Discurso durante a 42ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Registro de dois aniversários comemorados nesta data: os 13 anos da adoção da faixa de pedestres no Distrito Federal e os 46 anos de implantação do regime militar no Brasil, que duraria 21 anos.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Registro de dois aniversários comemorados nesta data: os 13 anos da adoção da faixa de pedestres no Distrito Federal e os 46 anos de implantação do regime militar no Brasil, que duraria 21 anos.
Aparteantes
Jefferson Praia, José Nery.
Publicação
Publicação no DSF de 01/04/2010 - Página 11466
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • COMEMORAÇÃO, ANIVERSARIO, IMPLANTAÇÃO, FAIXA, PEDESTRE, DISTRITO FEDERAL (DF), GESTÃO, ORADOR, GOVERNADOR, DIFICULDADE, INCENTIVO, POPULAÇÃO, RESPEITO, TRANSITO, IMPORTANCIA, TRABALHO, POLICIA MILITAR, VISITA, REDE ESCOLAR, CONSCIENTIZAÇÃO, CRIANÇA, COBRANÇA, PAES.
  • REGISTRO, ANIVERSARIO, GOLPE DE ESTADO, IMPLANTAÇÃO, REGIME MILITAR, COMPARAÇÃO, ORADOR, PERIODO, ATUALIDADE, REDEMOCRATIZAÇÃO, CRITICA, CONTINUAÇÃO, CONCENTRAÇÃO DE RENDA, PRECARIEDADE, EDUCAÇÃO, SAUDE, AUMENTO, CORRUPÇÃO, IMPORTANCIA, RESGATE, FATO, HISTORIA, NECESSIDADE, DIVULGAÇÃO, ARQUIVO, DITADURA.

                          SENADO FEDERAL SF -

            SECRETARIA-GERAL DA MESA

            SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Sem revisão do orador.) - Obrigado, Senador. Primeiro obrigado pela divulgação do livro. Quero explicar que o título “Pé na porta” é o que nós fazemos aqui. Nós aqui colocamos o pé na porta da história. É possível até que a gente não escancare a porta porque isso é mais daqueles grandes estadistas que conseguem ocupar cargos e uns poucos de nós. Mas, pelo menos, a gente põe o pé na porta para tentar entrar na história do Brasil. E isso está faltando em muitos de nós que não temos essa ou ambição, não sei se é a palavra certa, ou esse objetivo de fazer aqui um trabalho que nos deixe na história.

            Quero dizer que não se preocupe de ter feito a publicidade porque o livro é gratuito e os que quiserem peçam no meu e-mail que a gente manda, porque é uma publicação do Senado Federal.

            O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PSC - PI) - Ainda bem, Cristovam, porque tem aquele “Atentai bem, assim falou Mão Santa”, do grande jornalista do nosso Piauí, Zózimo Tavares, mas o que eu recebo de e-mails me pedindo...

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Eu tenho o livro e fui no lançamento.

            O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PSC - PI) - Ele é comercializado, mas buscado como o quê.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Esse não é comercializado. A distribuição é gratuita.

            Senador Mão Santa, Srs. Senadores e Srªs Senadoras, quero comentar aqui dois aniversários que merecem ser comemorados. São de dimensões muito diferentes e de consequências opostas. Um aniversário, Senador Praia, é comemorado em Brasília. Hoje faz 13 anos que se iniciou em Brasília uma prática que é exemplo no Brasil inteiro: a faixa de pedestres. As pessoas, hoje, quando ouvem falar de Brasília, pensam em corrupção. Aqui há um dos melhores exemplos brasileiros de cidadania: o motorista respeita o pedestre. Aqui em Brasília, pedestre é rei. Não é carro que é rei.

            Aproveito até para comentar que vejo com preocupação a comemoração, também hoje, nos jornais, de que nunca, em nenhum mês da história do Brasil, se vendeu tanto carro. É claro que, para quem olha apenas a superficialidade, isso é um motivo de comemoração, porque passa a ideia de enriquecimento. Mas quem se aprofunda um pouco e, em vez de olhar hoje, olha lá na frente, como o Senador Mão Santa e o Senador Paim falaram, só tem de se preocupar, porque tanto carro significa menos dinheiro para saúde e educação e mais dinheiro mais viadutos e obras urbanas. Senão, esses carros vão engarrafar todos na nossa cidade. Mais carros, à primeira vista, parece mais riqueza, mas significa também mais consumo de petróleo, o que corresponde a um aumento da temperatura do planeta. Então, às vezes, a gente precisa olhar com cuidado o que comemora.

            Já a faixa do pedestre não precisamos ter nenhum cuidado em comemorar. É um exemplo de cidadania e um exemplo de educação, não no sentido da instrução que vem da escola em geral, mas da educação no sentido dos costumes. O motorista para o carro em respeito àquele que vai andando e estira a mão. Isso existe em Brasília, embora muitos não acreditem, a não ser quando chegam aqui e percebem que, de fato, aqui pedestre é rei. Não é o motorista que é o rei.

            Nós estamos comemorando e eu tenho muito orgulho de dizer que isso, Senador Praia, começou quando eu era Governador. Foi um esforço de meses de formação da população. Passamos meses, sobretudo educando as crianças na escola para que as crianças educassem os pais, para que as crianças, dentro do carro, quando o pai via alguém querendo atravessar e já ia passando por cima, dissessem: “Pai, aqui tem faixa de pedestre!”

            Foi educação colocando nas faixas de pedestres pessoas que educavam, inclusive muitos PMs, a quem nós devemos as faixas de pedestres. No Distrito Federal, os policiais militares foram professores de cidadania ao criar essa consciência do respeito à faixa de pedestre. Isso está sendo comemorado hoje.

            Mas também, Senador Praia - depois eu lhe dou o aparte, com muito prazer -, lamentavelmente, nós estamos hoje lembrando, eu não digo comemorando, o Golpe Militar de 1964. Eu digo que não estamos comemorando porque, mesmo reconhecendo muitas das obras que foram feitas durante os vinte anos do regime militar, mesmo reconhecendo que, por exemplo, esta cidade, Brasília, foi consolidada graças ao regime militar - talvez um regime civil, continuando João Goulart, não tivesse mantido esta cidade como capital -, mesmo reconhecendo que grande parte da nossa infraestrutura veio da força, da vontade e das prioridades dos governos militares, nós não podemos deixar de dizer que aquele governo impediu a democracia de funcionar, impediu as manifestações, cassou uma geração de políticos. E hoje, quando a gente vê a classe política tão desmoralizada, temos que ir lá atrás para, certamente, vermos que uma das causas é termos ficado 21 anos sem poder fazer a prática política da civilidade, sem poder fazer a prática política com liberdade. Isso deixou uma marca pela qual até hoje a gente continua pagando.

            Creio que não podemos esquecer que faz 46 anos hoje... Nós ainda não sabíamos, porque, de fato, o movimento começou, como lembrou muito bem, hoje de manhã, o Senador José Nery, no dia 1º de abril, mas, certamente, no dia 31, já estavam dadas as ordens para que os tanques tomassem conta das ruas. Para quem tem a minha idade, que nessa época estava na universidade, ou estava trabalhando, ou estava em alguma atividade, eu acho que esse é um dia que a gente jamais vai esquecer, aquele 1º de abril em que, de repente, saindo ninguém sabia de onde os tanques tomaram conta das ruas.

            Eu tenho um toque muito pessoal nisso, Senador Mão Santa, porque eu estava, sim, com um grupo de estudantes, na frente do palácio do Governador de Pernambuco. Lá dentro estava sendo preso Miguel Arraes e lá fora estávamos nós nos manifestando. Naquela manifestação, dois jovens, adolescentes, foram assassinados pelos tiros das tropas. Hoje, eu lembro esses jovens. Lembro que eles caíram ali no solo, caíram com sangue, praticamente não chegaram vivos ao hospital, porque ali gritávamos “liberdade”, porque ali gritávamos “democracia”, porque ali gritávamos pela legalidade, nada mais do que isso. Eles caíram e nós levamos 21 anos para recuperar a democracia no Brasil.

            Por isso, não podemos esquecer. Não podemos esquecer aqueles 21 anos sem liberdade, sem democracia, sem participação popular, sem prática da política transparente e aberta, mas também quero lembrar aqui que, nesses 25 anos de democracia, que já são mais do que os 21 da ditadura, a gente deixou de fazer muita coisa que poderia fazer para que pudéssemos dizer hoje que, de fato, nós construímos uma democracia no País.

            Nós acabamos a ditadura, mas ainda não construímos a democracia. Não há democracia com a corrupção que a gente sabe que há hoje no Brasil. Não há democracia, Senador Mão Santa, com as mentiras, como o senhor mesmo leu uma frase no livro, como hoje a gente costuma fazer a política mais como teatro de marketing do que como propostas de líderes para conduzir o País a um novo tempo.

            Não se faz democracia sem saúde pelo menos igual para todos. Se algum morre antes do que outro, é por causa do destino, é por causa da herança genética, é por causa de acidentes, mas não por falta de dinheiro. E, no Brasil, a gente sabe que a saúde é comprada. Logo, a gente sabe que o número de anos que uma pessoa vive no Brasil é diretamente proporcional à quantidade de dinheiro que ela tem no banco. É triste dizer isso, mas, do mesmo jeito que você diferencia pelo dinheiro uma pessoa que tem um carro bonito, que tem boas roupas, que vai a bons restaurantes por causa do dinheiro, você diferencia também quantos anos ela vive pelo dinheiro que tem.

            A democracia pode conviver perfeitamente, Senador Eurípedes, com alguns de carro bonito e outros andando de ônibus; pode conviver perfeitamente com uns com roupa bonita e outras com roupa não tão bonita; mas não é democracia viver mais anos ou menos anos dependendo da conta bancária, dependendo do contracheque, dependendo do lugar onde se trabalha. Isso não é democracia.

            Não é democracia termos educação desigual conforme o dinheiro dos pais. A democracia convive com pessoas mais educadas ou menos educadas, porque educação, no fundo, tem a ver com o seu talento, com a sua vocação, com a sua persistência. Então, é possível haver uma pessoa mais educada e outra menos educada na democracia, mas não escolas diferentes. Ser mais educado ou menos educado vai depender do talento, da persistência, da vocação que se tem. Com isso se convive na democracia. Mas, no Brasil, não é o talento que diferencia na educação. Não é a persistência que diferencia a educação. O que diferencia a educação no Brasil é a conta bancária do pai para pagar uma boa escola para o filho, salvo raras exceções daqueles que conseguiram uma vaga nas boas escolas públicas que este País tem, mas que são raras.

             Não é democracia uma sociedade onde estamos comemorando hoje quase 300 dias de censura a um jornal, O Estado de S. Paulo. Não é democracia.

            Você pode dizer que essa censura é diferente da anterior, porque a anterior os militares a faziam, agora a fazem os juízes. Pode até ter essa sutileza, mas a censura a um veículo de comunicação não é um gesto democrático. E a gente vive hoje 250, 260 dias, não sei quantos, de censura sobre o jornal O Estado de S. Paulo, um jornal que tem uma tradição ligada a grupos conservadores, mas que foi censurado durante o regime militar e que continua censurado 25 anos depois de o regime militar ter acabado.

            Não é democracia o sistema que desperdiça crianças. E o Brasil é um País desperdiçador de crianças. Ao longo de quatro séculos de escravidão, nós desperdiçávamos seres humanos jogados dos convés dos navios negreiros no mar, porque morriam no trajeto. Hoje, a gente não joga pelo convés do navios, mas a gente joga para fora da escola. E, para fora da escola, é tão grave do ponto de vista do futuro da criança quanto para aquela família que ficava ainda no navio negreiro, vendo os parentes serem jogados do convés abaixo.

            Não é democracia um País que desperdiça crianças. Sessenta crianças saem da escola no Brasil por minuto. Por minuto, sessenta crianças, claro, é preciso dizer, tomando o ano de 200 dias, que é o ano letivo, e tomando o dia de 4 horas, que é o período escolar no Brasil. Não é democracia ainda. Vinte e cinco anos depois, quatro anos a mais do que o regime militar, não há desculpa para isso.

            E o grave, Senadores, é que estamos realizando aqui uma Conferência da Educação, Senador Eurípedes. E essa Conferência da Educação está lutando para conseguir colocar que se gaste menos de R$2 mil, por ano, por criança na escola. Dois mil por criança corresponde, se a gente dividir pelo número de dias do ano, resultará R$5,00, um pouco mais, por dia por criança. Não é séria a democracia que canaliza R$2 mil, por ano, por criança para a sua educação. Enquanto, do outro lado, uma família de posse canaliza, por ano, R$12 mil, pelo menos R$6 mil. Queremos chegar como o grande resultado de uma conferência que esperou os oito anos do Governo Lula para se realizar, estamos tentando aprovar lá, pelo que tenho lido, em torno de R$1,9 mil, por ano, por criança.

            Que democracia fajuta é essa que reserva para suas crianças um valor tão insignificante? Não é democracia, 25 anos depois de conquistada, o sistema cujo piso salarial em torno de R$1 mil por mês de um professor não consegue ser aplicado porque pediram a inconstitucionalidade da lei, que saiu do Congresso e foi sancionada pelo Presidente Lula, e está dormindo no Supremo Tribunal Federal. O pedido de inconstitucionalidade não é votado, não é discutido, não é aprovado, não é democracia.

            A democracia em que quatro, cinco Governadores entram na justiça para pedir a inconstitucionalidade de um piso mínimo para o professor não é democracia. É como se, na época da escravidão, alguns governantes tivessem entrado na justiça para dizer que era inconstitucional a Lei Áurea. Felizmente, em 1988, esses Governadores não estavam no poder das províncias brasileiras, porque teriam entrado contra a Princesa Isabel, para declarar que a sua lei era inconstitucional.

            Não é democracia um País onde a gente não dá valor ao meio ambiente. Porque democracia que só pensa no presente é uma democracia capenga, insuficiente. Democracia tem de levar em conta as crianças, o futuro e, sem meio ambiente, não vai haver vida. Nós precisamos completar a democracia, nós precisamos fazer com que a democracia brasileira seja capaz de manter o meio ambiente equilibrado, acabar a corrupção, acabar essa coisa absurda do desperdício de crianças. Talvez nenhum crime maior se cometa hoje do que este: desperdiçar crianças. Quem não se horroriza diante do crime absurdo de Hitler de ter crematórios onde colocava minorias comunistas, especialmente os de crença judia? Nenhum outro crime foi tão grave no século XX, e olhe que foi um século de crimes sociais. Mas e nós, que queimamos cérebros, que fazemos do Brasil um crematório de cérebros e de florestas? Queimamos o futuro duplamente; queimamos o futuro ao destruir florestas e queimamos o futuro ao destruir cérebros. Nós somos um crematório e não há democracia com crematório. Democracia rima com berço, não com crematório. Mas a nossa está muito mais para crematório do que para berço.

            Por isso, nesse período, neste dia em que estamos hoje lembrando o golpe militar de 1964, sem esquecer as boas coisas que aconteceram durante aqueles 21 anos, mas sem deixar de dizer que o impedimento da prática democrática, da liberdade, da organização política deixou uma marca muito negativa no Brasil, temos de lembrar que a democracia já tem mais que os 21 anos da ditadura e nós, nestes 25 anos, não diminuímos - eu acho que aumentamos - bastante a corrupção. Não diminuímos. Eu acho que aumentamos, por meio do marketing, não da censura, a mentira na política. Nós diminuímos muito a censura, quase acabamos, mas ela continua ainda vigente sob outras formas. Nós, sem dúvida alguma, demos liberdade para que se diga o que quer, mas não conseguimos aprovar as leis necessárias para que o Brasil não seja um crematório de cérebros, para que o Brasil não seja um País de desperdício de crianças, para que o Brasil não seja um País destruidor da natureza. Vamos lembrar o que aconteceu antes, mas vamos refletir sobre o que está acontecendo agora.

            Eu quis falar aqui desse aniversário das faixas de pedestres, do respeito às faixas de pedestres, da soberania do pedestre sobre o motorista, como acontece de uma maneira ímpar, praticamente inusitada, apesar de algumas experiências em outras cidades, mas, de uma maneira tão forte, enraizada na consciência e no coração do brasiliense. Esse aniversário da cidadania plena, educada. E também esse aniversário daquela interrupção de um processo democrático que começou em 45 e que, com menos de 20 anos, com 19 anos, aquele processo foi interrompido. E, 21 anos depois, reconquistamos a democracia e, 25 anos depois, olhando esses anos que construímos, vemos o quanto falta fazer e o quanto não vemos em debate.

            E, finalmente, antes de passar a palavra aos dois Senadores que pediram apartes, quero dizer que também não é democracia aquele regime que não traz a verdade total sobre o que aconteceu naqueles 21 anos. O Brasil teve uma lei de anistia, que - não vamos nos enganar - foi concedida pelos militares. Claro que fomos para as ruas, gritamos e fizemos movimentos. Eles tiveram de ceder, mas eles poderiam ter segurando um ano, dois anos, três anos, cinco anos mais sem dar a anistia. A anistia foi algo que saiu da caneta do Presidente Figueiredo. Por isso, aquela anistia perdoou os que estavam de um lado e os que estavam do outro, e creio que temos de respeitar isso. Mas a lei da anistia não é a lei da amnésia. Anistia é uma coisa, esquecimento é outra. Por isso, a democracia está em dívida ainda com a história, porque a democracia continua escondendo grande parte da história daqueles anos. E esconde até corpos que até hoje não foram devolvidos às famílias. Nós não podemos dizer que temos uma democracia enquanto existirem corpos perdidos nas selvas onde tombaram. Não podemos dizer que temos democracia enquanto temos apagões nas lembranças trágicas daqueles momentos. E, quando digo apagões, eu não digo apenas os crimes de um lado, digo para contar-se também os crimes do outro lado. Porque, se alguém deu um tiro na selva para matar um guerrilheiro, houve guerrilheiros que colocaram bombas para matar soldados, e, às vezes, mataram civis por atos terroristas. Tem de ser esclarecido. Perdoados, sim. Esquecidos, não. Têm que ser ditos e reditos. Não podem ser esquecidos os fatos do passado. Um País sem memória não é uma Nação, é apenas um território cheio de gente andando em cima. O Brasil precisa deixar de ser apenas um País e transformar-se em uma Nação. E quem faz uma nação é a sua história, dita completa, sem nenhum apagão. O Brasil é um País de apagões mentais. A gente fala tanto em apagão elétrico, em apagão nos aeroportos e esquece o apagão histórico dos corpos não devolvidos às famílias, dos nomes não ditos dos que sofreram, dos nomes não ditos dos que torturaram.

            Nós precisamos completar a democracia em homenagem ao Brasil, não apenas às pessoas. Mas é em nome do Brasil que é preciso saber de tudo, mesmo se reconhecendo que estão perdoados os crimes, mas não esquecidos.

            Tudo isso creio que vale a pena lembrar, no momento em que a gente lembra aquele trágico 1º de abril, em que o Brasil interrompeu seu processo democrático - um processo democrático caótico, confuso, que poderia levar a um regime autoritário. Ninguém pode negar que havia esse risco. Mesmo assim, era um processo democrático que deveríamos ter continuado, e que foi interrompido.

            Era isso, Sr. Presidente, o que tinha a falar. Mas, antes de terminar, passo a palavra ao Senador Praia e depois ao Senador Nery.

            O Sr. Jefferson Praia (PDT - AM) - Senador Cristovam, V. Exª é um educador na política, uma raridade nesse contexto. V. Exª é um educador na política. Houve, na história deste País, poucos educadores na política. E eu me lembrava aqui, neste momento, de Jefferson Peres, do trabalho que fez. V. Exª, no que continua fazendo e no que fez - como, por exemplo, esta iniciativa das faixas de pedestre. Quer dizer, um ato, como governante, de educar. Acredito que, num primeiro momento, o povo não tenha entendido. V. Exª pode ter até tido algumas reações contrárias, mas o processo de educar, de governar, educando foi muito maior e passa a ser reconhecido hoje, depois desses treze anos, e todos os dias, quando presenciamos os pedestres com todo o respeito que têm nas faixas, ao atravessarem as ruas. Portanto, quero, nesses treze anos, parabenizar V. Exª, que continua nessa linha do educador na política, porque são pessoas como V. Exª - como foi Jefferson Peres - que são os nossos espelhos. São os espelhos dos mais jovens, dos adolescentes e das crianças, daqueles que sonham um País melhor e que percebem que na política tem de haver, sim, boas pessoas; que existem boas pessoas, que não fazem apenas as políticas públicas mais imediatas ou aquelas que o povo vai achar muito mais fácil ou aquelas que vão ter uma aceitação melhor, mas que fazem o que tem de ser feito. O exemplo que V. Exª deu, para mim, é muito importante. E nós temos, agora, de debruçar-nos, para verificar como podemos levar essa experiência de Brasília. O povo de Brasília está de parabéns, e V. Exª, lá atrás, quando estabeleceu essa política. Temos de ver como podemos levar isso para as demais cidades brasileiras. Portanto, meu aparte é neste sentido, do político educador, do político que não faz a ação apenas em troca do voto, mas que faz o que tem de ser feito, porque entende que aquela política pública é importante para a sociedade que ele está governando. Muito obrigado.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Eu que tenho a agradecer, Senador Praia, a fala e, sobretudo, a lembrança do nosso amigo, orientador em alguns momentos, que me deu o imenso privilégio de aceitar ser candidato a Vice-Presidente junto a mim, quando, na verdade, deveria ter ocorrido, como eu dizia sempre, na época, o contrário: no máximo, eu ser o Vice-Presidente dele. Muito obrigado.

            Senador Nery, a quem agradeço aqui, de público. Confesso que eu estava esquecido de que hoje era esta data de 31 de março, que a gente tinha de lembrar. Foi o senhor, hoje, de manhã, na Comissão de Direitos Humanos, em que tivemos uma excelente audiência com os Conselhos Tutelares, que me chamou à lembrança e me fez trocar o tema que eu ia abordar, para falar sobre isso.

            Não podemos deixar que esqueçamos essa data e tudo que ela teve de consequências para o Brasil, sobretudo as coisas negativas na política, sem negar algumas coisas positivas na economia e na infraestrutura.

            O Sr. José Nery (PSOL - PA) - Senador Cristovam Buarque, V. Exª traz, em seu pronunciamento, a memória e a lembrança do golpe de 1º de abril de 1964, ocorrido há exatos 46 anos, mas, oficialmente, marcado no calendário institucional como sendo 31 de março. É bom lembrar que, até há 25 anos, quando do período da redemocratização - que o País vem construindo a passos ainda lentos -, o 31 de março era marcado pelas comemorações, por desfiles militares e pela ordem do dia dos comandantes e militares das três Forças Armadas, enaltecendo-se o golpe, a ditadura, bem como tentando-se sedimentar uma visão, junto à população brasileira, de que o golpe de 64 tinha sido feito em nome da preservação das instituições democráticas; de que o golpe seria uma contraofensiva dos setores reacionários do País ao que chamavam de um processo de subversão para implantação do comunismo. E essa versão dos vencedores de 64 predominou tanto tempo na cena política brasileira, mas o fato de ninguém mais se lembrar, nos quartéis, de tratar desse tema, nem do registro desse fato, que V. Exª tão bem traz neste momento, no seu pronunciamento, no plenário do Senado Federal... É bom que muitos deixem de lembrar o golpe, por aquilo que ele representou de reafirmação de princípios conservadores, violadores dos direitos humanos. Mas nós, que combatemos o regime militar, que enfrentamos a perseguição política e ideológica e a censura, que apoiamos tantos que resistiram na luta pela anistia ampla, geral e irrestrita, que nos somamos, ainda na juventude, às manifestações da sociedade brasileira para garantir um processo de redemocratização, no qual tem importância fundamental a luta por eleições diretas no País e aquelas gigantescas manifestações populares que o Brasil experimentou no ano de 1984, em que este País se levantou pela aprovação da emenda das Diretas Já, a chamada Emenda Dante de Oliveira, que foi derrotada, no dia 25 de abril de 1984, dando-se origem àquele processo que culminou com a eleição indireta de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral... Esse processo todo da luta pela redemocratização, temos que lembrar a luta pela convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, que acabou, se não foi uma Constituinte exclusiva, mas o Congresso eleito em 1986 se transformou em uma Assembleia Constituinte, e ali construiu os pilares e, efetivamente, realizou projeto de oferecer ao Brasil uma nova Constituição, a Constituição democrática e cidadã, porém com muitas dívidas ainda a serem resgatadas pelos governos, pela sociedade, no sentido de garantir que os preceitos estabelecidos na própria Constituição Federal, inclusive a regulamentação de muitos de seus artigos, são dívidas que ainda temos para com a sociedade brasileira. Mas eu quero, especialmente, me dirigir a V. Exª para, informando ao vosso pronunciamento, homenagear a todos os brasileiros e brasileiras que resistiram, combateram, que tiveram suas vidas ameaçadas, que tiveram sua privacidade violada, a violação das correspondências, a violação do domicílio, a prisão por conta simplesmente de terem um posicionamento, uma visão política diferente dos donos do poder de então. Lembrar a memória daqueles que foram cassados, exilados, desaparecidos e mortos. Creio que nada é tão importante do que cobrar, no dia de hoje, no Governo do Presidente Lula, a abertura total e irrestrita dos arquivos da ditadura militar, fazendo e protagonizando no País o que países vizinhos e irmãos nossos no Cone Sul já fizeram. Na Argentina, no Paraguai e no Chile, todos os arquivos já foram colocados à disposição da sociedade para pleno conhecimento das atrocidades e da violência do Estado contra o cidadão, a democracia e a liberdade, que ceifou tantas vidas, tantos sonhos e nos colocou durante 21 anos de joelhos numa ditadura feroz. Sei de tantas pessoas que, para fazer uma reunião, a fizeram no cemitério como se estivessem rezando, porque não havia liberdade para reunir-se. Havia os que eram proibidos de fazer uma manifestação, porque poderia resultar na prisão ou no enquadramento na famosa e famigerada Lei de Segurança Nacional. Havia a proibição do funcionamento livre dos sindicatos e das universidades, que tiveram muitos dos seus professores aposentados pelo AI-5, muitos estudantes punidos com a expulsão, ou então estudantes mortos pela ditadura.E lembro como são tantos brasileiros vítimas do regime militar. Da Igreja, da Igreja progressista, da Teologia da Libertação, que teve seus pastores perseguidos, presos e humilhados. Mas quero lembrar, simbolizando todos os brasileiros que foram mortos, perseguidos ou assassinados, a memória do estudante paraense assassinado no restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro, em março de 1968, Edson Luís de Lima Santos, cuja família ainda hoje mora em Belém do Pará. Eu posso lembrar operários, posso lembrar intelectuais, posso lembrar políticos, posso lembrar advogados, posso lembrar membros da Igreja e do movimento sindical, mas, com certeza, Senador Cristovam Buarque...

            (Interrupção do som.)

            O Sr. José Nery (PSOL - PA) - Sr. Presidente, o senhor foi formado na escola da democracia. Eu sou obrigado a dizer a V. Exª que o senhor não marcou tempo dos outros oradores. Então, se o senhor não marcou tempo eu reivindico isonomia para poder fazer este aparte, que já estou concluindo. Quero dizer, Senador Cristovam Buarque, que a lembrança que V. Exª traz ao Brasil da tribuna do Senado Federal, tem o sentido fundamental de fazer com que a geração que enfrentou as agruras do regime e as novas gerações, a juventude brasileira, que não viveu aqueles tempos, possam ter conhecimento dessa memória histórica...

            (Interrupção do som.)

            O Sr. José Nery (PSOL - PA) - Só mais um minuto, Sr. Presidente! E fazer disso um compromisso de lutar, sob todas as formas, para não permitir que o Brasil possa sofrer, em algum momento da sua história futura, qualquer tipo de retrocesso que nos remeta ao crime praticado pelo Estado, contra a liberdade, contra a justiça e contra a democracia. Parabéns a V. Exª por trazer esse tema à tribuna, cujo tratamento iniciou hoje, como V. Exª bem lembrou, na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. A sua lembrança como educador, como intelectual, como Senador, ex-Governador, militante das causas populares, serve ao Brasil, neste momento, trazendo à memória esse fato histórico tão relevante....

            (Interrupção do som.)

            O Sr. José Nery (PSOL - PA) - ...e, enquanto memória, para superá-lo e não aceitá-lo. V. Exª receba do PSOL e de todos os que lutaram os meus cumprimentos e a certeza de que o senhor contribui com essa fala, mais uma vez, fazendo história. E, como disse o Senador Jefferson Praia, o senhor é um educador na política. Muito obrigado!

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Muito obrigado, Senador Nery. Eu peço dois minutos para concluir, Senador Mão Santa, e falar de duas coisas, e um minuto para cada uma, ou até trinta segundos para uma, e o resto para outra.

            Uma, que pioramos o processo democrático; e outra, que a meu ver, é o que mais melhorou nesses 25 anos, o que mais diferente é hoje do que era antes da democracia. A meu ver, o que piorou foi o comportamento nosso, dos políticos, porque perdemos aquela guerra por princípios, passamos a fazer um jogo de cena mais do que uma luta por objetivos.

            Perdemos a guerra de lutar por utopias, inclusive aquela que era a democracia. Nós pioramos. A política pode dizer que não piorou porque ela ficou democrática, mas nós pioramos quando nos comparamos, cada um de nós, com os grandes daquele tempo.

            Agora, para mim, uma coisa melhorou muito, Senador Mão Santa: o quartel, os militares. Nada é mais diferente de vinte e cinco anos atrás para hoje do que um quartel. Por isso, estranho muito essa demora em liberar todas as informações, porque hoje os militares brasileiros, com o seu profissionalismo, com a sua competência, com sua isenção no quadro político, com a aceitação inimaginável de um comandante civil, o Ministro da Defesa - era inimaginável o comandante civil no Ministério da Defesa que foi criado na democracia recentemente; era inimaginável que a gente tivesse uma mudança tão positiva no comportamento dos militares brasileiros... Lamento que eu não possa dizer o mesmo do comportamento dos políticos brasileiros.

            Sr. Presidente, essa era a reflexão que eu queria fazer no dia de hoje.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 01/04/2010 - Página 11466