Discurso durante a 247ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comemoração do bicentenário de nascimento de Louis Braille, inventor do Sistema Braille de leitura e escrita para cegos.

Autor
Arthur Virgílio (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/AM)
Nome completo: Arthur Virgílio do Carmo Ribeiro Neto
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL.:
  • Comemoração do bicentenário de nascimento de Louis Braille, inventor do Sistema Braille de leitura e escrita para cegos.
Publicação
Publicação no DSF de 16/12/2009 - Página 68837
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, AUTOR, CODIGO BRAILLE, SAUDAÇÃO, MOVIMENTAÇÃO, SENADO, EXIBIÇÃO, FILME DOCUMENTARIO, ATOR, ESCRITOR, LITERATURA INFANTIL, PRESENÇA, CRIANÇA, ATLETAS, DIVERSIDADE, PESSOA PORTADORA DE DEFICIENCIA, COMPROVAÇÃO, PODER, INCLUSÃO.
  • CRITICA, DEFICIENCIA, ESTADO, TRATAMENTO, INTERESSE SOCIAL, CONCLAMAÇÃO, COMPROMISSO, LUTA, CONSCIENTIZAÇÃO, AMPLIAÇÃO, DIREITOS, EDUCAÇÃO, EMPREGO, PESSOA PORTADORA DE DEFICIENCIA.

                          SENADO FEDERAL SF -

            SECRETARIA-GERAL DA MESA

            SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. ARTHUR VIRGÍLIO (PSDB - AM. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, foi muito bom ouvir a Presidenta da Comissão de Assuntos Sociais do Senado, Senadora Rosalba Ciarlini, com sua sensibilidade e seu compromisso com causas tão nobres, que dizem mais de perto do que qualquer coisa ao cotidiano, à vida diária do ser humano.

            Foi comovente participar do evento de mais cedo, muito bem conduzido pelo Senador Heráclito Fortes e reunindo valores como Maurício e seus personagens - quero até fazer, aqui, o comercial do Além da Luz, do Ivy Goulart, que amanhã, às seis horas, estará no Petrônio Portella, mostrando uma visão muito positiva da vida -, e diversos Parlamentares presentes, entre os quais o Senador Romeu Tuma, o Senador Flávio Arns, que é um símbolo para todos nós dessa luta pela inclusão dos cidadãos que são portadores de necessidades especiais, e o Senador Sérgio Zambiasi. E havia de tudo. Havia os atletas, como o campeão José Mario Tranquilini, que dizia para mim: “Ah, os portadores de necessidades especiais por deficiência visual, deficiência física... Os meus meninos são portadores de deficiência social, porque moram em habitações muitas vezes infranormais, e sofrem as discriminações, sofrem as desvantagens de quem começa atrás e tem dificuldade de se equiparar àqueles mais bem contemplados pela vida, até por suas raízes familiares”.

            Eu gostaria de homenagear Louis Braille, que nasceu há 200 anos e veio com a missão divina de criar um sistema que possibilitasse a leitura e a escrita por cegos. Nós poderíamos, aqui, enumerar obras de poetas, de romancistas, de contistas, de jornalistas - hoje mesmo, havia um ilustre escritor paraibano que estava com o seu filho, ele cego. Eu posso dizer que Braille abriu os espaços da dignidade para tantas pessoas e possibilitou que prazeres da vida - o acesso à cultura, o acesso à informação - não se restringissem àqueles que pudessem ver, no sentido físico do ver.

            Hoje, Sr. Presidente, eu estava junto com - e não larguei mais - um menino chamado Igor, que é, formalmente, cego. O Serviço Militar diria: “Ele é cego”. O Departamento de Trânsito diria: “Ele é cego”. As pessoas que quisessem ter um olhar superficial sobre a sua vida diriam: “Ele é cego”. Mas ele me falou coisas muito interessantes. Em primeiro lugar, Senador Paim, ele ganhou um concurso de redação, e ganhou um prêmio bastante valioso por esse concurso. Ele não hesitou um segundo: ele deu o prêmio para uma colega, para uma amiga dele. Eu brinquei com ele e disse: “Aqui tem duas coisas. Aqui tem a sua generosidade e, desde cedo - 13 anos -, tem o seu lado sedutor. Você não deixou de fazer um galanteio para com a sua amiga”. Esse menino começou a perguntar para mim por filmes, se eu havia visto isso, se eu havia visto aquele, e me descreveu alguns desses filmes, todos eles próprios da idade dele, com muita movimentação e com muitas cores. Ele me descreveu cores. Ele falou para mim de cores. Perguntou se eu havia visto o filme tal. Eu falei que não. Ele disse: “Pois eu vi”. Ele não usou outra expressão. Eu julgava que ele fosse dizer: “Eu ouvi”. Ou: “Eu li”. Enfim, mas ele viu. Ele viu o filme. Ele disse: “Eu vi o filme”. E como ele viu o filme, ele tem toda uma capacidade, quem sabe até maior do que a das demais pessoas, de ter criado o seu próprio filme dentro daquele filme. O enredo é um só, mas sabe Deus as cores que ele não seja capaz de criar e a beleza que ele não seja capaz de gerar, de produzir?

            Tem, na minha terra, um grande entoador de toadas do Boi. Dá a maior confusão, porque ele era do Boi do Senador João Pedro, o Garantido, e, aí, ele resolveu virar a casaca e passou para o meu Boi, passou para o Caprichoso. Ele é conhecido como Rei David, o Rei David Assayag, uma voz poderosa, uma voz muito poderosa.

            Tem aquela lei do silêncio: não se faz barulho em condomínio depois de uma certa hora. Outro dia, houve uma festa de aniversário no meu prédio, em Manaus, e o Rei David foi chamado para participar desse jantar. Eram amigos dele. E começou a cantar. Ao invés de as pessoas reclamarem, foram todas para a sacada, para apreciar o show do Rei David.

            Outro dia, uma pessoa brincou com ele e falou: “David, como é que você só namora moça bonita se você não enxerga?” Ele falou assim: “Olha, eu sou cego, mas não sou burro. Eu sei muito bem o que é beleza e o que não é”.

            Então, a capacidade que eles têm de desenvolver o tato, de desenvolver essa percepção lá por dento, essa percepção que faz com que esse cão complemente e se complemente na vida do seu companheiro, do seu amigo, que leva uma vida absolutamente normal, que faz o Rei David compor e faz o Rei David levar uma vida absolutamente brilhante, bonita, normal, com muita independência, com uma taxa de independência muito maior do que a de pessoas que não conseguem se autodeterminar e que são portadoras das possibilidades todas de se locomoverem para lá e para cá, sem a mesma utilidade, sem a mesma capacidade de sentirem as coisas da vida, as coisas do mundo.

            Eu estava junto desse menino, o Igor. E o Igor só tem planos para o futuro. Ele tem planos muito bonitos para o futuro. Ele tem planos absolutamente generosos para o futuro. O Igor, para mim, foi um dos fatos mais marcantes.

            Eu vi o Maurício tirando foto com um menino que tinha paralisia cerebral. Eu vi a alegria, de os personagens estarem ali: Mônica, Cascão, Cebolinha, aquela turma toda, o Luca, que é um personagem cadeirante do Maurício, da Turma da Mônica. Foi uma coisa muito alegre. Não havia depressão. Porque eu recuso muito sair para esse estereótipo de que é deficiente, como se houvesse suficiência do lado de cá e houvesse deficiência do lado de lá. Eu não consigo ver assim. Eu vejo o Igor como uma pessoa jamais deficiente. O Igor é uma pessoa que vai conseguir tudo o que ele quiser na vida, até porque escreve bem, é inteligente, sabe falar, sabe tocar nas pessoas, extremamente capaz de mexer com o seu sentimento e provocar um sentimento de amizade, que eu sinto - que daqui para frente eu dedicarei a ele -, e tantos outros. Temos casos de pessoas com paralisia cerebral que são campeões paraolímpicos de natação, como Clodoaldo. Em outras palavras: eu vejo que há uma deficiência de Estado. Eu não queria Estado, Senador - vamos discutir Venezuela, se for o caso, daqui a pouco -, para estatizar farmácia, nem estatizar botequim, nem estatizar Hotel Hilton. Eu não queria Estado para isso. Eu queria e quero Estado para não deixar que se crie mesmo a sensação de que há deficiência onde não há deficiência. Porque se der os meios para essas pessoas vencerem as dificuldades iniciais da vida, elas chegam a ter uma vida bastante normal, uma vida bastante correta, bastante produtiva, bastante feliz para suas famílias e para as pessoas que estão aqui, Governador João Durval, que estão sendo hoje homenageada por nós.

            Aliás, não entendo, Sr. Presidente - e já encerro -, que isso aqui seja uma homenagem. Eu entendo seja um dia de luta. Não basta uma festividade e depois se esquece. Acho que foi um dia significativo, que marcou um compromisso em todos nós; marcou um compromisso, e cada vez que se participa de um evento como esse se cria uma consciência melhor, quem nos ouve cria uma consciência mais forte.

            Para mim está muito nítido e muito claro que temos de corrigir as deficiências do Estado brasileiro; temos de prestar serviços efetivos, serviços não assistencialistas, serviços que sejam capazes de oferecer educação e oportunidade de trabalho para todos aqueles que, na medida de suas oportunidades, tenham como exercer as suas atividades e se desempenhar de seus estudos. É assim que vejo.

            Portanto, Sr. Presidente, homenageando e lembrando-me de Braille e, ao mesmo tempo, homenageando o Igor, que estava a meu lado, foi o meu companheiro de cerimônia hoje, e agradecendo a presença de tantas pessoas, atores e tantas pessoas que têm enorme sentimento de beleza na vida que levam, eu digo a V. Exª que não dava para não ter dado alguma palavra curta que fosse aqui, para dizer que essa luta é uma luta que encampo com muita fé. Tenho - e o Senador Flávio Arns sabe disso - e criei isso aos poucos, tenho um compromisso muito forte com os autistas. Passei a conhecê-los; eu não os conhecia, e, passando a conhecê-los, percebi que eles eram fascinantes. Uma vez estava aqui e disse - me referindo ao Governo a que faço Oposição neste País: “Este Governo está autista”. Algumas pessoas, o Senador Flávio Arns foi uma, a Thelma Viga, que é Presidente da Associação dos Amigos dos Autistas do Amazonas, foi outra que me mandou um e-mail - até então eu a conhecia superficialmente -, e a Senadora Heloísa Helena, com a sua bravura e seu senso de presença, disse-me: “Arthur, não confunda. Você está criticando mazela. Você está criticando desvio de recurso público. Você está criticando corrupção. Não confunda isso com autista, porque é uma injustiça brutal que você comete”. Aí eu fui ver que tinha dezenas de outros e-mails dando-me um puxão de orelha, eu o merecia naquela altura. Então, o que eu fiz? Aceitei o convite da Thelma Viga, da AMAM, Associação dos Amigos dos Autistas do Amazonas, e fui lá. A partir daí, entrei na vida deles. É uma vida absolutamente fascinante. Uns, são focados em informática. Então, ninguém sabe mais informática do que aquele que nunca estudou. Outro é bom em matemática. Ninguém faz conta mais rápido do que aquele que também não estudou essa matemática toda. Aliás, é difícil até pedir a ele que estude, enfim. O outro... Tem um menino na AMAM, no Amazonas, que tem uma cesta de basquete. Olha, o Michel Jordan é o maior cestinha do mundo em todos os tempos, mas erra de vez em quando, errava de vez em quando; esse menino nunca errou nenhuma cesta. Nunca! E, aliás, um playoff da NBA foi decidido uma vez por um autista. Um minuto para terminar o jogo, colocaram o autista, e ele fez a cesta que precisava fazer, porque ele também nunca erraria uma cesta, na medida em que aquela era a vocação dele. Então, eu tenho muito medo desse conceito de normalidade e anormalidade. Aí fica assim: eu me considero normal e... Diz o Caetano Veloso que de perto quase ninguém é tão normal assim. Todos nós temos as nossas mazelas, as nossas misérias. Eu não entendo ser humano sem misérias. Eu não entendo ser humano perfeitinho, enfim. Os que dizem que são tão perfeitinhos são, na verdade, talvez os mais imperfeitos, os mais impuros. Então, a condição humana não relaciona honestidade pessoal com pureza em todos os sentimentos. A condição humana impõe as suas misérias também, e claro que ela também abre espaço para virtudes muito grandes nas pessoas que queiram cultivar virtudes também. Mas, eu não gosto dessa história de que “os que são deficientes” e “os que são normais”. Porque eu não sei se tem alguma coisa mais normal ou mais talvez até anormal, não no sentido de ser deficiente, mas mais anormal no sentido de ser valente do que alguém que consegue vencer as dificuldades iniciais que a vida lhe oferece e construir uma vida, como eu vi o Igor, hoje, como eu vejo tantas pessoas, como eu percebo as pessoas que não estão enxergando, mas tem o cão que o liga, que o guia e ele se comunica com o cão e aí leva a sua vida intelectual perfeita, leva a sua vida de prazer também, leva a sua vida de responsabilidade também. Em outras palavras, Braille é uma dessas pessoas que teve uma vida que valeu a pena. Estamos falando dele hoje, vamos falar dele por séculos e por milênios, e que o seu exemplo sirva para que, cada vez mais, aperfeiçoemos a possibilidade de darmos a esses que levaram desvantagem inicial a possibilidade de recobrarem da desvantagem inicial, para disputarem, nas posições mais iguais possíveis com os demais, as possibilidades que a vida dá de as pessoas brigarem por felicidade.

            Acredito muito que é possível um mundo onde cada vez mais haja menos desigualdades nessa arrancada inicial.

            Muito obrigado, Sr. Presidente. (Palmas.)


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 16/12/2009 - Página 68837