Discurso durante a 67ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Defesa de mudanças nas prioridades governamentais para combater a miséria no mundo.

Autor
Pedro Simon (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: Pedro Jorge Simon
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • Defesa de mudanças nas prioridades governamentais para combater a miséria no mundo.
Publicação
Publicação no DSF de 08/05/2009 - Página 16266
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • ANALISE, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, MUNDO, AUMENTO, POBREZA, MISERIA, DESEMPREGO, EXCESSO, TEMPERATURA, VARIAÇÃO, CLIMA, INSUFICIENCIA, PRODUÇÃO, ALIMENTOS, CRISE, ECONOMIA INTERNACIONAL, DEFESA, NECESSIDADE, DEFINIÇÃO, PRIORIDADE, GOVERNO, COMBATE, AGRAVAÇÃO, PROBLEMA, OPORTUNIDADE, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), COORDENAÇÃO, DISCUSSÃO, ALTERAÇÃO, MODELO, DESENVOLVIMENTO, REDUÇÃO, CONCENTRAÇÃO DE RENDA, DESIGUALDADE REGIONAL, DESIGUALDADE SOCIAL, GARANTIA, DISTRIBUIÇÃO, RIQUEZAS, DIREITOS SOCIAIS, CIDADANIA, POPULAÇÃO.
  • DEFESA, NECESSIDADE, ALTERAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, PROBLEMA, MISERIA, PAIS, MUNDO.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. PEDRO SIMON (PMDB - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador) - Sr. Presidente, quase estou com vontade de deixar o discurso e entrar na tese levantada pelo Senador Arthur Virgílio. Eu farei meu discurso e, se o Senador Arthur Virgílio voltar, entrarei naquele debate.

Sr. Presidente, o mundo, mais uma vez, enfrenta sérias turbulências. Nuvens carregadas da crise dos mercados sacudiram o planeta nos últimos meses, e atingiram, principalmente, aqueles que ainda conseguem, pelo menos, um lugar na classe econômica nessa nossa viagem da vida.

A decorrência mais visível é o aumento do número de placas “não há vagas”, onde tanto se necessita de “precisa-se”. Como em todas as outras crises, as cordas são mais frágeis em uma de suas pontas. Quantos serão os deserdados da crise? O que se sabe, como das outras vezes, é que não haverá perdedores.

Alguns, pouca gente, com certeza, ganharão com essas mesmas turbulências. Eu não imagino uma travessia de catástrofe, mas temo que, quando aterrissarmos dessa viagem de pobres serviços de bordo, veremos ter aumentado, ainda mais, a distância entre ricos e pobres. Entre os passageiros de primeira e de última classes.

Mais uma vez, repito, a privatização do dinheiro público. O que era de muitos passa para as mãos de poucos

O mesmo mundo tem trilhões de dólares para evitar o que chamam de “risco sistêmico”, uma imensa cratera que foi aberta pela ganância de poucos, em detrimento da miséria de muitos.

Até hoje, ninguém vinculava a casa dos trilhões de dólares a qualquer outro indicador que não fosse a soma do produto gerado pelas grandes ações - poucos casos, como o PIB americano e o valor agregado produzido pelos países europeus.

Nunca se imaginava que se chegaria a tantos zeros à direita, para sanar a gula dos senhores do poder. Nove zeros, por exemplo, sempre à direita, somente para a indústria automobilística, uma indústria que substitui, cada vez mais, o homem pelo robô. Como consequência, também cada vez mais, “não há vagas”, nem “precisa-se”.

Mas esses mesmos senhores não têm, também como exemplo, uma parcela mínima dessas cifras, com muitos zeros a menos à direita, para atacar os problemas da fome no mundo. Hoje, um bilhão de semelhantes, criados à imagem de Deus, passam fome em todo planeta. Um bilhão! Mais de 130 milhões de crianças dormirão ou passarão em claro a próxima noite, gemendo de fome. Muitas delas não amanhecerão. Dormirão, sim, mas o sono eterno dos justos, asfixiadas pela ganância dos injustos.

São necessários, segundo a FAO, US$30 bilhões por ano para erradicar a fome em escala mundial - US$30 bilhões para erradicar a fome em escala mundial, valor que só se tornaria desnecessário quando, como diz o ditado popular, em vez de comprar os peixes, todos os cidadãos tiverem condições de manter a sua própria vara de pescar. Repito meus irmãos, US$30 bilhões são necessários para matar a fome de mais de um bilhão de pessoas, menos de 10% do orçamento militar dos Estados Unidos, utilizado, ao contrário, para incrementar a mortandade de muitas dessas mesmas pessoas famintas e miseráveis.

Como já disse um famoso economista: canhões ou manteiga? Canhões parece ter sido a decisão. Manteiga, não! Nem pão! Nem arroz, nem feijão, digo eu!

Quantas serão as vítimas de doenças que julgávamos extirpadas para sempre e que voltaram nas asas da omissão? Quantas serão as crianças que nascerão e que morrerão antes mesmo de se tornarem, ao menos, estatísticas censitárias, porque, para o Estado, elas não morreram, porque nem se sabe se nasceram, porque nunca foram registradas?

São milhões esses deserdados da vida no Brasil. Bilhões, no mundo.

Está mais do que na hora de extirpar essa idéia, portanto, de que a miséria persiste por falta de recursos. A prioridade dada ao tal risco sistêmico colocou por terra a desculpa de falta de dinheiro para erradicar as nossas maiores mazelas. Há falta de recursos apenas para aqueles que, exatamente, pouco ou nada têm. Não há falta de recursos para quem esses recursos nunca faltaram.

Há pouco tempo, Presidente Mão Santa, outra enorme turbulência também causou náuseas aos passageiros desta mesma viagem planetária. De repente, parece que o tal aquecimento global irá nos levar a todos como um verdadeiro tsunami. Mares revoltos, cidades inteiras engolidas por ondas gigantes, asfixia pela fumaceira das chaminés, escassez ainda maior de alimentos, mudança na geografia do mundo, menor produção de alimentos, fome, miséria, desencanto.

Mais uma vez, vê-se a ganância de poucos, que matam e que desmatam, ao interferir na geografia e ao reescrever a história, com tintas da destruição do planeta.

Mas também, de repente, poucos se deram conta de que não há necessidade de novos tsunamis, nem mesmo de aumento de qualquer magnitude no aquecimento das águas para uma nova catástrofe mundial.

Há, já, uma grande tragédia atual, vivenciada antes de anunciada, no aquecimento dos índices de miséria em todo o planeta. Não há necessidade de aquecimento global para a catástrofe da miséria. O tsunami da omissão já está varrendo milhões em escala planetária. E não é para o final deste século. A cada quatro segundos, um ser humano é varrido da vida pelas ondas mortíferas da fome. De todas essas vítimas, seis milhões são crianças, todos os anos! Vinte milhões de crianças nascem, por ano, com peso abaixo dos padrões mínimos, indicando risco iminente de morte ainda durante a infância.

E isso não é de hoje. Qualquer série estatística nos dá conta de que se trata de um problema que se arrasta há muitos anos. Quem ainda se lembra, por exemplo, dos dois milhões de africanos que morreram de fome entre 1984 e 1985? Ou nas 600 mil, somente no Sudão, em 1993? Ou de que, segundo relatório do Departamento de Assuntos Humanitários da ONU, em abril de 1998, em pelo menos 20 países africanos, a população se alimentava unicamente de raízes, folhas e frutos selvagens? Quer dizer, neste caso, não voltamos no tempo algumas décadas, mas muitas eras. Coisas da pré-história!

Eis, senhores, que, mais uma vez, nestes últimos dias, novas nuvens se mostram num horizonte agora mais próximo. Mais uma vez, de repente, parece que um vírus microscópico seria capaz de abalar os gigantes do mundo. Caíram, agora, Sr. Presidente, mais explícitas, as máscaras da omissão. Parece que o mundo não resiste a um punhado de espirros. Culpam-se os porcos, pouco depois que se degolaram os frangos! Culpam os porcos, sim, mas não desejo, nem tenho conhecimento para tanto desdenhar o tamanho do problema.

Mas já me causa espanto: o número de casos da tal gripe suína justifica o alarme de uma pandemia, quando esse mesmo número, por exemplo, é menor do que o de mortos pela dengue em um único Estado brasileiro, apenas neste ano, quando é o mesmo o número de mortos por causas decorrentes da fome, em poucos segundos.

O mundo se coloca em alerta quando se confirmam pouco mais de mil casos da nova gripe, com 20 mortos, um número que, não se pode negar, pode ser extremamente explosivo, pelo risco da contaminação em massa.

O que eu quero enfatizar é que, só no Brasil, neste ano, 200 mil pessoas já foram contaminadas pela febre amarela e pela dengue.

Delas, 100 morreram, e isso numa estatística que se sabe escamoteada pela falta de informações confiáveis.

A Organização Mundial da Saúde estima que podem ser 100 milhões as pessoas infectadas pela dengue anualmente. Cem milhões infectadas anualmente em uma centenas de países! São 20 mil mortes por ano, entre os 550 mil hospitalizados. Quantas serão essas mortes entre as que não possuem nem mesmo condições de acesso hospitalar? Que não se transformam em estatística?

Sempre é bom enfatizar que, somente durante o tempo, até aqui, deste meu pronunciamento, neste tempo que estou falando aqui, nesta tribuna, mais de 200 pessoas morreram de fome no mundo. Muitas outras morrerão até o meu “é o que eu tinha a dizer”. Na verdade, hoje eu direi “é o que eu não tenho a dizer”. É o que tenho dito, reiteradamente: é preciso passar do discurso para a prática, é preciso redefinir as prioridades mundiais. Portanto, além do “é o que tenho a dizer”, melhor será “é o que temos que fazer”.

Eu repito: não desejo minimizar o tamanho desses problemas, que, segundo os maiores especialistas de todo o mundo, são catastróficos, como o aquecimento global, o risco sistêmico da economia ou as gripes avícolas ou suínas. O que quero enfatizar é que não se dá a mesma prioridade quando outras catástrofes afetam, unicamente, um lado do muro que separa os excluídos dos incluídos, onde se apinham viajantes cidadãos considerados como se fossem de segunda classe, ou que nem são considerados viajantes.

Quem sabe, então, todas essas tamanhas apreensões nos levem, também, a discutir outras catástrofes, vivenciadas antes de serem anunciadas. A principal é, sem dúvida - eu reitero - a fome. Não há exagero algum em considerar que, hoje, a fome é muito mais que uma pandemia. É uma doença transmissível pelos espíritos de desdém, que não se dissemina por falta de máscara, ao contrário: pela existência dessa nas consciências de quem comanda o poder de definir sobre os recursos que sobram de um lado do muro e faltam do outro lado do muro da vergonha.

O mundo não pode conviver com mais de 1 bilhão de famintos, deserdados da vida, enquanto sobram recursos para poucos herdeiros do poder. Que se preocupem, sim, com os riscos sistêmicos e com as causas de todas as pandemias, mas que se lembrem também das milhões de crianças que choram pela falta de alimento mais básico, para que a próxima noite não seja eterna.

Eu acho que todas essas crises são sinais dos tempos. São avisos quase que apocalípticos de que algo necessita ser mudado, uma transformação radical de prioridades, sob pena, aí sim, de uma catástrofe planetária sem precedentes.

Há que se buscar novos paradigmas, novos pilares de sustentação da raça humana. O mundo tem que buscar uma nova ordem, sob pena de um verdadeiro genocídio anunciado. Quem sabe seja, então, o momento ideal para uma profunda revisão de prioridades, a partir de uma crise econômica que atravessa fronteiras; da fome e da miséria, que campeiam todos os cantos e recantos do mundo; de uma espécie de histeria coletiva, pelo risco da contaminação virulenta, em escala global.

Todas essas crises, Presidente Mão Santa, não mais atingem somente as populações periféricas do outro lado do muro. Essas já sofrem de outras crises, que se arrastam há longo tempo. As crises atuais, midiáticas, atingem também os passageiros da vida que ainda conseguem assento de primeira classe.

Os maiores alertas da crise econômica, da crise social decorrente e da pandemia que se anuncia vêm principalmente de lá, dos Estados Unidos e de alguns outros países. Parecem até evidenciar novas torres gêmeas ameaçadas.

A dimensão da crise é tão maior quando ameaça Nova York, ou Paris, ou Londres. Tem sido, por outro lado, tão menor se circunscrita ao Vietnã, ou à Índia, ou à África.

Mas, não se pode negar: algumas mudanças salutares aconteceram nos últimos tempos. Os acontecimentos políticos nos Estados Unidos são o principal exemplo. Eu me lembro do olhar distante e desdenhoso do ex-Presidente Bush, quando lhe noticiaram o ataque às torres de Nova York. Parecia que nada lhe havia atingido, embora comandasse a maior nação de todo planeta, naquele momento atacada. Bem diferente da reação do atual Presidente americano, nos últimos dias, quando fala à nação sobre os problemas atuais, inclusive o da possível pandemia da gripe - o novo nome da gripe suína é gripe A. Um presidente que parece muito mais preocupado com sua própria nação e com todas as populações do mundo, com os dois lados do muro: o de lá e o de cá.

Quem poderia imaginar, poucos anos atrás, que o Presidente dos Estados Unidos tivesse uma história de vida algo semelhante à de Barack Obama? Quantas foram as barreiras que se romperam com a eleição de um presidente negro, de raízes quenianas, cujo outro sobrenome é Hussein, em um país onde, poucos anos atrás, outro negro foi morto, Martin Luther King, porque se tornou líder, exatamente porque pregava a paz entre os brancos e os negros?

Outros ventos de mudança aconteceram em diferentes pontos do planeta, inclusive na América Latina, em direção à democracia. Brasil, Argentina e Chile são bons exemplos, depois de décadas de obscurantismo. O mundo político experimenta, não se pode negar, uma nova ordem. Quem sabe seja a hora, então, aproveitando-se desses mesmos ventos, de se pensar em novos paradigmas para o nosso mundo? Quem sabe seja o melhor momento para que se redefinam prioridades? Quem sabe possamos, todos, países e povos, repensar o que seja efetivamente risco sistêmico?

Qual é o maior problema mundial nestes nossos dias? Os poucos que perderam ou que deixaram de ganhar bilhões de dólares, ou as quase três bilhões de pessoas que sobrevivem com menos de US$2.00 por dia, sendo que a metade delas com menos de US$1.00?

Sr. Presidente, nunca me move a ideia de combater o supérfluo ou, obviamente, de me bater contra a lei da oferta e da procura.

Entretanto, eu sempre defendi a ideia de que, tanto no orçamento familiar quanto nos gastos agregados de uma nação, ou de um conjunto de países, a primeira prioridade tem que ser, sempre, o básico; depois, o supérfluo. E básico, tanto na família quanto nos países, é o alimento, a moradia, a saúde, a educação, a segurança, o lazer, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância. Enfim, sem isso, como pensar em humanidade, Presidente? O básico é, para mim, portanto, tudo o que consta da nossa Constituição, nos capítulos “Dos Direitos Sociais”, o que, parece, não tem sido levado em conta, nos últimos tempos, em relação às prioridades mundiais.

Quem dita as preferências é o mercado, e o Estado tem se transformado, cada vez mais, em súdito fiel, submetido, cada vez mais, às ordens do “ter”, muito menos do que às ordens do “ser”.

É por isso que o dinheiro público é usado para proteger o mercado, em contradição com a falácia da receita do próprio liberalismo, que prega o Estado, preferencialmente, atendendo aos direitos sociais dos cidadãos.

Os últimos acontecimentos na área econômica demonstraram que as teses liberais não se sustentam numa primeira crise. Não há “mão invisível”. Ao contrário, ela é plenamente visível e previsível. É esse o paradigma que se quer alterar. E, neste momento, parece nada mais legítimo para coordenar o debate do que as organizações internacionais que congregam um maior número de países. A ONU, por exemplo, poderia ser o organismo de excelência para tomar as rédeas dessa discussão. Conhecimento não lhe falta, nem legitimidade. Ela congrega nações e povos de todas as línguas, de todos os sotaques; possui instituições que realizam estudos, pesquisas e programas de ação em todos os segmentos, como a FAO, a Unesco, a OIT, a OMS, entre tantas outras. Essas instituições, com técnicos de competência mais que reconhecida, transformaram-se em fontes privilegiadas de referência e de informação nas questões da fome, da moradia, do trabalho, da saúde, da educação, da ciência e tecnologia e do desenvolvimento econômico, em escala global.

Não há necessidade, portanto, de novos e profundos diagnósticos para que a ONU possa capitanear uma profunda discussão sobre as novas prioridades mundiais, voltadas para os direitos sociais de todos os cidadãos do planeta. Mas, para isso, a ONU também tem que alterar posturas e prioridades. Não há como negar que a Organização das Nações Unidas representa, exatamente, a estrutura de poder que se deseja mudar, estrutura esta que é responsável pelas mazelas que se quer erradicar.

Não nego a importância de um assento no Conselho de Segurança da ONU, mas acho que a prioridade maior é que todos os assentos da ONU estejam preocupados com todos os cidadãos do planeta. Não apenas com os que têm assento nas poltronas mais confortáveis da viagem da vida, em detrimento daqueles que mal chegam à primeira escala desta mesma travessia. Aqueles que sofrem, muito mais, com as turbulências. Com a crise econômica. Com o aquecimento global. Com as eventuais pandemias. Com a fome. Com a miséria.

Dizem os mais otimistas que essas crises são passageiras. Os mais pessimistas, que essa viagem será longa. Os mais realistas, como eu, que de nada adiantará essa viagem, se ela chegar ao mesmo lugar, ao mesmo lugar de sempre. Um lugar neste Planeta onde 85,2% da riqueza se concentram nas mãos hábeis de 10% da população. Ou, na outra ponta, onde mais da metade das pessoas conseguem, apenas, 1% da renda. Um Planeta onde apenas dois países, Estados Unidos e Japão, concentram quase 2/3 dos indivíduos que se situam no grupo de 1% dos mais ricos. Ou, também na outra ponta, Índia e países africanos, com mais de 1/4 de todos os seres humanos, mas que ficam, apenas, com menos de 2% da chamada riqueza mundial.

Tudo indica que os trilhões de dólares gastos a título do tal “risco sistêmico” em nada vão mudar essa situação de desigualdade vergonhosa. Porque, na verdade, a preocupação central parece ser o “risco do sistema”.

A crise econômica decorrente das bolhas especulativas, o aquecimento global fruto da sanha do lucro a qualquer custo e, quem sabe, até mesmo, o descaso com o outro lado, com o outro lado do muro, que desencadeia epidemias sucessivas, parecem não ser suficientes para arranhar o domínio do mercado individualista sobre o bem comum.

É assim com o capitalismo de mercado: no risco de arranhões, trilhões.

O que causa espanto é a falta de preocupação com o risco para o próprio sistema do aumento das disparidades regionais e pessoais de distribuição de renda. De um mundo, Presidente Mão Santa, onde os ricos são cada vez mais ricos, e os pobres, cada vez mais pobres. Mais do que isso, quando os famintos já ultrapassam a casa de um bilhão. Nove zeros à direita também para o número de miseráveis!

Eu não tenho qualquer expectativa de sentimentos de benevolência daqueles que se encontram, hoje, entre o 1% mais rico. Os paradigmas do modelo econômico atual não mudarão por soluços de solidariedade e de humanidade, embora sentimentos tão louváveis.

As mudanças virão quando estes mesmos abastados sentirem-se pressionados pela situação criada no outro lado do muro e motivada por este mesmo modelo.

Quem sabe, Presidente, esteja aí, então, o mote principal para o grande debate a ser coordenado pela ONU. É o momento mais que propício para que o mundo discuta um novo modelo, um novo modelo de desenvolvimento, menos concentrador de renda e de poder. Até mesmo para a sobrevivência do próprio sistema.

Não há como fugir à premência de se prover de condições de cidadania efetiva a tantos seres humanos, espalhados por todo o Planeta, mas que se concentram, em número, nas regiões mais pobres. Não há como continuar considerando esses seres, criados à nossa imagem e semelhança, como “lado escuro do mundo”, como teimam, ainda, alguns, muitos deles ideólogos do sistema atual. Que são “peso morto” na contabilidade da vida.

São louváveis ações como o programa brasileiro de combate à fome. Positivo, concreto, não há como deixar de se reconhecer. Que o digam os que, hoje, têm arroz, feijão e pão. Não há de se criticar um programa que, claramente, não é o ideal, não é o final. Temos de buscar que o cidadão não ganhe a comida, mas que tenha condições de trabalhar para comprar essa comida.

O programa de combate à fome é positivo e é um passo importante no Brasil, mas ele não se pode esgotar em si mesmo. Como ações emergenciais, esses programas cumprem o seu papel, mas não alteram a estrutura do problema da miséria, nem no País, nem no Planeta. Não se pode imaginar que programas desse tipo, embora não se negue a sua importância, possam ser extrapolados em esfera mundial. A dádiva é nobre, mas não se pode viver unicamente dela.

É preciso que se imagine uma mudança mais radical na distribuição da riqueza, na distribuição da riqueza do Planeta, através de uma nova estrutura de poder, também menos concentrado e mais democrático.

É por isso que, meu Presidente, mesmo que movido pelo realismo, não deixo de lado o meu lado otimista.

As crises suscitaram um profundo debate, inexistente enquanto se plantavam as razões destas mesmas crises. E elas floresceram dos dois lados do muro que divide a Humanidade.

Quem sabe essas crises, que atingiram Nova York, Paris e Londres, tenham trazido no seu bojo, contraditoriamente, elementos de esperança.

Que essa seja, portanto, a nova dialética desta crise: ela traz, em si, não só sementes de destruição, mas, igualmente, de reconstrução. O mundo não pode ser o mesmo depois de passadas tamanhas turbulências. Pior: não pode reproduzir, em escala maior, as nuvens causadoras destas mesmas turbulências.

O Presidente brasileiro faz, sempre, o primeiro discurso das Conferências Anuais da ONU. Reiteradamente, principalmente nos últimos anos, tem-se referido à pobreza no mundo, à fome, às disparidades regionais e pessoais de distribuição de renda, à diferença entre ricos e pobres e ao protecionismo dos mercados.

Discurso traduzido em todas as línguas, discurso esquecido em todas as consciências. É o que demonstra a prática, depois de tantas conferências. Então, de nada vai adiantar mais um discurso, se não for acompanhado de ações efetivas. Nem o do Presidente do Brasil, nem este meu, que falo agora.

Eu já me referi, diversas vezes, principalmente em tempos de guerra, à necessidade de reforçar o papel da Organização das Nações Unidas.

Eu estou certo, agora, que a ONU tem de desempenhar um novo papel, quem sabe tão ou mais importante: coordenar a discussão sobre um novo paradigma de desenvolvimento para o Planeta.

Quem sabe, também, se essas discussões se demonstrarem frutíferas, na prática, outros papéis da ONU poderiam se mostrar desnecessários. Quem sabe não tivéssemos, mais, tantas guerras. Tantos conflitos motivados por tantas razões, tantas vezes pelo poder.

Os últimos estudos dos organismos da ONU não têm demonstrado otimismo. Talvez nem mesmo tanto pessimismo. O que assusta, nos números e nas análises, é, exatamente, o realismo.

Não são prognósticos catastrofistas. São realidades preocupantes. Talvez estejamos vivendo, hoje, exatamente o que previu, há quase quatro décadas, uma equipe de técnicos dos mais renomados do mundo, reunidos no chamado Clube de Roma. Sob o título Os Limites do Crescimento, o estudo já previa “um colapso total do nosso sistema mundial, entre o início e a metade do século XXI, se não forem tomadas medidas para solucionar os problemas que hoje enfrentamos.”

         O “hoje”, no caso do estudo do Clube de Roma, era 1972. O “hoje” a que me refiro neste meu discurso é 2009.

A premissa para aqueles cientistas, que foram chamados “Profetas do Apocalipse”, era o crescimento desordenado da população mundial. A deste meu discurso é o crescimento da fome e da miséria neste mesmo mundo. Para eles, uma consequência. Para mim, pode ser, ainda, causa.

É preciso, portanto, ação. Sob pena de consequências ainda mais turbulentas que as previstas pelos profetas do apocalipse.

Prefiro profetizar uma boa nova, porque me move a esperança. É que a esperança mostra-se viva, mesmo quando e onde, tudo parece indicar, ela tenha sucumbido.

Relembro, a propósito, um dos relatos mais comoventes sobre Hiroshima, feito por uma sobrevivente daquela catástrofe mundial, e registrado por John Hersey, sob o título Flores sobre Ruínas:

Por toda parte - sobre os destroços, nas sarjetas, nas margens dos rios, entre as telhas e as chapas de zinco dos telhados, nos troncos carbonizados das árvores - estendia-se um tapete verde, viçoso, otimista, que brotava até mesmo dos alicerces das casas em ruínas.

O capim já escondia as cinzas, e flores silvestres despontavam em meio ao esqueleto da cidade.

A bomba não deixara intatos os órgãos subterrâneos das plantas, como os estimulara... Principalmente num círculo do centro o sene vicejava numa extraordinária regeneração, não só entre os restos crestados da mesma planta, como em outros pontos, em meio aos tijolos e através das fendas do asfalto. Parecia que o mesmo avião que jogara a bomba soltara também uma carga de sementes de sene.

É assim que eu vejo as atuais crises mundiais. Turbulências que podem derramar outras bombas de efeito catastrófico, mas que podem, também, espalhar sementes de mudanças. Difícil escapar, é bem verdade, dos efeitos das bombas que já detonaram. Cabe-nos, então, pelo menos, regar as sementes e fertilizá-las, para que brotem, floresçam e frutifiquem.

É o que eu tenho a dizer, ou melhor. É o que temos a fazer.

Obrigado, Sr. Presidente.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/05/2009 - Página 16266