta é a melhor tribuna. Talvez, devêssemos transferir esta nossa homenagem a um dos brasileiros mais ilustres de todos os tempos para o meio do povo, principalmente o mais pequenino, como ele gostava de chamar na sua vida peregrina.

Quem sabe nem precisássemos, então, relembrar os fatos mais marcantes da vida de Dom Helder, porque o povo já conhece, melhor que nós, talvez, a vida desse pequenino na estatura física, mas grande na fé e, sobretudo, na esperança e na perseverança!

Quem sabe, então, desta vez, não falássemos ao povo, mas ouvíssemos o povo falar de Dom Helder! Mais ainda, por tudo o que estamos vivendo hoje no mundo da política, quem sabe seria o melhor de todos os momentos para ouvirmos o próprio Dom Helder! E quanto ele teria a nos dizer hoje!

O mundo da política, mais do que homenagear Dom Helder nesses seus cem anos de nascimento, teria de seguir seus ensinamentos e seu pensamento. Ainda bem que ele sempre foi um semeador de ideias e de ideais! Sua árvore é de bons frutos, que multiplicarão suas sementes pela nossa terra.

Logo mais à noite, às 19 horas, no Auditório Petrônio Portella, será exibido o filme “Dom Helder Câmara - O Santo Rebelde”, de Erika Bauer. O Jornal do Brasil se referiu a esse filme como “um doce alimento para a mente e para a alma”. É um necessário alimento para a política, diria eu. Mais que uma homenagem portanto, é o melhor ensinamento. O povo nos diria que a presença na exibição desse belíssimo registro da história da vida de Dom Helder é absolutamente obrigatória.

Na luta pelos deserdados da vida, Dom Helder utilizava uma arma certeira e fulminante: a verdade. Armado com a verdade, ele nunca teve medo de percorrer as vias escuras e tenebrosas do autoritarismo, nem mesmo quando metralharam os muros da Igreja das Fronteiras - ele morava ali, nos fundos do nosso terreno, em uma casa modesta, um ato de humildade, ao abrir mão do Palácio São José dos Manguinhos, residência oficial do arcebispado -, nem mesmo quando de novo, pouco tempo depois, a mesma Igreja das Fronteiras foi atingida por novo atentado. É que, para o terror, não havia fronteira, nem mesmo a da Igreja. “A Igreja nunca é acusada de fazer política quando se junta aos poderosos”, disse Dom Helder. Ele, que defendia os oprimidos, era chamado de extremado.

“Se falassem em revolução como mudança rápida e radical, então, eu desejo dessa revolução social”, dizia Dom Helder. “E veem me dizer que isso é comunismo. Comunismo seria mostrar a religião como ópio do povo. Eu desejo exatamente o contrário.”

Dom Helder nunca pregou uma igreja que se isolasse no silêncio das catedrais. Ao contrário, sua igreja estava sempre lotada e atuante, porque ela se construía no meio do povo. Na sua igreja, não era o povo que ia para ouvir seus ensinamentos. Era ele quem vinha para aprender com o povo o justo, o correto, o necessário e para participar de um processo de transformação.

Quando o chamavam de extremado e lhe afirmavam que o comunismo pregava o materialismo, ele indagava que sistema seria mais materialista que o capitalismo, em que se prega o culto ao lucro, o comando do mercado sobre a consciência das pessoas, a necessidade imperativa de sustentar a grife, o individualismo no lugar do coletivo, o concorrente no lugar do semelhante, o ter no lugar do ser.

Dom Helder sempre defendeu a tese de que o mais importante, na sua época, não era o conflito ideológico que dividia, geograficamente, o mundo entre leste e oeste. Ao contrário, se o elemento crucial para a repartição do mundo fosse geográfico, a divisão seria, para ele, norte e sul. A bipolaridade, portanto, não estaria entre o capitalismo e o socialismo, mas na exploração dos pobres pelos ricos, não importa o sistema político, ou econômico, existente nas diferentes nações.

Parece claro, inclusive, que a criação da Conferência Episcopal Latino-Americana (Celam) tenha sido a materialização do seu pensamento no sentido de que as regiões pobres do planeta deveriam se unir, para se fortalecer. Foi daí que a igreja latino-americana tornou explícita sua opção preferencial oprimidos. A teologia de Dom Helder era a teologia da libertação.

Esta também foi sua tese, na criação da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1952: não uma igreja paroquial, mas universal; não o bispo pastor, unicamente, de seu respectivo rebanho, mas os bispos pastores do grande rebanho de Deus. Foi com essa mesma tese que Dom Helder teve papel fundamental no Concílio Vaticano II, um dos mais importantes eventos da Igreja em todos os tempos, um marco na renovação desta mesma Igreja aos novos tempos e às novas correntes de pensamento. Foi uma profunda reflexão, que teve como fundamentação a busca de um papel de maior participação para a fé na sociedade, com ênfase maior nos problemas sociais e econômicos.

Mas Dom Helder nunca deixou de lado sua comunidade mais próxima, fosse ela a favela do Rio de Janeiro, o semi-árido nordestino ou todos os “severinos” espalhados pelos grandes centros urbanos brasileiros. Foi assim, por exemplo, com o Banco da Providência, que ele queria que se chamasse “Banco dos Enforcados”, no Rio de Janeiro; ou com a Cruzada São Sebastião, com a urbanização das favelas cariocas; ou ainda com sua luta pela reforma agrária, para assentar e dar cidadania aos “severinos” do Nordeste, numa distribuição de terras, para que eles não necessitassem perambular por outros lugares tão distantes, deixando para trás famílias inteiras, reunidas na fome e “molhadas”, unicamente, pelas lágrimas das “viúvas da seca”.

Das outras armas que não a verdade, quase sempre certeiras, Dom Helder era o alvo. Quantas vezes recebeu ameaças, diretas e veladas, para que se desviasse do seu caminho de justiça! É bem verdade que uma das balas miradas atingiu, em cheio, seu coração, quando foi assassinado um dos seus principais assessores, o Padre Antonio Henrique Pereira Neto, em Recife, em maio de 1969. Mesmo assim, de coração sangrando, ele continua sua caminhada histórica.

Nada o intimidava nas suas convicções, nada o intimidava na sua luta. Nada ele temia, inclusive, quando lhe foi cobrada a presença, com a celebração de uma missa, nas comemorações de sucessivos aniversários do golpe militar. Em uma dessas ocasiões, assim de justificou, por meio de carta:

Em consciência, acabei sentindo a impossibilidade de celebrar a missa campal de abertura dos festejos do segundo aniversário da Revolução. A cerimônia é tipicamente cívico-militar e não religiosa. E há sérias razões para nela descobrir uma indiscutível nota política. O capelão-chefe celebrará a Santa Missa. Privadamente, pedirei a Deus que ilumine os chefes revolucionários, de modo a poderem corresponder, sempre mais, às graves responsabilidades que assumiram ante o País.

Apesar das perseguições, dos desafetos e das ameaças, Dom Helder era um profeta da paz. “Peço a graça imerecida de ser instrumento de vossa paz. Não a paz mentirosa, falsa. Abrir brecha na injustiça, conduzindo à paz”, disse ele, um dia, aos pés de São Francisco de Assis.

Não foi por acaso ter recebido tantos títulos de doutor honoris causa nas mais importantes universidades brasileiras e de todo o planeta, nem o Prêmio Martin Luther King, nos Estados Unidos, e o Prêmio Popular da Paz, na Noruega; nem outros tantos mais, sempre pela sua caminhada de fé, de esperança e de paz. Fez jus, portanto, a sucessivas indicações para o Prêmio Nobel da Paz em todos os anos do início da década de 70. Em 1973, o mundo já o reverenciava como o merecido ganhador da homenagem e do prêmio, que seria dividido entre os mais pobres da sua comunidade.

Fez falta para mundo a sua não-indicação, fruto da pressão do poder militar brasileiro sobre o poder da mídia internacional. Fez falta para sua comunidade os recursos que poderiam acender um facho de luz no analfabetismo ou um clarão de esperança aos seus irmãos pequeninos que, como “severinos”, como disse o poeta, “morriam de fome um pouco a cada dia” ou “de emboscada antes dos vinte” ou de “velhice antes dos trinta”.

Dom Helder se transformou em um cidadão do mundo, principalmente quando lhe tentaram calar a voz no seu próprio País. Mas, para entender a voz desse cidadão do mundo, é preciso compreender a vida “severina” dos cidadãos brasileiros do Nordeste. “Antes de tudo, um forte.” É um povo que não se abate com as mazelas da vida. Ao contrário, vai à luta, por um mundo novo, diferente, de salvação. A fome e a miséria não são capazes de produzir, para esse povo, a desesperança.

Ledo engano, então, quando foi transferido do Rio de Janeiro para o Nordeste. Ninguém calaria sua voz. Na verdade, levaram-no de volta para o meio do seu povo. Ao contrário do que imaginavam, engrossaram-lhe a voz. Transformaram-no em regente de um imenso coral, afinado contra a opressão e a exclusão, um coral com sotaque nordestino, antes de tudo, forte, que se espalhou pelo País e pelo mundo.

“Acredito que, conosco, sem nós ou contra nós, as massas vão abrir os olhos. As massas terão a consciência despertada”, dizia Dom Helder. Quem sabe isso ocorrerá sem nós, mas não sem ele, digo eu, novamente. A omissão não combinava com a figura de Dom Helder Câmara.

“E, se amanhã, o povo tiver a impressão de que o cristianismo teve medo, não teve coragem de dizer a verdade, de mostrar a verdade, então, acabou-se o cristianismo.” Portanto, se dependesse de Dom Helder, o cristianismo seria, antes de tudo, cada vez mais forte.

“Se eu nascesse cem vezes, cem vezes eu agradeceria a Deus pelo meu sacerdócio”, ele afirmava. Foi com essa convicção que ele nunca deixou de pregar a missão pastoral da Igreja. Mas dizia também: “O meu povo entoa, em cânticos, ‘o Senhor é meu pastor, nada me faltará’. E eu vejo que ali falta quase tudo!”.

Então, ele pautava sua atuação apostólica não somente pela formação espiritual do seu povo, mas, igualmente, pela libertação econômica, cultural, política e social. Ele chamava tudo isso de “banquete da vida”.

Para ele, a cruz não era somente vertical, voltada para Deus; era também horizontal, com braços estendidos para o povo. Para ele, o primeiro mandamento era sempre “amar a Deus sobre todas as coisas”, mas nunca se esquecendo do “e ao próximo, como a si mesmo”.

Dom Helder era figura mais que representativa do projeto divino da Criação: na fragilidade da figura humana, a imagem, a semelhança e o grande poder de Deus; em um corpo franzino, a grandiosidade da alma.

Imagino quem recebeu Dom Helder, com um grande abraço, na porta do céu. Foi o Papa João Paulo II. Aliás, não foi o primeiro gesto de grande afeto desse memorável Pontífice ao nosso pequenino grande mestre. Lembro-me de assistir, pela televisão, a um momento marcante do encontro terreno desses dois ilustres cidadãos do mundo. Entre tantos cardeais e bispos, entre tantas autoridades, no encontro com o Papa, em Recife, na sua primeira visita ao Brasil, João Paulo II identificou, em especial, no meio da população, Dom Helder. Chamou-o e lhe deu um fraternal abraço. “Este é o irmão dos pobres e meu irmão”, disse o Pontífice. Dom Helder, nesse momento, nesse encontro, não portava a vestimenta indicada para a liturgia. Ele era assim, não importava se nas cerimônias mais solenes ou no mais simples de todos os encontros. Estava ali exatamente como quando se reunia com seu povo, com os mais simples, exatamente como quando se reunia com a gente simples, embora ali estivesse o Papa. Longe de qualquer constrangimento, João Paulo II, então, num gesto de humildade, tirou seu próprio solidéu e envolveu Dom Helder nos braços, demonstrando, ali, ser um igual para um igual, ser um irmão para um irmão.

Como em outras perdas das nossas maiores referências, continuo imaginando, nestes nossos tempos, o que estariam conversando hoje, no céu, Dom Helder, Dom Aloísio, Dom Ivo, sobre o Brasil, assim como o nosso querido Dr. Ulysses, Tancredo, Teotônio, Betinho, Darcy e muitos outros. Quantas lições poderíamos tomar desse encontro celestial! E como elas seriam importantes para nós hoje! Quanta falta eles nos fazem neste mundo de barbárie, de comoção, de indignação, de discriminação, de corrupção e de culto ao individualismo, de louvor ao materialismo, como tão bem denunciava Dom Helder! Quantas lições de esperança e de perseverança também poderíamos receber dessas nossas referências históricas! Todos eles jamais se contentaram em viver ou em contar a nossa história. Viveram-na em sua plenitude. Fizeram a história deste País. Mas eles deixaram também, para todos nós, o melhor dos exemplos, para que pudéssemos seguir nossa caminhada histórica. Plantaram a boa semente.

Em especial, nessa semeadura, há a lição de vida de Dom Helder. Quem sabe, então, além de falar de Dom Helder ou de ouvir o povo falar dele ou, ainda, até mesmo, de deixar que ele nos fale, devemos nós falar para Dom Helder, não apenas utilizando uma tribuna, como esta. O mais devido, quem sabe seja, então, um merecido genuflexório!

A bênção, santo dos pobres e dos oprimidos!

Em homenagem a Dom Helder, nós, eternamente, proferiremos nossa gratidão.

Muito obrigado, Sr. Presidente. (Palmas.)


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 30/04/2009 - Página 13455