Discurso durante a 204ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Manifestação sobre as comemorações no dia 5 de novembro, do Dia da Cultura.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA CULTURAL.:
  • Manifestação sobre as comemorações no dia 5 de novembro, do Dia da Cultura.
Aparteantes
Geraldo Mesquita Júnior, Mão Santa.
Publicação
Publicação no DSF de 07/11/2009 - Página 57603
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA CULTURAL.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA, CULTURA, DEFESA, NECESSIDADE, INCENTIVO, GARANTIA, ACESSO, POPULAÇÃO, ATIVIDADE CULTURAL, ESPECIFICAÇÃO, MUSEU, EXPOSIÇÃO, ARTES, CINEMA, TEATRO, DANÇA, IMPORTANCIA, SOLIDARIEDADE, DISTRIBUIÇÃO, OPORTUNIDADE, MELHORIA, QUALIDADE DE VIDA, IMPEDIMENTO, AGRAVAÇÃO, VIOLENCIA, DROGA, PAIS.
  • REGISTRO, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, ABANDONO, SETOR, CULTURA, BRASIL, SUPERIORIDADE, NUMERO, MUNICIPIOS, REGIÃO NORDESTE, INEXISTENCIA, CINEMA, TEATRO, MUSEU, CENTRO CULTURAL, BIBLIOTECA, FALTA, ASSINATURA, CARTEIRA DE TRABALHO, TRABALHADOR, INSUFICIENCIA, ACESSO, POPULAÇÃO, COMPUTADOR, INTERNET.
  • DEFESA, NECESSIDADE, INVESTIMENTO, INFRAESTRUTURA, REVOLUÇÃO, EDUCAÇÃO, INCENTIVO, CULTURA, BRASIL.

                          SENADO FEDERAL SF -

            SECRETARIA-GERAL DA MESA

            SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


           O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente Mão Santa, é exatamente sobre a solenidade de ontem pelo Dia da Cultura que eu venho falar aqui. Venho falar tentando aprofundar aquilo que ontem foi falado por diversos de nós, mas apenas como homenagem à cultura.

            Quero lembrar dois fatos. Primeiro, estamos no 120º aniversário da República, o que significa que, há 120 anos, este País deveria ser um só do ponto de vista social, do ponto de vista de acesso a todos os serviços, inclusive, e até especialmente, à cultura. Segundo fato que, nos últimos meses, o Presidente Lula vem dizendo, e é verdade, que o Brasil saiu da crise econômica antes de outros países. Ele usou a expressão que aqui o maremoto foi uma marolinha. Marolinha? É possível, mas do ponto de vista físico, material, da produção; mas não, Senador Mão Santa, do ponto de vista da alma do Brasil, da cultura. Do ponto de vista da cultura, nós continuamos em um quase deserto. E isso é trágico para um país. Posso dizer que estamos quase em um deserto quando leio aqui os dados estatísticos elaborados pelo próprio Ministério da Cultura.

            No Brasil, Senador Mão Santa - pasmem! -, apenas 13% dos brasileiros frequentam cinema alguma vez por ano. Por ano! Não é por semana. É por ano: 13%. No Brasil, 92% - vou repetir o número, 92% - de nós, brasileiros, nunca fomos a um museu, nunca fomos ver as coisas da nossa história. Noventa e três vírgula quatro dos brasileiros jamais frequentaram qualquer exposição de arte. Senador Mão Santa, vale a pena chamar mais uma vez a atenção: 93,4% dos brasileiros nunca foram a uma exposição de arte, ou seja, apenas 6,6 em 100 foram alguma vez a uma exposição de arte no nosso País. Setenta e oito por cento dos brasileiros nunca assistiram a um espetáculo de dança. E olhe que este é um povo de dançarinos, este é um povo de bailarinos dentro dele. Mas bailam e dançam do ponto de vista do lazer, não do ponto de vista de um espetáculo.

            Nós, brasileiros, em média, lemos 1,8 livros por ano. Por ano! Por ano! Por ano! Ou seja, um brasileiro médio lê menos de dois livros por ano! Só para fazer uma comparação, na Colômbia é quase duas vezes isso; na França, seis vezes isso. Mais de 90% dos Municípios brasileiros não possuem uma única sala, seja de cinema, seja de teatro, seja de museu ou seja de um espaço cultural multiuso. Veja se não é um deserto, Senador Geraldo Mesquita, onde nós estamos do ponto de vista cultural. Vamos mais longe: 73%, quase todos os livros estão nas mãos de apenas 16% da população. No 120º aniversário da República, nós continuamos tendo 84% das pessoas sem livros. E os livros, quase todos concentrados em apenas 16% da população. Creio que, nem na época da nobreza e dos plebeus do Império, havia uma concentração tão grande.

            Dos cerca de 600 Municípios brasileiros que nunca receberam biblioteca, 405 - quase todos - estão no Nordeste. Apenas dois Municípios que nunca receberam biblioteca estão no Sudeste.

            E aqui provavelmente não diz que muitos que têm acesso a livro é graças ao esforço pessoal de entidades, como aqui, no Distrito Federal, onde nós temos um açougue - um açougue, que vende carne! - que se transformou em biblioteca e colocou livros nas paradas dos ônibus. Ou como o Senador Geraldo Mesquita, que usa recursos dele para colocar bibliotecas no seu Estado do Acre. Oitenta e dois por cento dos brasileiros não possuem computador em casa.

            O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PMDB - PI) - Senador, desculpe interrompê-lo, mas eu quero dar o testemunho. Eu tive o privilégio, como disse o poeta nordestino: “Meninos, eu vi”, eu vi a biblioteca modernizada. Tem livros formais e a tecnologia do computador. Então, Geraldo Mesquita merece ser homenageado neste Dia da Cultura, que celebramos ontem.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - E eu vou passar a palavra ao Senador Geraldo Mesquita para um aparte, depois de eu dar esse quadro do deserto brasileiro. Oitenta e dois por cento não possuem computador em casa, e, desses, 70% não tem qualquer acesso à Internet. Por que esse dado está dentro da cultura? Porque hoje um dos caminhos para você navegar na cultura é por meio do computador e da Internet.

            Cinquenta e seis vírgula sete por cento da população ocupada na área de cultura não têm carteira assinada. A média brasileira de despesa mensal com cultura, por família, é de 4,4%. Ou seja, 95,6% dos nossos gastos vão para outros bens; eles não vão para os bens da cultura.

            Apenas 8,7% dos Municípios brasileiros têm salas de cinema, ou seja, apenas 482 Municípios. Nós temos no Brasil 5.564 Municípios. Em apenas 482, há salas de cinema. Apenas 21,2% dos 5.564 Municípios contam com teatros. E esses cinemas são quase todos concentrados na região Sudeste e na região Sul e poucos no Norte e Nordeste do Brasil.

            Sr. Presidente, esse é um retrato de que, no que se refere à cultura, o Brasil quase nada melhorou nesses últimos dez ou quinze anos. Pode-se até dizer que piorou, comparado com alguns momentos do começo do século XX, quando havia uma participação maior da população nas atividades culturais, mesmo que restritas essas participações a apenas uma minoria privilegiada. Mas o que é grave é que esse quadro de deserto não aparece quando nós todos desviamos as nossas vistas para a economia, para as estradas, os portos e aeroportos, para a parte visível do produto nacional. Nós temos a deformação, que não foi modificada no Governo, nenhum dos três ou quatro depois da democracia, nenhum deles conseguiu mudar a nossa ênfase obsessiva, quase que absoluta, sobre a parte material da sociedade brasileira.

            O que aparece é o Produto Interno Bruto da economia. Não o número de salas de cinema, não o número de livros lidos. Até pode aparecer o número de livros vendidos, porque isso reflete no Produto Interno Bruto, mas não aparece o número de livros lidos.

            Nós temos que perceber que um país, um povo é feito como uma pessoa de carne e alma. Da parte física e da parte não física, espiritual. O povo tem alma, como o povo tem corpo. O corpo de um povo é a parte visível. As suas estradas, as suas pontes, os seus aeroportos, as suas fábricas, as suas fazendas produtivas. Esse é o corpo do Brasil. E desse ponto de vista, nós não estamos mal, se deixamos de lado o problema da distribuição.

            Do ponto de vista global, hoje o nosso País tem um corpo sólido, que é uma economia que pode ser apresentada como uma das maiores do Planeta. Obviamente, é um corpo doente, porque ele tem uma parcela excluída, pobre. O produto, a matéria, o corpo está concentrado em alguns. Mas não é um corpo frágil, não é um corpo fraco.

            Eu até poderia dizer, como muitos falam, que é quase uma potência econômica do ponto de vista da matéria, do corpo do Brasil. Mas, do ponto de vista da alma, Senador Geraldo, nós estamos muito fracos. Nós estamos muito fracos do ponto de vista da alma brasileira. A alma, por exemplo, é onde entra a solidariedade, não só a cultura. A solidariedade entre as pessoas de um povo é parte da sua alma, não da sua matéria. Mesmo quando você pega um sujeito rico que decide distribuir parte da sua fortuna, a distribuição é feita pela alma dele, embora o que ele distribua seja parte do corpo do povo, que é a fortuna que ele tem.

            A solidariedade está em baixa neste País. A corrupção é uma doença da alma do povo, obviamente concentrada nos corruptos, porque o povo em si não é corrupto, mas estão dentro do povo os corruptos. A corrupção é parte da alma, e nós estamos perdendo a luta contra essa deformação, esse pecado da alma brasileira, porque desprezamos a alma brasileira, porque nos concentramos na matéria brasileira, porque para nós valem as pontes, as estradas, os aeroportos, as fábricas, as fazendas, não valem os cinemas, os teatros, não valem as bibliotecas, não valem as pessoas em casa lendo os seus livros.

            Nós perdemos o sentimento da alma do nosso povo, que é a cultura como nós praticamos. E isso traz consequências absolutamente nocivas para a realidade social. A própria violência que nós vivemos, que é o oposto da solidariedade, é parte da alma do povo brasileiro, da alma doente, da alma pecaminosa, que cai na violência. As explicações podem estar no modo material. Aliás, como grande parte dos pecados das pessoas está na carne, como já dizem todos os textos teológicos e bíblicos que o Senador Mão Santa tanto conhece. O pecado da alma, em geral, é provocado pelo corpo.

            A violência é uma doença da alma, provocada pela desigualdade na distribuição das oportunidades de vida, provocada pelo fato de que a droga chegou a este País. A droga é uma doença da alma. Embora traga razões sobre a carne do dinheiro que os traficantes ganham, é uma doença da alma. A droga é provocada pelo vazio, pela falta de esperança, pela falta de oportunidade, pela falta de chance e pela falta de teatro, pela falta de cinema, pela falta de leitura que encha o tempo desses jovens brasileiros de uma maneira da alma cheia de coisas boas.

            Nós perdemos essa perspectiva. Nós deformamos o Brasil ao privilegiar o corpo e abandonar a alma, ao privilegiar o econômico e abandonar o cultural.

            Por isso, ontem, Senador Geraldo, na reunião que houve aqui, na audiência sobre cultura, ficou acertado que vamos fazer uma vigília pela cultura brasileira. Conjuntamente, Senado e Congresso vão fazer uma vigília a que venham os artistas do Brasil para que aqui possam falar. Já fizemos vigília pelos aposentados, já fizemos vigília pelo meio ambiente; vamos fazer uma vigília pela alma do Brasil! Vamos tentar recuperar essa alma perdida pelo abandono, ao longo dos séculos, por parte dos governantes que querem apenas mostrar o quanto produzem mais e não o quanto aumentam de alegria no País.

            A alegria não entra no Produto Interno Bruto, porque a alegria é da alma. Entra no Produto Interno Bruto a quantidade de bens produzidos, porque é coisa do corpo. Precisamos fazer com que a alma se transforme em uma preocupação do Senado, do Congresso, do Presidente da República e de todas as pessoas brasileiras, e sobre a maneira de fazer isso eu penso ainda falar um pouco após passar a palavra ao Senador Geraldo Mesquita para que faça seu aparte.

            O Sr. Geraldo Mesquita Júnior (PMDB - AC) - Senador Cristovam Buarque, prezado amigo, e Senador Mão Santa, aqui presentes, o senhor está falando em alma e de fato massageia a alma daqueles que pensam, acham, consideram e têm a convicção de que precisamos avançar muito ainda nessa área sobre a qual V. Exª declinou dados impressionantes. Quero, inclusive, ter acesso a esse levantamento que V. Exª exibiu nesta manhã, acerca da grande faixa da população brasileira, eu diria a grande maioria, a estúpida maioria da população brasileira que não tem acesso a livro neste País. É algo dramático, é para a gente se envergonhar de fato. Eu, no exercício do meu mandato, Senador, quebrei alguns tabus e alguns preconceitos, tipo aquele de que as pessoas não gostam de ler. Isso é mentira, pura mentira. O povo brasileiro, na sua grande maioria, não tem disponibilidade financeira para adquirir livro, porque livro, no Brasil, é muito caro, caríssimo. Não se consegue comprar um manual técnico qualquer, Senador Buarque, em qualquer livraria, até com desconto, por menos de R$70,00, R$80,00, R$100,00. Na verdade, o que falta é um grande acordo nacional, um grande programa nacional que tenha o propósito de disponibilizar fartamente livros em todos os recantos nacionais. Eu já disse isso algumas vezes aqui e vou repetir, porque não custa. Uma vez, numa audiência presidida por V. Exª, na Comissão de Educação, quando se tratava de assunto correlato, desafiei o Ministro Haddad para que o Ministério da Educação inaugurasse um grande programa. Eu disse: “Ministro, há aí o Programa Farmácia Popular”. Aliás, não sei nem a quantas ele anda. Não se ouve mais falar nesse programa. Era um programa que tinha por finalidade colocar remédio a custo acessível à grande maioria da população. Eu desafiei o Ministro a inaugurar um programa tipo “livraria popular”, para colocar fartamente livros à disposição. Do lado de cada botequim brasileiro, uma livrariazinha. Livro com preço subsidiado - por que não? -, para que as pessoas pudessem entrar e comprar um romance de Machado de Assis, comprar uma obra qualquer, levar para casa e ler. V. Exª falou da iniciativa que empreendi no meu mandato. É verdade, Senador Buarque. Um dia desses, mandei fazer um levantamento na nossa grande parceira que é a gráfica do Senado, que, por sinal, me brindou com mais uma obra. Este livreto trata da história de um dos Municípios acreanos, Assis Brasil, na fronteira do Brasil com a Bolívia e o Peru. Ele é o 18º exemplar de uma coleção, que inaugurei no início do meu mandato, chamada Enciclopédia dos Municípios Acreanos. O título é pomposo, mas o objetivo é contar, num fascículo como este, singelo, ilustrado, com depoimentos de moradores, com dados estatísticos, com a história política, social e econômica do Município, colocar à disposição da população essa história. Estou para concluir a coleção, e a gráfica do Senado ainda ontem me brindou com esta última edição do Município de Assis Brasil. Além dessa coleção, no início do mandato, coloquei à disposição da população do meu Estado um curso sobre política. O pessoal dizia assim: “Geraldo, as pessoas não vão ler isso, não.” Eu disse: “Vamos apostar.” Tratava de sociologia política, de filosofia política, da história da política desde a Grécia até os dias de hoje, Senador Buarque. Cada período da história era contado e relatado, com os personagens principais. Senador Buarque, foi um sucesso no Estado, a ponto de eu ontem estar tratando com o Cícero, meu companheiro no gabinete, da reedição dos dois cursos. Um é “Política ao Alcance de Todos” e o outro é “Política e Cidadania”. Até hoje as pessoas nos pedem, por e-mail, na rua, no escritório em Rio Branco. Foi um sucesso. Obras de importância sobre a história do meu Estado editamos também, reeditamos. Enfim, a Gráfica me deu um levantamento: chega a cerca de 275 unidades, livros. E aqui não estou fazendo nenhuma crítica, nenhuma crítica. Estou sendo absolutamente sincero. Nenhum referente a discurso que fiz aqui no plenário, seja o que for; obras as quais julguei importante que a população tivesse acesso. E olhe, Senador Buarque, as pessoas procuram com avidez. Quem dera eu pudesse ter conseguido, juntamente com a gráfica do Senado, editar 700 mil exemplares de livros. Teria colocado isso tudo lá no meu Estado. Não pude porque a nossa cota é limitada. Mas, graças a Deus, eu consegui fazer isso aqui. E eu digo a V. Exª: neste mandato, foi o que mais me gratificou. É o momento em que me sinto mais gratificado no mandato. É quando observo que a gente conseguiu, com muito esforço, esforço de equipe. As pessoas que trabalham aqui, as pessoas que trabalham no Acre me ajudaram a colocar no meu Estado cerca de 275 mil obras, livros, que as pessoas lêem. Eu vou na zona rural, sobre a qual ouve-se outra balela: as pessoas na zona rural não gostam de ler, não. Gostam! Chego lá, vou para as reuniões, Senador Buarque, em camionete cheia de livros. Acaba a reunião, eu digo para eles: olhem, vocês aqui semeiam arroz, milho, feijão; eu semeio livro. Vocês querem receber livro? É uma festa. Distribuo. Quando eu volto lá, eles pedem mais. Então, é mentira esse negócio de dizer que o povo não gosta de ler. O povo gosta de ler, o povo não tem é acesso a livro no Brasil. Livro é a porta da libertação da população brasileira. Eu acho, às vezes eu fico pensando até, Senador Buarque, que há pessoas que talvez não queiram mesmo que algo desse nível aconteça em nosso País, que a população tenha acesso farto a livros, porque, é verdade, livro é a porta de libertação das pessoas, o conhecimento, a cultura. E acho que há muitas pessoas no País que não querem que isso aconteça. Acho que a verdade é essa. E a gente deve lutar contra essa verdade cruel, Senador Buarque, cruel, porque essa é a verdade que escraviza o povo brasileiro. O povo brasileiro ainda claudica num processo democrático incompleto. V. Exª mesmo, repetidamente, diz aqui, quando se refere à libertação dos escravos e a alguns fatos históricos do nosso País, que a nossa democracia é incompleta. Ela se faz em determinadas áreas, mas não completamente. A gente precisa, para fazê-la completa, criar as condições para que o povo brasileiro se liberte culturalmente. Culturalmente! É a única forma que a gente tem de garantir o futuro da democracia brasileira. Obrigado e desculpe-me o alongado do aparte.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE  (PDT - DF) - Senador, eu acho que o seu aparte enriquece muito e traz alguns fatos que eu nem tinha imaginado. Essa ideia de que há, de certa maneira, uma preferência para deixar o povo fora da leitura. Não esqueçam que, durante a escravidão, se dizia que misturar leite com algumas frutas causava indigestão para que o povo não tomasse leite.

            E sabe o que se dizia muito e até há pouco tempo? Que ler fazia muito mal ao juízo; que quem lesse muito ficava doido. Isso até pouco tempo se dizia, as classes altas em relação à baixas. Há ainda neste País a tentativa de não permitir a ascensão cultural, que leva à libertação.

            Mas, continuo, Senador Mão Santa. E quero insistir, em primeiro lugar, e, depois, dizer o que a gente precisa fazer. Em primeiro lugar, convencer a opinião pública de que existe corpo e alma em um país, em um povo. Você olha o telefone, pega o seu telefone e está vendo o corpo dele. Mas, se você olha dentro dele, ele tem uma alma. A alma são os sistemas que foram elaborados. Usa-se para isso uma palavra sofisticada: software e hardware. Hardware é o corpo do computador, a máquina do computador. Não serve para nada se lá dentro não se tivesse colocado o que chamam de software do pensamento, do sistema. É o sistema que faz o computador funcionar. Mas é o sistema que faz tudo funcionar. Se a gente pega uma caneta, ela tem uma parte de alma, que é o desenho de quem a fez, que é o projeto de quem a fez. Um país é feito de corpo e alma, como o telefone. E se o telefone não tem o sistema lá dentro, ele não funciona.

            E o Brasil está sem sistema. Veja um exemplo. O Brasil, do ponto de vista do corpo, está muito bem na indústria automobilística. Nós fabricamos, se não me engano, três milhões de automóveis. Ou seja, funciona do ponto de vista físico, do corpo. Mas não funciona do ponto de vista da alma, porque o sistema de transporte é engarrafado por causa do automóvel. Em vez de ser um instrumento de libertação, para que você vá mais rápido de casa para o trabalho, hoje é um instrumento de aprisionamento, porque você vai mais lentamente de casa para o trabalho, porque o sistema ficou errado - ou o sistema das vias e das estradas, ou o sistema de um transporte público de qualidade.

            É o sistema que faz um país funcionar, ao lado do corpo, até porque, sem o corpo, a gente não tem como fazer a cultura funcionar plenamente. Sem um prédio de teatro, que é o corpo, a gente não tem como ir ao teatro ver a peça, que é a alma. Sem dinheiro, a gente não mantém uma sinfônica. A sinfônica é a alma, a música que ela toca, mas o teatro onde ela toca e os instrumentos fabricados são o corpo.

            Quero aqui, no Dia da Cultura, que foi ontem, chamar a atenção de que um país sem alma é um país doente. E hoje o Brasil é um país doente por causa da sua alma doente. O seu corpo não está mal. E o Presidente Lula tem razão: a crise chegou aqui menor do que nos outros países. Nosso corpo é resistente ao vírus da crise econômica mundial. Mas a nossa alma continua perdida, deserta em relação ao que é possível. E aí vale a pena tentar dizer como fazer.

            Dois tipos de trabalhos são necessários: um diretamente na cultura, com incentivos para que as pessoas, por exemplo, ricas deste País doem parte da sua fortuna para fazer esses museus. Foi assim que foram construídos os grandes museus nos Estados Unidos, com a possibilidade de que os ricos doassem esse dinheiro em vez de o dinheiro ir para o fisco; mas, para isso, foi preciso criar antes uma lei de imposto sobre a transmissão de propriedade. Foi preciso criar a transmissão de propriedade, o que o Brasil se nega a fazer. O Brasil se nega a fazer isso. Ao criar o imposto de transmissão de propriedade, foi possível criar uma lei de incentivo que dissesse: aquele que doe ao Estado, para fins culturais, deixa de pagar a quantidade total de impostos, como a Lei Rouanet no Brasil, de certa forma; como agora o Vale Cultura, que o Governo Lula está criando, que vai dar um incentivo, sim; ou como a Cesta do Livro.

            A Câmara aprovou um projeto de origem do Senado, de minha autoria, que foi para o Presidente apenas como indicativo, como sugestão, não como lei. Ele vai cumprir se quiser. Se ele cumprisse a ideia do livro nas famílias, dois livros a cada dois meses para cada família brasileira, a primeira coisa que aconteceria seria baixar o preço do livro, que o Senador Geraldo Mesquita criticou, por ser alto no Brasil. O custo do livro é alto porque são poucos que compram. Se a gente aumentasse a tiragem dos livros, o preço diminuiria, a gente quebraria esse ciclo vicioso: poucos leem porque o livro é caro; o livro é caro porque poucos lêem. A gente quebraria esse ciclo.

            Agora, tudo isso de incentivo à cultura, ao teatro, ao cinema é insuficiente se não fizermos uma mudança radical no lugar onde a cultura nasce, que é a escola.

            A escola é o berço da cultura. É ali que a gente faz com que as crianças comecem a gostar de ir ao cinema, de ir ao teatro. É ali que a gente faz com que as pessoas comecem a gostar de ler. É ali que a gente faz com que as pessoas saibam ler, em vez de serem deserdadas da alfabetização, porque a gente tem que mudar esse conceito de analfabeto. Você que não sabe ler não se sinta analfabeto. Sinta-se um deserdado da alfabetização, que não lhe foi oferecida. É na escola que a gente pode começar a construir a alma do Brasil. Se a escola é o berço da cultura, e a cultura é a alma, a escola é o berço da alma.

            Uma criança nasce fisicamente na maternidade, mas a sua alma nasce na escola e, obviamente, nas igrejas, para os que praticam as religiões, porque a igreja também é parte da alma de um povo. Mas não é só a igreja, não são só as religiões, são as práticas culturais, são as atividades em que cada um de nós trabalha, do ponto de vista de usufruir do prazer da cultura.

            O Brasil é um País que vem dando prazer material pela venda de bens de consumo, mas é um País desértico no prazer do exercício das atividades culturais.

            Por isso, precisamos de uma revolução. Essa revolução é na escola. Essa revolução é possível. Só é preciso despertar cada um de vocês que estão me escutando para a ideia de que o Brasil tem um corpo e uma alma. O corpo é a economia, é a infraestrutura; a alma é a cultura. O corpo não vai mal, mas a alma está péssima. E essa alma precisa ser ressuscitada, até mesmo para que a gente possa ter um corpo melhor, porque, com a alma ruim, o corpo não fica bem, inclusive porque, daqui para a frente, o corpo será, cada vez mais, produzido pelas ideias que saem do pensamento, pela ciência e pela tecnologia, que é outro lado, a outra face da alma, o outro pedaço da cultura.

            A cultura não é só arte. A cultura é arte, é ciência, é tecnologia e é religião. Nós precisamos despertar o Brasil, o povo brasileiro para a importância da sua alma, ao lado da importância da sua economia. É isso que eu queria colocar aqui.

            Mas não vou terminar a minha fala enquanto não ouvir o aparte solicitado pelo Senador Mão Santa, que, aliás, é um dos Senadores que mais falam em cultura, sobre cultura, e fala com conhecimento de cultura nesta Casa.

            O Sr. Mão Santa (PSC - PI) - Senador Cristovam Buarque, realmente, a valia destas sessões não deliberativas de sextas e segundas-feiras é enorme. V. Exª faz um pronunciamento tão importante como os que foram feitos por Rui Barbosa. E eu não iria lá, tardiamente não; eu ouvi, o País ouviu Paulo Brossard. Ele se prolongava, às vezes, por três horas aqui. Paulo Brossard, do Rio Grande do Sul. Eu li o livro dele, Brossard: 80 anos na História Política do Brasil. Brossard tinha certa mágoa de Petrônio Portella - que foi meu guia, o meu ícone, o que me buscou para a política -, porque eles eram diferentes: o Petrônio representava o governo revolucionário dos militares, e ele, as oposições, que queriam, vamos dizer, a redemocratização. Então, Petrônio resolveu limitar o tempo das falas, e ele só poderia falar por uma hora - ele, comumente, fazia pronunciamentos de três horas e tanto de duração, não havia esse sistema, de que nós desfrutamos - nós somos privilegiados, e temos de agradecer ao Presidente Sarney -, esse sistema de comunicação do Senado, que é fabuloso. Os profissionais muito competentes, tanto a Rádio AM, a Rádio FM, as Ondas Curtas. Eu vinha para esta Casa com o rádio ligado e ouvia o Jarbas Vasconcelos falar sobre segurança - o Tasso criou uma subcomissão em que ele é o Relator. Veja o quanto isso é importante. Ontem mesmo, via, pela televisão, que o Estado de maior violência não é o Rio de Janeiro, é Pernambuco - Pernambuco é o Estado em que V. Exª nasceu -, seguido pelo Espírito Santo e pelo Rio. O fato é que a violência se alastrou País afora. Mas esse sistema de comunicação de que dispomos é fabuloso, e Paulo Brossard não dispunha dele, e o povo o busca, pois somos nós. Nós somos os pais da Pátria. Está no Livro de Deus, e eu posso falar porque sou o Líder aqui do Partido Social Cristão: “Muitos são os chamados, e poucos são os escolhidos”. Nós fomos escolhidos; o Presidente da República foi - o Judiciário não foi o povo quem escolheu. Então, somos nascidos do voto, da vontade popular, e estamos aqui dando a representação. Mas Paulo Brossard enchia as galerias aqui. Eu não sei se V. Exª leu um livro dele, muito lúcido: “Brossard: 80 anos na História Política do Brasil”. Ele enchia as galerias. Então, ele preparava um discurso por semana e falava por três horas e meia, em sua grande maioria. Aí o Petrônio, usando os artifícios, limitou o tempo. Quando nós começamos aqui - o Geraldo Mesquita se lembra disso -, podíamos falar por 40 minutos. O Tião Viana era o Vice-Presidente, reuniu a Mesa e limitou o tempo. Então, surgiram, consolidaram-se essas sessões de sextas e segundas. Então, o Brossard, quando vinha falar, não havia o sistema de comunicação. Nós somos privilegiados, porque todo o País hoje está parado, nos ouvindo, assistindo a uma aula do “Rui Barbosa” dos dias de hoje dada pelo Cristovam Buarque. Em todo o País, há o comentário. Então, ele limitou. Mas ele conta, no livro dele, que enchiam as galerias para ouvi-lo, porque, à época, não tinha a rádio, a televisão. O povo busca a verdade. Daí Cristo haver dito: “Eu sou o caminho, a verdade...”. E a verdade está aqui. Nós a representamos. Nós falamos o que a voz rouca das ruas diz, e eles não podem dizer. V. Exª sabe que querem até nos pressionar, não é? Então, o brasileiro não tem liberdade de expressão. E o que V. Exª está dizendo aí...Olha, o Presidente da República está lá na Inglaterra, está conversando com a Rainha, com um milionário... Mas eu, como Líder do Partido Social Cristão aqui, quero dizer ao Luiz Inácio - está na Bíblia - que “sabedoria vale mais do que ouro e prata”, e V. Exª é esse quadro. V. Exª está mostrando, aliás, está dissecando - como nós, cirurgiões, dizemos: “dissecar” - o mapa do Brasil, a verdade; e a verdade é triste: 75% do povo brasileiro não tem um livro sequer. Essa é a verdade. Ouvi isso dessa tribuna, dito por uma professora, a Senadora Marisa Serrano, e fiquei estarrecido. Ontem, em breve pronunciamento em homenagem a Rui Barbosa, eu apenas citei o que ouvi aqui da Profª Marisa Serrano, que disse que 90% - atentai bem, Geraldo Mesquita! - das cidades brasileiras não têm uma livraria; não é biblioteca não, uma livraria. Então, quis Deus estar ali na Presidência Geraldo Mesquita Júnior. Quero dizer que tive o privilégio de ir ao Acre - ele, acompanhado de sua esposa Helena, eu, da minha Adalgisa - e vi como ele usa criteriosamente essa verba indenizatória. Ele tem um centro de estudo, vamos dizer, de bibliotecas formais, e as modernas, que são os computadores. E eu vi sendo oferecida aquela semente mais importante para a mocidade, que é a do saber. Então, são dias como o de hoje... Como dizia Padre Antonio Vieira, um bem sempre é acompanhado de outro bem. Em 5 de novembro, nasceu Rui Barbosa, há 160 anos - Heráclito Fortes adentra agora e representa o DEM. O dia 6 de novembro também é um dia grandioso para a nossa cultura. Hoje é aniversário, e quis Deus - Deus escreve certo por linhas direitas - que estivesse a presidir esta sessão o Senador Geraldo Mesquita Júnior. Hoje é o aniversário dele. Inclusive, ele não gosta que eu fale, eu sei o jeito dele, mas as virtudes dele, da esposa dele, da família dele, do pai dele, que ele herda com muita galhardia, a grandeza do povo do Acre eu já cheguei aqui admirando. Não porque o Acre foi o único Estado que foi um país no Brasil - nós sabemos, a liberdade foi com sangue, com sacrifício, a história; mas aprendi a admirar muito aquela região por dois motivos: primeiro porque Adib Jatene eu ajudei a fazer cirurgia no início da cirurgia cardiovascular; depois ele me ajudou como Ministro a governar. É acreano. E o Geraldo fez com que esse aniversário não fosse só do Acre, que ele representa bem pela genética do seu pai, da sua gente, mas ele é cearense, e eu sou ali irmão do Ceará. Eu me formei, o meu lado cultural todo é no Ceará. Agora disse isso com grande altivez, porque todos nós íamos estudar no Ceará para nos formar. Quando eu governei o Estado do Piauí, eu mudei a história. Deus me permitiu criar lá 400 faculdades, 36 campi avançados. Cada ano, oferecíamos quase 14 mil vagas aos estudantes pobres do Brasil. Então, Cristovam, V. Exª está sendo ouvido, e quero crer que hoje é um grande dia para o País: saiu de Rui Barbosa, entrou no Geraldo Mesquita, com a sua palavra, traduzindo a grandeza e a liberdade para despertar este País, e isso neste período de 5 para 6 de novembro, data de Rui Barbosa, o dia da independência cultural. Toda brasileira e todo brasileiro tem de reviver os dados duros e cruéis, mas verdadeiros, que ele traz sobre a cultura do Brasil. Então, eu quero crer que, desse pronunciamento em diante, V. Exª conseguiu mudar, porque as palavras, como disse Petrônio Portella aqui - outro dia, eu vi no histórico do Senado da República -, a única arma, ô Heráclito Fortes, do Senador é a palavra. E ninguém utiliza melhor essa arma do que o Professor e Senador Cristovam Buarque.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Obrigado, Senador. Mas, com essas palavras, eu não vou dizer mais nada, para que fiquem registradas nos Anais. Apenas muito obrigado, Senador. Fico feliz que o Senhor esteja na Presidência, porque o Senhor é um exemplo da prática da cultura sendo levada para o povo do Acre.

            Eu concluo, dizendo: vamos cuidar bem, obviamente, do corpo do Brasil. Mas não esqueçamos da alma do Brasil, porque, se a alma não estiver bem, não vale a pena o corpo. Mas o mais grave: no caso de um país, se a alma - a cultura, a ciência, a tecnologia, e a educação, obviamente, como a mãe dessas três - não estiver bem, daqui para a frente, o corpo - a economia - também não vai funcionar, porque ele terá de ser o produto do conhecimento.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 07/11/2009 - Página 57603