Fala da Presidência durante a 134ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Leitura de pronunciamento do Presidente José Sarney, em homenagem à memória de Euclides da Cunha.

Autor
Mão Santa (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/PI)
Nome completo: Francisco de Assis de Moraes Souza
Casa
Senado Federal
Tipo
Fala da Presidência
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Leitura de pronunciamento do Presidente José Sarney, em homenagem à memória de Euclides da Cunha.
Publicação
Publicação no DSF de 19/08/2009 - Página 36831
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • LEITURA, PRONUNCIAMENTO, JOSE SARNEY, PRESIDENTE, SENADO, HOMENAGEM, CENTENARIO, MORTE, EUCLIDES DA CUNHA (BA), ESCRITOR, ELOGIO, OBRA INTELECTUAL, DESCRIÇÃO, LUTA, SUBSISTENCIA, POVO, REGIÃO NORDESTE, CONFLITO, MUNICIPIO, CANUDOS (BA), ESTADO DA BAHIA (BA), LIDERANÇA, ANTONIO CONSELHEIRO, VULTO HISTORICO.

                          SENADO FEDERAL SF -

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            O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PMDB - PI) - Hoje o Senado da República fez hoje uma grande justa homenagem a Euclides da Cunha, cuja obra principal foi Os Sertões. A homenagem foi realizada na Hora do Expediente e comandada pelo intelectual Senador Geraldo Mesquita Júnior. Vários se pronunciaram, inclusive eu próprio.

            E não poderia deixar de ter o pronunciamento do Presidente do Senado do Brasil, ex-Presidente da República José Sarney, intelectual da Academia Brasileira de Letras. Então, para encerrar esta sessão, o Presidente José Sarney, imortal da Academia Brasileira de Letras, faz a sua homenagem em nome da Mesa Diretora.

            Senador Adelmir Santana, já me considero gratificado por ter lido o trabalho e aprendido muito. Ninguém teria a competência, em algumas poucas páginas, de escrever a importância desse século que estamos comemorando de falecimento de Euclides da Cunha, pela força e capacidade intelectual.

            Então, é um legado que o Presidente José Sarney deixa ao Brasil nesta homenagem que passo a ler - o Presidente da Casa, José Sarney, é membro da Academia Brasileira de Letras e faz esta justa homenagem:

Prepara-se o leitor, com temor, para as 60 páginas de descrição da terra, para as 150 que falam do homem. Não sabe que o medo é infundado, que o fôlego que precisa tomar é para domar a vertigem do mergulho sem volta. A frase de Euclides da Cunha rola numa pororoca, com forças superficiais que contrariam a grande corrente. A um só tempo, Euclides da Cunha é capaz de descer ao detalhe e se manter num voo alto.

Ainda hoje, quem abrir este livro logo sentirá a atração do vórtice que nos arrasta ao desespero das páginas finais, o coração se acelerando até se dilacerar. ‘O Planalto Central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões..’

As três partes mantêm um ritmo de desenvolvimento de temas que vão se sucedendo como numa sinfonia, voltando a uma frase, a reabrindo, a reacendendo, ampliando e refazendo sua construção, explicando esta naquela, o novo fenômeno no acontecimento, o embate multimilenar da rocha viva na luta incessante do sertanejo com a morte. E ao mesmo tempo expondo os fatos, os fardos, os destinos, os juízes e o juízo, o fazer e o desfazer, o ser e o não ser.

Guilherme de Almeida foi o primeiro a assinalar a expressão poética levantada por Euclides a mares nunca dantes navegados. Há em Os Sertões não só a sabedoria da construção metafórica, como o verso puro, a todo instante assinalado em decassílabos e alexandrinos perfeitos ou em linhas brancas encadeadas. 

Ao mesmo tempo, Euclides pretende ter a distância, a frieza do cientista, aplicar o método científico. Descreve então o cenário: “A Terra”. E, longamente, o personagem: “O Homem”. Só depois passa aos fatos circunstanciados, à história da campanha, da morte: “A Luta”. Este o cerne do livro, lago encarnado em que tentamos chegar, atônitos, à superfície.

Mas é o próprio Euclides quem nos explica em sua nota preliminar: a Campanha dos Canudos, a história da Campanha, não tem mais interesse: sim o tem o traço das sub-raças sertanejas.

Prevê - quanto ele estava errado para o bem e para o mal - que estavam ‘destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra’.

E afirma: ‘o jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório serão em breve tipos relegados às tradições evanescentes, ou extintas’.

Mas lembra em tempo: ‘A campanha de Canudos tem por isto a significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa.’

‘Foi, na significação integral da palavra, um crime.’

‘Denunciemo-lo.’

Os Sertões não tem a força da acusação, tem a força dos fatos. Não é um processo como o J’Accuse, não pretende reverter a História, derrubar o sistema político: ele é o legista, que descreve o cadáver, mexe nas vísceras, identifica os ferimentos, determina a causa mortis. Expõe o crime.

Ressalta: ‘Este livro não é um livro de defesa; é, infelizmente, de ataque. Ataque fraco e, devo dizê-lo, involuntário. Nesse investir, aparentemente desafiador, com os singularíssimos civilizados nos sertões, diante de semibárbaros, estadearam tão lastimáveis selvatiquezas, obedeci ao rigor incoercível da verdade. Ninguém o negará’.

Não cabe aqui repetir a história trágica de Euclides da Cunha. Basta lembrar que Os Sertões foi escrito entre 1898 e 1901, em São José do Rio Pardo, interior de São Paulo, onde trabalhava, nos seus 30 anos, como engenheiro civil. De sua inquieta formação militar, ficara o travo da insubmissão aos valores convencionais, a instabilidade profissional que era também um conflito interior, a falta de confiança logo superada pelo lançar o desafio.

Possivelmente a primeira ideia do livro, e o seu título mesmo, abandonado e retomado, tenha nascido de uma crônica de Machado de Assis comentando, em 1897, O Sertão, de Coelho Neto, e lembrando que ninguém chegará ‘ao poder daquele homenzinho, que passeia pelo sertão uma vila, uma pequena cidade...’

‘Ora bem, quando acabar essa seita dos canudos, talvez haja nela um livro sobre o fanatismo sertanejo e a figura do Messias. Outro Coelho Neto, se tiver igual talento, pode dar-nos daqui a um século um capítulo interessante, estudando o fervor dos bárbaros e a preguiça dos civilizados, que os deixaram crescer tanto, quando era mais fácil tê-los dissolvido com uma patrulha, desde que um simples frade não fez nada. Quem sabe?’

            Talvez o próprio empenho de Machado para que Euclides entrasse na Academia e, até mesmo, num movimento excepcional em sua parcimônia, para conseguir de Rio Branco acolhê-lo em seu gabinete, responda a essa breve profecia.

            O livro foi lido e relido entre amigos e colaboradores, entusiasmos e medos. A insegurança não quando vê num trem um exemplar em mão de um leitor, logo após ter decidido retomar os originais deixados com a editora Laemmert. Ela só desaparece quando, em dezembro de 1902, recebe a notícia do grande e imediato sucesso passado pouco depois de outro, lido em seguida, em que Laemmert comunica o fracasso total. Era realmente o acolhimento, raramente visto entre nós, incompreensível ante a vastidão do livro, o insólito dos pontos de vista, o desafio da leitura.

            Apesar do entusiasmo concordante de Araripe Júnior, José Veríssimo, Sílvio Romero, então trilogia reinante e desarmônica de nossa crítica, Euclides responde na 2ª edição às poucas dúvidas levantadas. A que primeiro o toca: o de não saber o que fala, e falar difícil, nas ciências, responde: a chuva ácida - que hoje conhecem as crianças - causa, sim, erosão; os desertos do semi-árido, sim, violam as leis gerais do clima, caatanduva é, sim, diferente mas compatível com a caatinga. E se detém no centro de seu próprio argumento, o problema da raça.

            A raça ainda era uma verdade científica. Charles Darwin, em The Descent of Man, já tinha mostrado as contradições insolúveis do argumento “científico” do termo, mas seu desmantelamento ainda não terminara, ainda não terminou. O nome de maior repercussão ainda era o de Louis Agassiz, o fundador do naturalismo americano, o primeiro catedrático de biologia de Harvard, o amigo de Pedro II, o último bastião contra a teoria da evolução. Ainda passaria um século antes que Stephen J. Gould expusesse, sentado na mesma cátedra, as contradições disfarçadas por sua pretensa objetividade científica. Estava também o nosso Nina Rodrigues - tão dedicado ao estudo dos negros - convencido da existência das raças. Mais que uma verdade científica, era uma escala de valores sociais. A raça era a razão da supremacia, e a pureza da raça - sobretudo da raça ariana - a medida de valor.

            Dizia Euclides da Cunha:

... Neste composto indefinível - o brasileiro - encontrei alguma coisa que é estável, um ponto de resistência recordando a molécula integrante das cristalizações iniciadas. E era natural que, admitida a arrojada e animadora conjectura de que estamos destinados à integridade nacional, eu visse naqueles rijos caboclos o núcleo de força de nossa constituição futura, a rocha viva da nossa raça.

            E, indicando o caminho do mar para o sertão:

A princípio uma dispersão estonteadora de atributos, que vão de todas as nuances da cor a todos os aspectos do caráter: não há distinguir-se o brasileiro no intricado misto de brancos, negros e mulatos de todos os sangues e matizes... A mestiçagem generalizada produz, entretanto, ainda todas as variedades das dosagens díspares do cruzamento. Mas à medida que prosseguimos estas últimas se atenuam.”

“Vai-se notando maior uniformidade de caracteres físicos e morais. Por fim, a rocha viva - o sertanejo.

            O Conselheiro é o sertanejo:

...a sua figura de pequeno grande homem se explica precisamente pela circunstância rara de sintetizar de uma maneira empolgante e sugestiva todos os erros, todas as crendices e superstições, que são o lastro do nosso temperamento.

            Despojemos este texto da ideia de raça biológica - que era a ideia e a convicção de que Euclides, insisto, não nos enganemos - e subsiste íntegra a análise do fato, o conhecimento da gente brasileira, do fenômeno antropológico.

            E então este livro, trágico e profundo, rio caudaloso lançado sobre o abismo, visão profética e testemunho desmedido, corpo e alma do Brasil na cruz do Conselheiro, este livro é um grito, o grito alto do sertanejo, a resistência indormida vencendo - por terra, homem e luta -, o tempo e a desesperança.

            Depois da morte de Euclides da Cunha, a partir de 1911, a Francisco Alves toma em suas mãos a edição de Os Sertões. Depois da 4ª edição, encontra-se o exemplar anotado pela mão do autor como o “Livro que deve servir para a edição definitiva”. A Francisco Alves devemos portanto a versão definitiva. Nestes cem anos muitas edições surgiram, um imenso aparato crítico reviu a obra de Euclides da Cunha e revirou de todas as maneiras o episódio de Canudos.

            Creio que nenhum livro em nossa língua tenha sido tão estudado. Mário Vargas Llosa replicou-o em A guerra do fim do mundo. O sertão virou mar. Os Sertões permanece.

            Esta é a homenagem do Presidente José Sarney, imortal da Academia de Letras, a Euclides da Cunha, quando o Senado comemora cem anos da sua morte.

            Como último orador, concedo a palavra a Augusto Botelho, para encerrar a sessão.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/08/2009 - Página 36831