Discurso durante a 205ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Considerações sobre o transcurso dos 20 anos da queda do Muro de Berlim, traçando comparações com os "muros" da sociedade brasileira: educacional, de saúde, ecológico, tecnológico. Referência aos tipos de proposta que o Brasil deverá levar para a Conferência sobre Mudanças Climáticas, a realizar-se em Copenhague, e o papel que o presidente Lula deve desempenhar como líder na questão do clima.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA EXTERNA. POLITICA INTERNACIONAL. POLITICA SOCIAL.:
  • Considerações sobre o transcurso dos 20 anos da queda do Muro de Berlim, traçando comparações com os "muros" da sociedade brasileira: educacional, de saúde, ecológico, tecnológico. Referência aos tipos de proposta que o Brasil deverá levar para a Conferência sobre Mudanças Climáticas, a realizar-se em Copenhague, e o papel que o presidente Lula deve desempenhar como líder na questão do clima.
Publicação
Publicação no DSF de 10/11/2009 - Página 57843
Assunto
Outros > POLITICA EXTERNA. POLITICA INTERNACIONAL. POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • COMEMORAÇÃO, ENCERRAMENTO, ORDEM, DIVISÃO, SOCIALISMO, CAPITALISMO, POLITICA INTERNACIONAL, DERRUBADA, MURO, PAIS ESTRANGEIRO, ALEMANHA, EVOLUÇÃO, HISTORIA.
  • COMENTARIO, PERMANENCIA, BRASIL, SEPARAÇÃO, CLASSE SOCIAL, RENDA, ACESSO, EDUCAÇÃO, SAUDE, EXPECTATIVA, VIDA, MUNDO, DESENVOLVIMENTO, SUBDESENVOLVIMENTO, INCOMPATIBILIDADE, ETICA.
  • AVALIAÇÃO, CONTINUAÇÃO, SEPARAÇÃO, MURO, TECNOLOGIA, FALTA, RESPONSABILIDADE, PESSOAS, ATUALIDADE, CONSCIENTIZAÇÃO, FUTURO.
  • DEFESA, NECESSIDADE, ETICA, BRASIL, DERRUBADA, MURO, DESIGUALDADE SOCIAL, MODELO, DESENVOLVIMENTO, ALTERNATIVA, CONTESTAÇÃO, SOCIEDADE, INDUSTRIA, CONSUMO, PROPOSTA, PRESIDENTE DA REPUBLICA, APRESENTAÇÃO, CONGRESSO, MEIO AMBIENTE, PAIS ESTRANGEIRO, DINAMARCA.
  • NECESSIDADE, MELHORIA, INFRAESTRUTURA, POLITICA, ECONOMIA, SOCIEDADE, ACESSO, TECNOLOGIA, MUNDO.

                          SENADO FEDERAL SF -

            SECRETARIA-GERAL DA MESA

            SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, senhores que nos assistem, hoje, nestes dias, melhor dito, porque não foi um fenômeno instantâneo, o mundo está comemorando 20 anos do fim da cortina de ouro, da derrubada do muro de Berlim. Essa é uma comemoração alvissareira. Temos de reconhecer que, a partir daquele momento, acabou, em primeiro lugar, o risco de uma guerra nuclear, pelo menos nessas décadas que passamos e algumas adiante. Só isso justificaria aquele avanço histórico. Mas, além disso, apesar de alguns retrocessos sociais que ocorreram nos países do leste europeu, e ninguém pode ignorar isso, houve um aumento da eficiência econômica, houve uma liberdade individual, que não havia então, houve o fato de que podemos debater mais quais são os caminhos para o futuro em vez de ficarmos apenas debatendo entre capitalismo e socialismo.

            Portanto, esses vinte anos merecem ser comemorados. Mas, ao mesmo tempo, é preciso lembrar que no lugar da cortina de ouro construímos no Brasil e no mundo duas outras cortinas. Uma cortina que separa neste mundo de hoje a população pobre da população rica do mundo. Uma cortina que podemos dizer que seria uma cortina de ouro, em que de um lado estão aqueles que são capazes de estudar até os seus doutorados; de outro lado, estão aqueles que não saem do analfabetismo ou, no máximo, chegam à 4ª série.

            É uma cortina tão brutal quanto era a cortina de ouro, quanto era a cortina de ferro. É um muro tão brutal quanto o era o Muro de Berlim. Mas não é só esta questão. Há um muro que separa hoje no mundo inteiro aqueles que têm acesso à saúde e os que são abandonados da saúde. Os primeiros são capazes de ter um sistema de saúde que lhes permite chegar aos 80 anos como média de esperança de vida. Ao nascer uma criança em um país desses, ou melhor, ao nascer uma criança hoje na classe social do lado dos ricos, não importa o País, ela tem uma esperança de 80 anos.

            Há pouco, vi, numa rede internacional, dizer-se que uma criança que nasce hoje na parcela rica da população tem 50% de chance de viver até os 100 anos. Ou seja, em cada duas crianças que nascem hoje entre os ricos do mundo, uma delas chegará aos 100 anos. Ao mesmo tempo, no lado dos pobres, as crianças que nascem têm uma esperança de 39 anos apenas. Esse é um muro tão brutal, tão duro ou pior ainda que o Muro de Berlim, entre Alemanha Ocidental e Alemanha Oriental.

            Nós temos de um lado do muro, desse muro de ouro, dessa cortina de ouro, uma renda per capta de US$20 mil por ano. Do outro lado, nós temos uma renda per capta de US$500 por ano. Essa é uma brutalidade que a gente esquece, como se a derrubada do Muro de Berlim tivesse sido suficiente para construir um país sem muros. Ao contrário, nós não temos mais o Muro de Berlim do ponto de vista ideológico. Nós temos hoje diversos muros para manter a separação social entre um lado e outro da sociedade. Diferentemente, entretanto, do Muro de Berlim, que separava, de certa maneira, uma geopolítica da outra, quase um país do outro, como a Cortina de Ferro separava países por ideologias, hoje, essa cortina de ouro não separa países; ela serpenteia por dentro de todos os países, dividindo esses países, todos eles, em uma parcela incluída na modernidade rica de uma parcela excluída no atraso social.

            Esse é o muro, essa é uma cortina incompatível eticamente com o mundo de hoje. Nós não temos condições de manter a dignidade da humanidade enquanto houver um muro desse tipo. Enquanto a cortina de ouro continuar nos separando, dividindo, não mais por país, mas por grupo social.

            Mas essa não é a única cortina que nós temos. No mundo de hoje, nós conseguimos fazer uma outra cortina que não se percebia há algum tempo. É uma cortina que separa as gerações vivas hoje, das gerações que virão depois. É a cortina, é o muro da ecologia. É o muro da destruição ecológica, da irresponsabilidade com as gerações futuras, que faz essa cortina, esse muro, que faz com que aqueles que hoje vivem tenham uma qualidade de vida incompatível com a qualidade de vida do futuro. Que faz com que hoje tenhamos uma agricultura funcionando e, no futuro, vamos ter uma agricultura desarticulada. Que no mundo de hoje temos acesso a um litoral com as casas ali construídas e, no futuro, essas casas estarão inundadas pela elevação do nível do mar. É uma cortina que separa as gerações fazendo com que hoje nós sejamos capazes de usufruir de uma diversidade biológica que vai desaparecer muito em breve por causa do aquecimento global.

            O mundo que há vinte anos tinha uma cortina de ouro e um Muro de Berlim, hoje, esse mundo tem uma cortina de ouro, separando pobres e ricos e tem uma cortina separando a geração atual das gerações futuras. É uma outra cortina.

            Há uma terceira cortina, que é a cortina tecnológica, que faz com que, de um lado dessa cortina, estejam aqueles que se acostumaram a viver no mundo digital, que convivem com os chips, e do outro lado estão aqueles que têm apenas as mãos e sua habilidade sem o conhecimento necessário para conviver com as tecnologias dos tempos de hoje.

            O mundo está mais dividido, hoje, do que estava há vinte anos, quando existia a cortina de ferro e quando existia o Muro de Berlim. 

            Temos, sim, algo diferente para melhor além da liberdade naqueles países, que é o fim da tensão nuclear que existia nos tempos passados. Mas precisamos agora dar um salto para destruir não apenas aqueles muros que foram destruídos 20 anos atrás, mas também os muros que continuam persistindo e impedindo a humanidade de viver na decência da igualdade de oportunidades. Igualdade de oportunidades entre as classes hoje e a igualdade de oportunidade entre as gerações, a de hoje e as do futuro.

         Hoje o debate deve ser como derrubar os muros que aí estão. E o Brasil é um País que tem tudo para ser o centro de onde partiria a idéia do mundo pós-derrubada dos muros. Não daqueles muros que já foram derrubados no passado por razões ideológicas existiam, mas dos muros que existem hoje, por razões sociais, por razões ecológicas, por razões tecnológicas. Mais do que os outros países, porque o Brasil é mais dividido que os outros países. Uma vez que alguns países são menos divididos, uma vez que são muitos ricos e conseguem ter quase toda a sua população dentro um lado da cortina. Apenas uma minoria está excluída, e outros países, os mais pobres, onde quase todos estão dentro de um só lado, o lado da miséria, o lado da pobreza.

            A cortina de ouro, a cortina ecológica, a cortina tecnológica, no Brasil, separa a minoria privilegiada da maioria excluída. Por isso aqui eticamente nós somos mais obrigados a derrubar esses muros do que nos outros países. Alguns não têm necessidade de derrubá-los e outros não têm condições de derrubá-los. O Brasil tem a necessidade e as condições. Além disso, o Brasil é um país que tem uma massa crítica de pensadores capazes de entender esse problema, que, em outros países, não é captado. Não são captados esses problemas em outros países, porque ou eles não têm os problemas ou eles não têm os pensadores. Nós temos os problemas, nós temos os pensadores. Temos de trazer a invenção do novo, do novo que derrube não mais o Muro de Berlim, mas a cortina de ouro; do muro que integre todos deste País de um mesmo lado, o da igualdade de oportunidades, o de acesso às tecnologias e o do respeito à natureza e ao equilíbrio ecológico.

            Temos algo mais. Além disso, depois de vinte anos também no Brasil de uma Constituição e de uma democracia, hoje, temos uma base política capaz de falar para o mundo inteiro, levando as nossas propostas. Daqui a um mês, haverá em Copenhague a grande reunião para discutir os problemas do meio ambiente. Não podemos discutir só os problemas do meio ambiente sem discutir também os problemas sociais. O medo que nos dá é o de que continuemos insistindo que, para resolver o problema social, é preciso continuar destruindo a natureza. É preciso que saibamos que, muito mais que produzir em equilíbrio ecológico, é preciso mudar o que produzimos. Muito mais importante que reduzir a emissão do dióxido de carbono, das emissões que poluem, muito mais importante do que reduzir as emissões que poluem é preciso reduzir as emissões dos desejos de consumo incompatíveis com uma sociedade bem equilibrada, seja na distribuição de renda, seja na distribuição intergeneracional do meio ambiente.

            Nós podíamos, deveríamos levar para Copenhague não apenas uma proposta de redução de emissões mas uma proposta nova de projeto civilizatório. Pode cair no vazio como caem no vazio todas as propostas novas que são levantadas. Que caia no vazio nesse momento, mas que fique fincado que daqui desta País surgiu uma proposta de desenvolvimento alternativo e não apenas sustentável; surgiu uma proposta de derrubada de muros, o muro da desigualdade social, o muro da desigualdade do acesso à tecnologia, o muro do acesso à natureza entre a geração de hoje e a geração futura.

            E o Presidente Lula tem todas as condições de chegar a Copenhague levando essas propostas. Mas para isso ele tem que mudar duas coisas: primeiro a sua postura de líder do Brasil para assumir a postura de um dos líderes mundiais que, neste momento e no desafio que a gente vive neste começo de século, tem todos eles a obrigação de trazerem propostas novas. Porque a derrubada do muro de Berlim não acabou com as ideologias. Acabou com o choque entre as ideologias socialista e a capitalista mas exigiu o surgimento de uma nova ideologia, uma ideologia muito mais radical, que conteste a própria civilização industrial e não só a propriedade do capital, se está nas mãos do capitalista ou se está nas mãos do Estado.

            Naquela época, era tudo simples. Ou o capital estava nas mãos do capitalista ou o capital estava nas mãos do Estado, fazendo os mesmos produtos, destruindo a natureza da mesma maneira.

            O socialismo não foi, em nada, menos perverso para a natureza do que o capitalismo. Em nada! E ninguém vai entrar nas bases teóricas do socialismo, fazendo referências à necessidade do equilíbrio ecológico. É preciso algo mais. É preciso uma ruptura com os próprios princípios da civilização industrial.

            O Presidente Lula deveria fazer isto: assumir a sua posição de Líder mundial, um líder que representa, em primeiro lugar, 200 milhões de pessoas, o que não é pouca coisa, numa civilização de seis bilhões - nós representamos quase 5% dessa população. Porém, mais do isso, ele tem que ir representando os 200 milhões de brasileiros e todos aqueles seres humanos de todas as partes do mundo que estão desejosos de uma proposta alternativa, que estão desejosos de uma proposta que derrube os muros que aí estão, que acabe com o muro que separa socialmente os seres humanos entre pobres e ricos, entre aqueles que têm boas oportunidades e outros que não têm oportunidades, que separe esta geração da geração futura e que separe os que têm acesso à tecnologia e os que não têm acesso à tecnologia. Ele tinha que levar essa posição de líder dos milhões ou bilhões de seres humanos que estão buscando, querendo, desejando, ansiando uma proposta alternativa, uma proposta que não apenas reduza as emissões de dióxido de carbono, mas também reduza as emissões provocadas pela mentalidade de uma sociedade consumista. Que leve a proposta de que, no lugar do Produto Interno Bruto material, temos que dar mais valor ao produto imaterial, ao produto da cultura; que em vez de levar em conta só o que se produz, se leve em conta negativamente aquilo que se destrói antes de produzir.

            O Presidente Lula tem que ir como representante de uma parcela da humanidade, como líder mundial, e não só como representante do Brasil e líder dos brasileiros.

            E, segundo, ele tem que mudar a própria mentalidade. A mentalidade que vem dominando o debate dentro do seu Governo não é o debate de uma proposta alternativa à civilização industrial perversa na qual nós vivemos e com a qual nós compactuamos; desejando ou não o desenvolvimento sustentável, mas consumindo insustentavelmente e colocando o nosso objetivo na idéia de aceleração e não de inflexão no destino da humanidade, na idéia de ir mais depressa e não na idéia de mudar para onde nós estamos indo.

            Presidente Lula, e o Brasil...

(Interrupção do som.)

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Nós temos uma chance raramente vista, a chance de levar ao cenário mundial uma proposta alternativa para os destinos do mundo inteiro.

            E, finalmente, para não tomar mais tempo, porque eu não quero incomodar o Presidente da Mesa, que já está ansioso...

            O SR. PRESIDENTE (Valdir Raupp. PMDB - RO) - V. Exª já falou dezessete minutos - o tempo era cinco. Há mais oradores, mas se V. Exª precisar de mais um ou dois minutos, podemos conceder.

             O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - E, finalmente, eu quero insistir que, nessa posição que o Brasil precisa levar a Copenhague, nós tenhamos clareza de que para termos credibilidade é preciso assumirmos compromissos com o que nós vamos fazer aqui dentro, porque levar uma proposta para o mundo e fazer aqui dentro o contrário, não vai dar credibilidade.

            Quando vejo, portanto, Sr. Presidente, alguns dizendo que o mundo vai acabar por causa dos outros, por isso devemos ajudar a acabá-lo também, a terminá-lo, me dá um susto. É como se estivéssemos num prédio, e alguns não quisessem apagar o incêndio do seu apartamento, e disséssemos: nós também não vamos apagar o nosso enquanto você não apaga o seu.

            Nós temos uma responsabilidade de propor que este grande condomínio que é o Planeta Terra seja administrado como condomínio, com a responsabilidade de cada um, mas onde cada um diga: eu sou dono dos meus móveis, mas não posso queimá-los, porque isso prejudica o vizinho. E porque quero lutar para que o vizinho não queime os seus móveis, tenho que assumir o compromisso de que não vou queimar os móveis do meu apartamento.

            É isso, Sr. Presidente, que deixo aqui como recado. Não tenho acesso direto ao Presidente da República, senão passaria isso para ele. Não tenho como sugerir-lhe diretamente, por isso o faço por meio da tribuna do Senado.

            Presidente Lula, assuma o papel, não apenas de Presidente do Brasil e líder da Nação, mas de um dos líderes do Planeta Terra e da humanidade inteira neste momento. Segundo, não defenda apenas a redução de emissões, defenda a reformulação do modelo civilizatório. E, terceiro, para ter credibilidade, assuma com os outros líderes do mundo o compromisso de que aqui dentro vamos dar um exemplo, custe o que custar, sejam quais forem os descontentes que vamos ter que convencer, mas aqui vamos fazer uma inflexão, uma mudança de rumo no nosso desenvolvimento, e não apenas uma aceleração no velho desenvolvimento que está destruindo a humanidade.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/11/2009 - Página 57843