Discurso durante a 59ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Considerações sobre o julgamento do Supremo Tribunal Federal, na próxima quarta-feira, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que contesta a Lei da Anistia.

Autor
Pedro Simon (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: Pedro Jorge Simon
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS. JUDICIARIO.:
  • Considerações sobre o julgamento do Supremo Tribunal Federal, na próxima quarta-feira, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que contesta a Lei da Anistia.
Publicação
Publicação no DSF de 27/04/2010 - Página 16408
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS. JUDICIARIO.
Indexação
  • ANUNCIO, JULGAMENTO, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), ARGUIÇÃO, AUTORIA, ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL (OAB), INAPLICABILIDADE, LEI DE ANISTIA, CRIME COMUM, PERIODO, DITADURA, SOLICITAÇÃO, DESCARACTERIZAÇÃO, CRIME POLITICO, TORTURA, HOMICIDIO, DESAPARECIMENTO, CIDADÃO, REGIME MILITAR.
  • REGISTRO, ESTIMATIVA, NUMERO, CIDADÃO, VITIMA, TORTURA, REGIME MILITAR, CRITICA, ORADOR, ATRASO, BRASIL, PUNIÇÃO, CULPA, COMPARAÇÃO, DIVERSIDADE, PAIS, CONTINENTE, AMERICA DO SUL, AMERICA CENTRAL.
  • APREENSÃO, SUPERIORIDADE, NUMERO, HOMICIDIO, BRASIL, PROXIMIDADE, ESTIMATIVA, QUANTIDADE, MORTO, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), SITUAÇÃO, GUERRA, OPINIÃO, ORADOR, EFEITO, IMPUNIDADE, TORTURA, CRESCIMENTO, VIOLENCIA, EXPECTATIVA, DECISÃO, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), IDENTIFICAÇÃO, AGENTE, REGIME MILITAR, VIOLAÇÃO, DIREITOS HUMANOS.

                          SENADO FEDERAL SF -

            SECRETARIA-GERAL DA MESA

            SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. PEDRO SIMON (PMDB - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs Parlamentares, em janeiro de 1975, a polícia política do Chile prendeu uma jovem médica pediatra de 24 anos.

            Eram tempos difíceis. As tropas do General Pinochet tinham derrubado o regime constitucional do Presidente Salvador Allende dois anos antes.

            No ano seguinte, o pai da jovem médica, um brigadeiro leal ao Presidente deposto, tinha sido preso e, ainda detido, morreu do coração ao não resistir ao sofrimento de tantos camaradas.

            A jovem médica sobreviveu ao pai, sobreviveu à prisão, às torturas que lá sofreu, durante um ano, até se exilar na Austrália.

            Essa mesma jovem médica estudou mais, aperfeiçoou seus conhecimentos e retornou ao Chile, ao Chile de Pinochet, o homem que levou seu pai à morte, e essa jovem médica engajou-se na política, na luta pela democracia.

            Ela venceu. E tanto convenceu que, 31 anos após sua prisão e as torturas que sofreu, Michelle Bachelet, a jovem médica, tornou-se Presidente do Chile por vontade soberana do seu povo.

           Apesar de tanto sofrimento, apesar de tanta dor, Bachelet nos legou uma frase de profunda sabedoria, de elevado teor humanista, que o mundo consagra: “Só as feridas lavadas cicatrizam”. Repito: “Só as feridas lavadas cicatrizam”.

            Sr. Presidente, Srs. Senadores, amanhã, ou melhor, depois de amanhã, quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal terá a oportunidade de decidir uma importante questão na nossa história de ajustar a memória à verdade, de reafirmar a autoestima de uma Nação, que respeita o seu passado sem medo de seu futuro. A Suprema Corte brasileira terá, enfim, a oportunidade de lavar nossas feridas e de permitir a cicatrização de uma chaga que ainda sangra, que ainda dói e ainda machuca.

            Após dois anos, o Supremo Tribunal Federal julgará, enfim, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 154, proposta em outubro de 2008 pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O que pede a OAB é simples: que o Supremo Tribunal Federal interprete o art. 1º da Lei de Anistia, declarando, de forma clara e definitiva, que a anistia não se aplica aos crimes comuns praticados por agentes de repressão durante o regime militar, que manteve o País sob ditadura entre 1964 e 1985.

            Tortura, assassinato, desaparecimento forçado são crimes de lesa-humanidade imprescritíveis, conforme tratados internacionais assinados pelo Brasil e nunca colocados em prática até aqui. São crimes que não podem, portanto, ser objeto de anistia ou autoanistia. Não são crimes políticos nem conexos e assim não podem se nivelar às punições dadas a tantos brasileiros que, condenados às prisões ou ao exílio, acabaram beneficiados em 1979 pela Lei da Anistia, que terminou por abrigá-los.

            Lei nenhuma, no entanto, no Brasil e no mundo, acolhe a tortura ou a reconhece.

            O Brasil é o único país da América Latina que ainda não julgou criminalmente os homens que se excederam, no regime militar, na ditadura, torturando e matando.

            Ao longo de 21 anos de regime autoritário vicejou aqui um sistema repressivo estimado em 24 mil agentes que, por razões políticas, prendeu cerca de 50 mil brasileiros e torturou algo em torno de 20 mil pessoas, uma média de 3 torturas para cada dia da ditadura, que não foi branda, nem curta, nem clemente. 

            Anistia não é amnésia, disse o Presidente da OAB, Cezar Britto, que apresentou a ação ao Supremo Tribunal Federal. Gente de várias correntes políticas reconhece que tortura não é crime político; é muito pior, é um grave atentado à dignidade da pessoa humana, ontem, hoje e sempre.

            Torturadores e criminosos que atentaram contra a vida e a dignidade não são esquecidos em todos os lugares, em todos os tempos, em todo o mundo.

            É por isso que até hoje um ou outro criminoso de guerra nazista ainda é caçado, ainda é preso, embora tenha 80 ou 90 anos de vida. Não é pelo prazer da caça, mas pelo dever moral que a civilização tem de lembrar a todos que os seus crimes não se apagam, não se perdoam.

            O Tribunal de Nuremberg, no julgamento de criminosos da Segunda Guerra, ouviu 240 testemunhas em 285 dias de julgamento, gerando um sumário de 4 bilhões de palavras, para uma acusação final de 25 mil páginas, contra os 18 principais chefes do Reich. Os juízes chegaram ao argumento de defesa de que eles apenas “cumpriram ordens”. Os juízes negaram o argumento de defesa de que eles apenas cumpriam ordens. O juiz americano Francis Biddle fulminou essa tese com uma frase imortal: “Os indivíduos têm deveres internacionais a cumprir, acima dos deveres nacionais que o Estado particular possa impor.”

            Ficou assim encravado na consciência moral do mundo que todos nós somos responsáveis pelos atos que praticamos. Ninguém é inocente para “cumprir ordens” contra a lei, contra a moral, contra a ética, contra a verdade.

            Ninguém, neste País, tinha ordens para torturar. Nem mesmo o AI-5, a lei mais dura do período mais sangrento do regime de 64, mencionava ou liberava o uso da tortura. Os torturadores têm algo em comum: eles têm vergonha do que fizeram.

            É um crime, portanto, sem pai e sem mãe.

            Anistia não é esquecimento, é perdão, ensinam os juristas que não escamoteiam as palavras. Não se pode esquecer o que não se conhece. Também não se pode perdoar o que não foi punido, privilégio imaculado de todos os torturadores que ainda existem no País.

            O nazismo não merecia amnésia, muito menos a anistia. A tortura, também.

            Nossos vizinhos do Cone Sul, que padeceram ditaduras tão violentas como a nossa, acertam suas contas com o passado. A justiça argentina neste momento processa 263 militares, e políticos, e policiais, por crimes contra direitos humanos.

            Na Argentina, os generais Jorge Rafael Videla e Reynaldo Bignone cumprem longas penas de prisão pelo regime de tortura que comandaram.

            No Uruguai, está preso o civil que deu o golpe em 1973, José María Bordaberry, e o Presidente da ditadura, o General Gregório Alvarez, condenado, em 2009, a 25 anos de prisão pela morte de 37 opositores. São três mortes a menos do que os 40 presos políticos mortos durante os 40 meses do DOI-Codi, na Rua Tutóia. Foi comandado pelo Major Carlos Alberto Brilhante Ustra, no Governo Médici. Hoje General, na reserva, Brilhante Ustra não teve os percalços da vida de seus colegas argentinos e nem os uruguaios. Vive bem, tranquilo, aposentado, aqui mesmo em Brasília.

            O historiador americano Edward Peters, professor da Universidade da Pensilvânia, advertiu: “O futuro da tortura está indissoluvelmente ligado ao futuro dos torturadores”.

            No berço da tortura não punida, nasceu a impunidade da violência, não resolvida no Brasil, antes da ditadura, agora na democracia. Ou seja, a impunidade do torturador acaba garantindo a perenidade da tortura e de sua filha dileta, a violência.

            O Brasil, que evita punir ou sequer apontar seus torturadores, acaba banalizando a violência que transborda a ditadura e vitimiza o cidadão comum em plena democracia, principalmente nas duas maiores capitais, São Paulo e Rio.

            O esquecimento da história é o berço da impunidade. E a impunidade é ancestral da violência. Pais cuidadosos dos delinquentes que puxam gatilhos ou que arrastam inocentes pelas ruas, esfolados até a morte. O João Hélio, menino inocente, preso por um cinto que se diz de segurança, é igualmente vítima da impunidade de quem prendeu outros tantos nomes nos paus-de-araras, também em nome da segurança. Um, torturador; outro, torturado. Ambos, porém, inesquecíveis.

            A política silenciosa é cúmplice, portanto, da impunidade e de seus filhos diretos: a violência, a corrupção e a barbárie. É a construção de uma cultura que vem de longe, desde quando se torturavam escravos e se dizimavam índios, e que chega aos nossos dias contra quem ainda não conseguiu desbravar o “novo-oeste” da globalização e do mercado.

            Quem esquece a história é cúmplice nos mais de 50 mil assassinatos, por ano, no Brasil. Quinhentos mil numa única década! É como se uma Niterói sumisse do nosso mapa, a cada dez anos, vítimas dos descendentes da impunidade e dos cúmplices, que se escondem sob o manto do silêncio.

            Nos 24 anos seguintes à anistia (1979-2003), armas de fogo mataram no Brasil 550 mil pessoas - 44% delas jovens entre 15 e 24 anos.

            Este Brasil varonil, pacífico e cordial, viu morrer quase tanta gente quanto os Estados Unidos durante os cinco anos que lutou na Segunda Guerra Mundial (625 mil soldados).

            No ano de 2003, segundo dados do Ministério da Saúde, assassinaram no Brasil uma população civil (51 mil pessoas) quase tão grande quanto as perdas dos Estados Unidos (58 mil) ao longo dos 16 anos da Guerra do Vietnã.

            Esta mesma impunidade, que nasce nos quartéis, sobrevive hoje, portanto, nas ruas.

            A tortura é verdade. A verdade sob tortura é mentira.

            Esconder da história a verdade é a maior de todas as mentiras. Ou cumplicidade, se repetida a mesma história. A história é, normalmente, contada pelos vencedores. Sim, a história, repito, normalmente é contada pelos vencedores. Neste caso, pelos torturadores. Quem teima em esquecer essa história, é cúmplice dela. É protagonista, do mesmo lado.

            O esquecimento é uma forma de perdão. Mas existem fatos que são imperdoáveis. Portanto, inesquecíveis. Como perdoar, por exemplo, os autores do holocausto? Esquecendo o próprio holocausto? Negando-o, como querem alguns? Como negar as fileiras e os amontoados de corpos esquálidos nos campos de concentração nazista? Ou do genocídio de Sabra e Chatila? Como haver misericórdia em tiros? Ou em gás?

            É o esquecimento, artéria principal da impunidade, a razão principal da repetição.

            Punir os torturadores, de hoje e de ontem, não é revanchismo. É uma obrigação moral, ética de um país que deve olhar sem medo, para trás, para encarar sem receios o caminho que tem pela frente.

            Vamos lavar as nossas feridas!

            Que isso comece nesta quarta-feira, pela histórica decisão que será dada pelo Supremo Tribunal Federal, acatando o pedido da OAB e os clamores de um país consciente de seu passado e confiante em seu futuro.

            Eu poderia dizer ainda, Sr. Presidente, lembrando um caso que me parece importante. Foi o caso lá da África do Sul. Depois de 27 anos na cadeia, eleito Presidente da República, terminando com o Apartheid, Mandela determinou o levantamento das violências, dos arbítrios e das torturas que os negros sofreram; criou uma comissão especial que mostrou à nação os fatos e apontou os responsáveis. Depois, Mandela, um gênio do bem e do amor, em nome da paz e do futuro, perdoou, não puniu, mas deu o nome das pessoas e as pessoas confessaram. Feito o levantamento, criada a comissão, feita a análise, uma por uma, foram sendo conhecidas as pessoas que praticaram a violência, a tortura a milhões de negros durante tanto tempo. E os nomes foram apontados. E foram responsabilizados.

            E Mandela, em nome da consciência, do não revanchismo, da tentativa de buscar a paz, e não uma luta contínua entre brancos e negros, depois de apontados, depois de reconhecerem, depois que confessarem a sua culpa, Mandela perdoou. Eu não sou contra uma decisão como essa. O Supremo Tribunal Federal pode criar. Eu não sou contra. Não estou aqui, não é meu estilo e nem meu gênero a busca por “A”, “B” ou “C”, colocar na cadeia ou coisa que o valha, mas reconhecer, sabermos qual foi a nossa história é uma obrigação nossa. Esconder, botar a cabeça embaixo do travesseiro e não querer olhar não é o melhor caminho.

            Por isso, quando o Ministro Tarso Genro, da Justiça, levantou essa tese, eu a olhei com o maior respeito e não entendi que o então Ministro Tarso Genro estava numa tese de vindita ou coisa parecida, mas uma tese que é vitoriosa no mundo inteiro, inclusive aqui. Ali no Uruguai, ali na Argentina, ali no Chile. Repito, na sua imensa capacidade de adaptar os fatos, o Supremo Tribunal ou nós mesmos, Congresso Nacional, ou o próprio Lula, tenho certeza de que Lula, Congresso e Supremo podem chegar a esse entendimento.

            Perdoar não é arquivar nem esquecer. Conhecido o fato, apurado o fato, reconhecido o fato, podemos até analisar, que foi o que fez o Mandela.

            Com toda sinceridade, creio que isso é viável, isso é possível. Podemos até chegar a um entendimento entre a tese do Ministro Tarso Genro e a do Ministro da Defesa Nelson Jobim.

            Esta Casa votou? Sim. A anistia foi um ato de luta? Foi. Foi conquistada? Foi. Teotônio Vilela e inúmeros seguidores andaram por este Brasil? Sim. Mas não vamos nos esquecer nunca de que foi este Congresso que, em pleno regime militar, aprovou a lei sob o comando do General Figueiredo, que foi quem a enviou.

            O princípio é este. A lei foi o esquecimento total e absoluto ou a lei permite que se revise - revisar não é termo -, que se analise a história e se encontre a verdade. Em cima da verdade, conhecendo os fatos, aí podemos tomar a decisão, como a do Mandela ou como a do Uruguai, do Chile ou da Argentina.

            Era isso, Sr. Presidente.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 27/04/2010 - Página 16408