Discurso durante a 203ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Críticas ao substitutivo aprovado na Câmara dos Deputados ao projeto de lei originado no Senado, que dispõe sobre o ato médico, o qual acaba de retornar à Casa.

Autor
Epitácio Cafeteira (PTB - Partido Trabalhista Brasileiro/MA)
Nome completo: Epitácio Cafeteira Afonso Pereira
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
EXERCICIO PROFISSIONAL.:
  • Críticas ao substitutivo aprovado na Câmara dos Deputados ao projeto de lei originado no Senado, que dispõe sobre o ato médico, o qual acaba de retornar à Casa.
Aparteantes
Tião Viana.
Publicação
Publicação no DSF de 06/11/2009 - Página 57346
Assunto
Outros > EXERCICIO PROFISSIONAL.
Indexação
  • CRITICA, SUBSTITUTIVO, PROJETO DE LEI, SENADO, ALTERAÇÃO, CAMARA DOS DEPUTADOS, DISCIPLINAMENTO, EXERCICIO, MEDICINA, MOTIVO, CENTRALIZAÇÃO, INTERFERENCIA, PERDA, AUTONOMIA, EXERCICIO PROFISSIONAL, AREA, SAUDE, ESPECIFICAÇÃO, FISIOTERAPIA, FARMACIA, FONOAUDIOLOGIA, ENFERMAGEM, NUTRIÇÃO, PSICOLOGIA, BIOMEDICINA, BIOLOGIA, TERAPIA OCUPACIONAL, EDUCAÇÃO FISICA, SERVIÇO SOCIAL, DIVERGENCIA, DIRETRIZ, JUSTIÇA SOCIAL, DEMOCRACIA, DIREITOS, ACESSO, EFICIENCIA, SISTEMA, SAUDE PUBLICA, APRESENTAÇÃO, VOTO CONTRARIO, SENADOR.

                          SENADO FEDERAL SF -

            SECRETARIA-GERAL DA MESA

            SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. EPITÁCIO CAFETEIRA (PTB - MA. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, acabou de chegar a esta Casa um substitutivo preocupante. Trata-se do projeto oriundo do Senado Federal que disciplina o exercício da medicina e que, levemente modificado pela Câmara dos Deputados, contém, em minha opinião e na de muitos brasileiros que se têm manifestado de diversas maneiras, graves equívocos.

            Indiscutível é a importância do universo médico e de seus profissionais. Desde Hipócrates, que no século V a. C. estabeleceu os fundamentos da medicina, dita racional e científica, distinta daquela baseada na religião e na magia, bem como de seus preceitos éticos, os médicos são cada vez mais essenciais para o conforto pessoal e coletivo em nossas sociedades.

            A saúde plena é a grande meta de todos nós. O que chamamos de qualidade de vida passa necessariamente por ela. Porém, o conceito de saúde humana alargou-se a tal ponto que extrapolou o corpo físico individual e fixou-se em diversos pontos por muitas vezes imateriais. Nesse sentido, a área de saúde também se expandiu e fragmentou-se em várias especialidades e modalidades.

            É um movimento incontrolável que atinge todos os campos de saber e que caracteriza o que se costuma chamar de momento pós-moderno. Há uma visível dispersão que exige humildade e muita colaboração. Pressupõe um caráter interdisciplinar sem hierarquização e concentrações de poderes.

            O Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado nº 268, de 2002, que votaremos em breve, tem o mérito de ratificar alguns princípios e compromissos éticos expressos na Carta de Profissionalismo Médico, elaborada por instituições médicas norte-americanas e européias e divulgada em 2002, tais como: prioridade ao bem-estar do paciente, responsabilidade profissional sem discriminação e zelo pelo ser humano e pela coletividade.

            No entanto, o art. 4º, que prevê atividades privativas do médico, pode representar interferências indevidas em outras profissões da área da saúde igualmente importantes e ainda uma centralização de saber e poder incompatíveis com o mundo em que vivemos.

            O inciso I do art. 4º diz textualmente quanto à exclusividade dos médicos: “formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica”. Ora, a nosologia diz respeito a toda e qualquer enfermidade, classificando suas manifestações e definindo as doenças. E a prescrição terapêutica abrange um conjunto amplo de medidas, dietas e cuidados para aliviar ou curar os doentes. Vê-se, portanto, que uma redação tão vaga e abrangente pode suscitar uma verdadeira concentração de competências e habilidades nas mãos de alguém que, como qualquer ser humano, não dispõe de um conhecimento total.

            Dessa forma, somente ao médico caberá fazer o diagnóstico e definir o tratamento, sua duração e sua efetividade. Mesmo que o problema do paciente seja psicológico e/ou comportamental. Mesmo que o tratamento envolva exercícios físicos ou agentes físicos, dietas alimentares, utilização da farmacologia, estudos biológicos, terapias psicológicas individuais ou ocupacionais ou a resolução de questões sociais. Ou seja, a palavra inicial e a palavra final serão de apenas um dos atores desse grande espetáculo que é a vida humana e sua busca pela saúde.

            Pelo menos onze outros ramos de conhecimento de nível superior ligados à saúde humana, com grades disciplinares rígidas e longa duração, perderão autonomia e estarão submetidas a uma hierarquia sem razão de ser. É a radicalização de uma autoridade construída simbolicamente ao longo do tempo, mas que agora se pretende que se materialize em lei.

            Profissões como fisioterapia, farmácia, fonoaudiologia, enfermagem, nutrição, psicologia, biomedicina, biologia, terapia ocupacional, educação física e serviço social, junto à medicina, devem trabalhar em uníssono, num espírito colaboracionista visando ao bem-estar humano e a uma sociedade saudável. Todas, igualmente, fazem parte de uma teia de conhecimento e de solidariedade “fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência”, como reza o juramento médico inspirado em Hipócrates.

            Modificações na ética médica conduziram a dois preceitos unânimes em todas as declarações e tratados contemporâneos: autonomia do paciente e justiça social. E ambos podem ser prescritos pelo projeto a ser votado.

            Em primeiro lugar, ao depender exclusivamente do graduado em medicina devidamente inscrito no Conselho Regional de Medicina para diagnosticar, prescrever e ainda referendar o tratamento, o paciente perde a liberdade de optar. Seja por outros profissionais, seja por saberes alternativos, como os orientais ou os baseados em tradições diversas - fitoterapia, por exemplo.

            Ainda mais quando se analisa a realidade brasileira, ou melhor, as realidades brasileiras, já que temos aqui diferenças gritantes entre pessoas, comunidades e regiões. Fica difícil imaginar um paciente na Amazônia, ou no sertão nordestino, refém de um médico para avaliá-lo, estipular os procedimentos para o seu tratamento e liberá-lo após reavaliá-lo. Desnecessário ressaltar as deficiências numéricas de profissionais e de centros de saúde e os problemas de locomoção em lugares tão distantes e esquecidos deste País.

            Mesmo nos centros urbanos, obstáculos diversos advirão. Os que pagam plano de saúde já têm dificuldade para marcar consultas e precisam esperar longos períodos até consegui-las. Imagine-se, pois, o tempo que esperarão diante dessas novas exigências. E, para aqueles que dependem do sistema público de saúde, certamente as agruras serão ainda maiores.

            Essas situações vão de encontro àquele segundo preceito anteriormente citado, a justiça social. Ou seja, o direito a um sistema de saúde ágil, democrático e eficiente, atualmente para poucos, poderá se restringir ainda mais, podendo propiciar o distanciamento de doentes dos consultórios médicos e a busca de atalhos e soluções condenáveis.

            Creio que devamos criar um espaço de discussão verdadeiramente democrático, ouvindo todas as vozes envolvidas antes de aprovar esse projeto.

            O que gostaria de frisar, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, é que temo pelos desdobramentos desse projeto. Temo que estejamos na contramão da descentralização e da pluralidade exigidas de um sistema de assistência à saúde digno. Temo que se esteja criando uma dependência onerosa, autoritária e perigosa. Temo que nossa complexidade social fique submetida à unicidade de opinião e decisão, e nossa população mais vulnerável seja sacrificada ainda mais.

            O Sr. Tião Viana (Bloco/PT - AC) - Permite um aparte, Senador Cafeteira?

            O SR. EPITÁCIO CAFETEIRA (PTB - MA) - Com muita alegria.

            O Sr. Tião Viana (Bloco/PT - AC) - Senador Cafeteira, estou ouvindo atentamente a manifestação que V. Exª faz, abordando um assunto da maior relevância para o País, que diz respeito às fronteiras das profissões no Brasil. No caso, V. Exª analisa a profissão médica e entende que ela está invadindo fronteiras de outras profissões, está restringindo autonomias e indo de encontro ao que os tempos presentes dizem para profissionais de outras áreas ligadas à saúde. E coloca no seu pronunciamento, de maneira muito forte, o que é uma parte do Brasil onde a escassez de profissionais fala por si do significado de uma decisão jurídica, legal que determine que aquela atitude só poderia ser feita por médico. Isso me leva a pensar no papel de uma parteira na floresta amazônica na hora de fazer um parto, na hora de dar assistência a uma mãe que vai ter um filho. E sabemos que, nos próximos 30 anos, 50 anos, não teremos médicos residindo no meio da floresta em comunidades isoladas. Então, é um pronunciamento que chama a atenção para uma profunda reflexão. Eu, no entanto, deixo claro a V. Exª que sou a favor da normatização do ato médico no Brasil. O texto precisa melhorar, sim, ele precisa ficar mais claro, e ele precisa entender o que é o tempo da intersetorialidade. Nós estamos no tempo da atividade multiprofissional integrada. Hoje, numa UTI, o fisioterapeuta, o enfermeiro, os agentes de apoio todos têm um trabalho da maior significância em relação ao valor profissional e à especificidade. Portanto, esse assunto merece mesmo uma reflexão, nos moldes que V. Exª está fazendo. Eu entendo que o erro se deu quando os médicos caminhavam basicamente sós na avenida da atividade profissional em saúde. Nos anos 40, quando surgiu o Código de Deontologia Médica, que afirmava o espaço, a autonomia, as atitudes permitidas para os profissionais, naquele momento, nós deveríamos ter definido o que era ato médico. Não o fizemos, e agora a consequência é isto: há um levante de outras categorias disputando o mesmo espaço. Então, os médicos têm que estar firmes, conscientes e sobretudo compreensivos com essa intersetorialidade que envolve as profissões de saúde nos dias de hoje. Os meus cumprimentos a V. Exª pelo assunto tão relevante que traz ao Senado Federal.

            O SR. EPITÁCIO CAFETEIRA (PTB - MA) - Eu agradeço a V. Exª e quero dizer que o que me preocupa não é o ato médico; preocupa-me a falta de médico para cumprir esse ato. É isso que cria essa revolta das classes, que perdem a sua eficiência, vão caminhar como um cego, carregando uma bengala branca. Por isto, somente por isto, pela falta de médicos suficientes neste País, é que não só votarei contra, como, se puder, comandarei esse movimento.

            Obrigado a V. Exª, e anote: no decorrer da minha vida, mais do que nunca, preciso de médicos. Mas não posso deixar que outras pessoas sofram porque os médicos vão açambarcar tudo nesse projeto de lei, nesse substitutivo na Câmara dos Deputados.

            Sr. Presidente, muito obrigado.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 06/11/2009 - Página 57346