Discurso durante a 205ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Homenagem ao jurista Clóvis Bevilácqua, por ocasião do transcurso, em 4 de outubro passado, dos 150 anos de seu nascimento.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem ao jurista Clóvis Bevilácqua, por ocasião do transcurso, em 4 de outubro passado, dos 150 anos de seu nascimento.
Publicação
Publicação no DSF de 10/11/2009 - Página 57847
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, CLOVIS BEVILACQUA, JURISTA, PARTICIPANTE, ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS (ABL), CRIADOR, CODIGO CIVIL, ELOGIO, VIDA PUBLICA.

                          SENADO FEDERAL SF -

            SECRETARIA-GERAL DA MESA

            SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Serei breve, Sr. Presidente.

            É que o Senado teve a oportunidade de fazer uma sessão solene em homenagem a Clóvis Beviláqua em seu centenário. Infelizmente não estava presente. Não pude comparecer, tinha outro compromisso e não cheguei à Brasília no tempo devido. Portanto, não tive oportunidade de dizer algumas palavras naquela sessão.

            Mas não queria que passasse o centenário de Clóvis Beviláqua, que como V. Exª sabe foi nosso colega na Academia Brasileira de Letras, sem que dissesse algumas palavras sobre esse grande brasileiro, mas também um homem com uma profunda ligação com o meu Estado natal, o Maranhão. Embora cearense, ele teve uma profunda ligação com o Maranhão.

            E o que vem a ter o Maranhão com o criador do Código Civil? Pois o Maranhão trouxe o fundamento da extraordinária vida de Clovis Beviláqua: sua mulher, D. Ana Amélia, filha do Presidente da Província do Maranhão José Manoel de Freitas. Ele era piauiense de Teresina e ela seria a companheira inseparável até o fim de sua vida, inseparável mesmo, no sentido literal. Calcule que, nas sessões da Academia, ela o acompanhava sempre nas nossas reuniões de trabalho.

            E há um fato interessante, até mesmo porque ela quis ser candidata à Academia Brasileira de Letras. Ela era um mulher muito inteligente, tinha muitos livros publicados, tinha uma participação intelectual muito grande na vida pública brasileira, e ela queria entrar para a Academia. Mas, naquele tempo, a Academia não aceitava mulheres em seus quadros. E há uma coisa interessante. Houve um parecer da Comissão Especial recusando a candidatura de Dona Amélia. Nesse parecer, a alegação era a de que o Estatuto dizia que a Academia era de brasileiros. Como não dizia brasileiras também não poderia ela ser candidata porque o Estatuto não permitia que ela fosse candidata, uma vez que só falava em brasileiros. Daí por que talvez tenha me inspirado a sempre falar brasileiros e brasileiras, para evitar essa controvérsia que tínhamos tido na Academia Brasileira de Letras.

            O casal era uma referência na vida carioca. Sempre descendo juntos do bonde do Andaraí e visitando as livrarias do centro do Rio de Janeiro. Mais para o fim da vida, acompanhava o casal uma de suas filhas. No seu desejo de vida unida e em comum, quando a Academia Brasileira de Letras recusa sua mulher, Clóvis Bevilácqua, como todos nós sabemos, abandonou a Academia, simplesmente jamais pisou na Academia depois desse episódio.

            A casa alugada e pobre na rua Barão de Mesquita era o oposto da casa de Rui Barbosa na rua São Clemente, quem, nas palavras de Rui, foi o maior civilista. Vivia, Clóvis Bevilácqua, em uma humildade franciscana, entre livros empilhados, junto com gatos e galinhas. Sua casa era uma balbúrdia muito grande, parecia uma Arca de Noé, recebendo a todos interessado apenas no Direito e na vida intelectual. 

            Dona Amélia era respeitada por todos como intelectual e era muito ajudada pelas filhas - eles tinham quatro filhas: Florisa, Dóris, Veleda e Violeta - na administração daquela desorganização que era sua casa.

            Clóvis Beviláqua tinha como característica um grande desapego pelo dinheiro. Seus pareceres, que podiam ser dados por amizade, custavam no máximo um conto de réis, decidindo às vezes causas de milhões e milhões de contos. Não pôde nunca comprar a casa em que ele morava, mas a casa era de Clóvis Beviláqua. Os advogados saiam das faculdades não o admirando, mas o amando; iam visitá-lo, sentado na sua cadeira de balanço, os pombos vindo comer milho em sua mão.

            E o que fizera Clóvis Beviláqua? Superara o desafio que derrotara Teixeira de Freitas e Nabuco de Araújo, que era fazer justamente o Código Civil Brasileiro. Nós todos sabemos que ambos deixaram inacabada a obra do Código Civil.

            A história do Código Civil atravessa o século XIX. O Código Napoleônico, de 1804, abrira uma porta para a consolidação das leis civis, superando o Corpus Iuris Civilis, a compilação do Direito romano, feita por Justiniano, a ideia da unidade superando a da coleção.

         Quero lembrar neste instante que tivemos oportunidade no nosso Conselho Editorial de editar essa obra rara, que, agora, está à disposição dos juristas brasileiros já há uns três anos.

            O debate interminável se reflete nos textos de Montesquieu: “le mal de changer est-il toujours moins grand que le mal de souffrirpor oposição a “les lois inutiles affaiblissent les nécessaires”. Admirador do cunhado, D. Pedro I promete, desde outubro de 1822, o nosso Código Civil. Mas a primeira tentativa séria data de 1855, quando Nabuco de Araújo - seguindo a idéia de Eusébio de Queirós - contrata Teixeira de Freitas para fazer a Consolidação das Leis Civis, e, depois, o Código Civil. O grande jurista baiano prepararia mais de 5.000 artigos, em parte publicado no Esboço do Código Civil, mas a doença, o desacordo com o novo governo, o fim do contrato impediram a conclusão do projeto. A segunda seria do próprio Nabuco de Araújo, cujo esforço desaparece com seu falecimento, exposto em milhares de notas entregues pela família ao Estado.

            Depois que ele morreu, o próprio Joaquim Nabuco, quando ele fazia Um Estadista do Império, encontrou essas milhares de notas a respeito do Código Civil. Então, ele entregou ao Estado como uma colaboração, e talvez fosse para que nós realizássemos esse ideal de fazer o Código Civil.

         Já na República, o estudo de Coelho Rodrigues não fora aceito pelo governo de Floriano Peixoto. Terminava o século com a questão em aberto. Finalmente, em 1899, o jovem ministro Epitácio Pessoa convida o professor da Faculdade de Direito do Recife, há pouco escolhido um dos quarenta da Academia Brasileira de Letras, para levantar o desafio.

            Sabemos que Epitácio Pessoa talvez tenha sido o Presidente do Brasil de melhor preparo intelectual. Ele deixou uma obra fantástica, que, porque muito marcada pelo seu gênio combativo, não teve repercussão. Mas realmente era um homem que dominava todos os ramos do conhecimento e talvez tenha sido, dos nossos Presidentes que passaram pelo Governo da República, aquele de maior cultura e preparo.

            Em seis meses, Clóvis Beviláqua entrega o seu projeto. Coelho Rodrigues protesta contra o que considera furto de idéias; Inglês de Souza protesta contra a própria hipótese do Código, e Rui Barbosa... bem, Rui Barbosa era um homem, como todos sabemos, cujo temperamento não abria espaços e tinha uma profunda tendência a entrar em polêmica sempre que achava que os seus espaços estavam sendo invadidos.

            Coelho Rodrigues, então, termina o Código. Rui protesta contra o que considera... Abandona a parte de Direito e dedica-se à censurar o Código Civil no que se refere à língua, aos erros que encontrava no Código Civil. Basta dizer que, na sua réplica, ele chega a dedicar dezesseis páginas à colocação de uma vírgula, que ele achava que estava mal colocada dentro do Código.

            A tramitação só terminará em 1911 depois da réplica de Rui e depois da tréplica de Carneiro Ribeiro, que, sabemos, foi professor de Rui na Bahia. Carneiro de Ribeiro foi professor dele e, depois, foi discutir com o discípulo a respeito das questões de Português que ele encontrara no Código Civil. 

            Evidentemente que de tudo isso resultaram duas obras fantásticas que constituem a réplica e a tréplica em que encontramos uma fonte inesgotável de estudo da língua portuguesa.

            Clóvis Beviláqua atravessara o desafio com firmeza, mas, sobretudo, com uma exemplar serenidade. Em todas essas discussões, ele manteve uma serenidade muito grande. Ser o autor do Código Civil, esse monumento que, por tantos anos, iluminou o Direito brasileiro não alterou a rotina do professor e do jurisconsulto; não alterou, sobretudo, a sua trajetória humana, a grande figura humana que ele foi.

            Apesar de sua origem cearense, que o manteve sempre ligado à terra natal, e dos vínculos fortíssimos com o Estado de V. Exª, Recife, onde ele estudara e começara a sua carreira, Clóvis foi muito mais ligado talvez ao Rio de Janeiro, onde ele passara quase a vida inteira. Isso se não contarmos a sua dedicação incansável ao universo jurídico, com sua passagem pelo Instituto dos Advogados do Brasil - casa pela qual também Rui Barbosa tinha grande afeição -, pela consultoria do Itamaraty, e de sua permanente dedicação a estudar e divulgar as matérias jurídicas, sob grande influência doutrinária de Rudolf Von Jhering - o autor de A Luta pelo Direito e A Finalidade do Direito -, que está na origem de sua concepção de Direito Positivo.

            Volto à abertura destas minhas palavras. Clóvis Beviláqua, jovem promotor, foi ao Maranhão - onde ele começou a sua vida e onde conheceu sua mulher - para tomar posse, como eu disse, num cargo de promotor no interior do Estado. Como sabem, foi esta vida, também de promotor no interior do Maranhão, que conheço muito bem porque meu pai foi promotor durante vinte e dois anos, no interior do Maranhão. Assim, é com uma estranha a sensação de familiaridade com um dos maiores brasileiros que eu queria também dizer estas palavras nos 150 anos do seu nascimento, porque eu não tive a oportunidade de fazê-lo naquela sessão, mas queria que ficasse nos Anais esta minha manifestação, que é uma manifestação de grande admiração.

            Ressalto também o último livro sobre Clóvis Beviláqua, que foi a biografia feita pelo Ministro César Rocha, muito importante, que dá uma noção sobretudo da vida pessoal e da vida do jurista que ele foi, conseguindo, com a sua erudição, fazer uma obra imorredoura do Direito brasileiro.

            Muito obrigado.

            Eram essas as palavras que eu tinha que proferir nesta tarde. 


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/11/2009 - Página 57847