Discurso durante a 111ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Desclassificação da Seleção Brasileira de Futebol, a tristeza que se abateu sobre a torcida, lamentando que o patriotismo durante a a Copa do Mundo não se estenda a outros acontecimentos como a calamidade da pobreza no país ou da precariedade dos sistemas de educação ou saúde.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • Desclassificação da Seleção Brasileira de Futebol, a tristeza que se abateu sobre a torcida, lamentando que o patriotismo durante a a Copa do Mundo não se estenda a outros acontecimentos como a calamidade da pobreza no país ou da precariedade dos sistemas de educação ou saúde.
Publicação
Publicação no DSF de 03/07/2010 - Página 32531
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • IMPORTANCIA, FRUSTRAÇÃO, BRASILEIROS, SAIDA, CAMPEONATO MUNDIAL, FUTEBOL, SELEÇÃO, BRASIL, NECESSIDADE, EXTENSÃO, ENTENDIMENTO, PATRIOTISMO, UNIÃO, POPULAÇÃO, BUSCA, SOLUÇÃO, PROBLEMAS BRASILEIROS, ANALFABETISMO, PRECARIEDADE, SISTEMA PENITENCIARIO, EDUCAÇÃO, SAUDE, DESMATAMENTO, FLORESTA, SUPERIORIDADE, VIOLENCIA, AUSENCIA, PROTEÇÃO, INDIO, MULHER, CRIANÇA.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Presidente Sarney, agradeço estarmos aqui hoje. E vou falar, obviamente, do tema que o Senador Arthur Virgílio iniciou, mas sob outro enfoque e pegando uma palavra que o senhor usou, Senador Sarney, que foi a palavra patriotismo, pátria.

            Eu quero dizer que, hoje, ao ver o final do jogo e, depois, ao sair e ver a cara de cada brasileiro que encontrei, senti que o futebol tem mais de uma magia. Primeiramente, tem a magia do próprio jogo. É um jogo mágico, só o fato de jogarmos apenas com os pés e não usando as mãos - embora nesta Copa até houve algum que soube usar as mãos, e o Juiz não viu -, quando nós, os seres humanos, temos o hábito de agarrar com a mão. E os grandes jogadores fazem mágica o tempo todo apenas usando os pés. É uma magia.

            A outra magia - e acho que nesta Copa vai ficar registrado e que foi uma das coisas mais belas - não foi aquele barulho de jeito nenhum, mas as caras das pessoas pintadas e as fantasias que as pessoas usaram. Esta Copa dá um livro maravilhoso de fotografias das figuras que vemos torcendo. Esta é a segunda magia: a da torcida.

            Mas há uma terceira magia, da qual quero falar: é a magia de um povo inteiro unido em função de um momento preciso, de uma bola e dos 11 jogadores. O Brasil é um país que vive essa magia mais do que todos os outros. E essa magia se dá casada com um sentimento patriótico.

            Hoje, estamos vivendo aquilo que o patriotismo traz, que é o lado da tristeza comum de todos os habitantes de um país em função de uma tragédia - alguns em função de perder uma guerra, outros em função de um terremoto. O Brasil sofre em razão da derrota de não trazer para cá a Copa deste ano, que, neste caso, seria inclusive a sexta, o Hexa, de que o senhor falou, que espero possamos ganhar em 2014.

            É sobre esse sentimento patriótico em função da bola, em função da seleção que hoje quero falar um pouco, enquanto é tempo, porque eu temo, Senador Sarney, que, dentro de mais algumas décadas, a Copa do Mundo deixe de ser por times nacionais e seja por times de patrocinadores. Eu não duvido de que, daqui a alguns anos, tenhamos, na Copa, jogando Nike contra Adidas ou contra Microsoft. Aliás, assim é com as corridas de automóvel: as escuderias, e não as nações mais. Mas como ainda temos, felizmente, as copas em torno a times nacionais, acho que vale a pena a gente lembrar que, apesar de a tristeza ser um sentimento negativo, é um sentimento positivo o patriotismo. A tristeza comum, como a tristeza de uma família quando acontece alguma coisa com um dos parentes. A família inteira entra em uma crise de sentimentos profundos de tristeza.

            O Brasil hoje vive a crise profunda do sentimento da tristeza da perda do campeonato neste ano de 2010. É bonito a gente estar sofrendo isso. Eu não disse que é bom, de jeito nenhum, mas é bonito. Quantas músicas tristes não são bonitas! Eu, pessoalmente, aliás, devo dizer, gosto mais das músicas tristes. Elas me tocam mais profundamente do que as alegres, com exceção do frevo, que eu nasci ouvindo, já que eu nasci num domingo de Carnaval, no centro de Recife. Tirando o frevo, a música que me toca é a música triste. 

            Eu acho que é bonito, embora seja ruim, incômodo. Dói, mas é bonito esse sentimento da tristeza de 190 milhões. Esse sentimento de nos sentirmos irmanados, todos nós, pelo mesmo sentimento no mesmo momento. Esse é um sentimento agradável. Não é um sentimento agradável, obviamente, mas é um sentimento bonito que a gente precisa despertar: o sentimento do patriotismo.

            Mas o que deixa a tristeza maior é quando a gente observa a beleza desse sentimento de tristeza comum de um povo e percebe que esse povo, nós, brasileiros, não sente a mesma tristeza diante de outros fenômenos no mínimo tão graves como a perda de um campeonato de futebol. Nós não sentimos a tristeza geral do País diante, por exemplo, da calamidade da pobreza no nosso País. A gente não sente a tristeza geral de um povo tocado no seu patriotismo, quando a gente sabe que 14 milhões e 200 mil brasileiros adultos não sabem ler e, portanto, não são capazes de conhecer a própria bandeira do país deles, do nosso País, porque eles não sabem ler “Ordem e Progresso”. E se não sabem ler “Ordem e Progresso”, não sabem reconhecer a Bandeira, porque a Bandeira do Brasil não é só feita de cores e de desenhos geométricos; a nossa bandeira é feita de cores, desenhos geométricos e um texto escrito. Quem não sabe ler não conhece a Bandeira. Se aquelas letras são misturadas aleatoriamente, o analfabeto pensa que continua sendo a Bandeira. Se escrevemos ali em um idioma estrangeiro “Ordem e Progresso”, ele pensa que continua sendo a Bandeira.

            A gente não vê a tristeza tomar conta do Brasil por causa do analfabetismo que nós temos. E aí o que acontece é que é possível que sejamos campeões daqui a quatro anos, mas daqui a quatro anos não teremos erradicado o analfabetismo, porque, como não há uma tristeza por causa da existência do analfabetismo no território brasileiro, não há o sentimento de superarmos isso e erradicarmos o analfabetismo no Brasil. E ao não haver esse sentimento, essa vontade, essa ânsia de erradicar o analfabetismo, como temos, já, a partir de hoje, a ânsia de ganharmos a Copa de 2014, como não temos a de erradicar o analfabetismo, não vamos conseguir fazer. Eu gostaria de ver a ânsia por conta da tristeza que nós deveríamos ter de que nossas crianças não têm a mesma chance, não têm a mesma oportunidade. Algumas nascem com todas as chances na vida, outras nascem sem quase nenhuma chance na vida. Isso deveria provocar uma tristeza tão profunda quanto a tristeza de perder a Copa do Mundo, mas não provoca. Nós somos capazes de ver as crianças pobres sem escolas, e não sofremos os 190 milhões de brasileiros, no máximo suas famílias. E até as famílias pobres não sofrem com a má escola dos filhos, porque os pais nem escolas tinham, e agora têm um lugar onde colocar a criança.

            Hoje, o Brasil está sofrendo porque não chegou à última etapa, mas os jornais dizem que há pessoas comemorando porque o Ideb, essa nota das escolas brasileiras passou de 4,2 para 4,6. Ou seja, estamos comemorando a reprovação, porque a aprovação só começa de 5 em diante. Nós estamos comemorando, as autoridades brasileiras, sermos reprovados, apenas porque aumentamos um pouquinho a nota anterior de reprovação. É como se o Brasil comemorasse agora termos feito - não sei se realmente fizemos -, vamos supor, um gol a mais do que na Copa de 1996. Perdemos, mas fizemos um gol a mais. Ninguém vai comemorar ter feito um gol a mais se foi desclassificado. No futebol, a gente não comemora a não ser o campeonato. Na educação, a gente comemora sair de 4,2 para 4,6, no ensino fundamental, mantendo, no ensino médio, a nota 3,6.

            Falta patriotismo para nos orgulharmos de um campeonato mundial de educação. Na verdade, falta tanto esse patriotismo, que a gente nem acredita que um dia poderemos conseguir para o Brasil o campeonato mundial de educação.

            Nós aceitamos e não ficamos tristes, como ficamos pela perda da Copa, porque a escola é tão desigual no Brasil. Alguns meninos entram aos 4 e saem aos 25; outros entram aos 7 e saem aos 12. Os que entram aos 4 e saem aos 25 estudam em boas escolas; os que entram aos 7 e saem aos 12, em escolas ruins. Aí vem essa desigualdade.

            E a gente não desperta, pelo nosso patriotismo, para que isso desapareça. Nós não conseguimos sentir em relação à saúde a tristeza patriótica que sentimos, por exemplo, em relação ao futebol. Quantos milhões hoje estão esperando para serem atendidos por um médico porque não há o médico no posto de saúde pública! Quantos estão hoje em fila para serem atendidos e a gente não desperta patrioticamente para dizer “vamos ganhar o campeonato mundial de saúde neste País!” Não despertamos. Despertamos para querermos ganhar o campeonato de futebol daqui a quatro anos, mas por que não ganharmos também um campeonato da saúde que seja daqui a oito, doze ou dezesseis anos, mas sabendo o que fazer a cada ano?

            Todos nós sabemos o nome do Dunga, mas quantos sabem o nome do diretor da escola onde os filhos estudam?

            Por que esse patriotismo tão bonito em relação ao futebol não se repete em relação aos outros aspectos da vida nacional?

            Nós não estamos vivendo o patriotismo de lutarmos para que este País saia da guerra civil em que está, por conta da violência, da violência do tráfico, da violência dos que necessitam e não têm emprego. Nós não fazemos isso. Nós não estamos com o patriotismo de defender as florestas brasileiras que são incendiadas. Comemoramos, às vezes, porque estamos incendiando dezenas de campos de futebol por ano só porque antes queimávamos mais. Comemoramos queimar menos, mas não lutamos para não queimar.

            Imagine a tragédia que aconteceria neste País se a gente fosse queimar os campos de futebol, derrubar as quadras de futebol... Mas a gente derruba, queima as florestas e não há um despertar do patriotismo.

            Nós não despertamos nosso patriotismo para protegermos os povos indígenas, para protegermos as crianças, para protegermos as mulheres que sofrem violências. Nós não lutamos com o nosso patriotismo para que as prisões onde estão os presos, seja qual foi o crime que eles cometeram, tenham condições dignas. Que continuem presos, sim, porque cometeram crime, mas não precisamos manter a tortura permanente de prisões como as que temos no Brasil.

            Sr. Presidente, era simplesmente isto que eu queria lembrar: a beleza que senti, apesar do sofrimento que também senti, mas a beleza de saber que o povo inteiro, 190 milhões, está unido nesse sentimento trágico, que nós todos estamos unidos.

            Tem uma beleza na estética dessa tristeza, mesmo que o sentimento nos traga uma dor.

            Vamos ver se a gente desperta também para as outras dores dos campeonatos que nós perdemos neste País todos os dias, todos os minutos: o campeonato de toda criança na escola, de toda escola de qualidade; o campeonato de uma saúde, onde não haja necessidade de fila para ser atendido; o campeonato da proteção ambiental, onde nossas florestas não sejam queimadas, as águas não sejam poluídas; o campeonato de um país sem guerra civil.

            Vamos despertar!

            Vamos trazer, sem perder, o patriotismo que temos pelo futebol e darmos esse patriotismo para outros aspectos da vida nacional.

            Vamos nos alegrar quando ganharmos a Copa, mas vamos nos alegar quando ganharmos um campeonato de saúde, de educação. E vamos sofrer quando perdermos uma Copa, mas vamos sofrer também quando vemos a derrota, todos os dias, por conta de outras copas que estamos perdendo do ponto de vista do campeonato da civilização, do campeonato do bem-estar de um povo, do campeonato dos direitos de um povo.

            Soframos, e vamos sofrer ainda muitos dias. Sintamos a dor, sintamos percebendo a beleza de sermos um povo que, unido, sofre. O sofrimento é duro, mas a união é bela.

            Vamos sofrer essa união com a alegria de sermos unidos. E, ao mesmo tempo, como disse o Presidente Sarney, dizer que os jogadores fizeram o possível, que o técnico fez o possível, que não tem de jogar culpa em ninguém por termos perdido. Time perde, não tem jeito de time não perder. Eles lutaram ali dentro de campo, fizeram o possível.

            Vamos fazer o possível neste imenso campo de futebol de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, neste imenso time de 190 milhões de pessoas, nós, todos, jogadores, querendo ganhar o campeonato de uma civilização onde, nós, os brasileiros, sintamo-nos não apenas unidos, mas bem. Isso é possível. Pode não ser tão rápido como ganhar a Copa daqui a quatro anos, talvez leve 20 anos, mas é possível. E a condição fundamental é sentirmos que é necessário e é possível, que é possível e é necessário, e que é a união de todos nós, união que hoje nos faz sofrer, é a união que nos faz sofrer pelo que há de errado que poderá fazer com que nós tenhamos isso que se chama de o repto, sair do mau e chegar ao bom. Usar os recursos que nós temos para conseguirmos que o Brasil seja o grande País que pode ser, mas que só o será se isso chamado patriotismo que a gente tem pelo futebol chegar aos outros aspectos da vida nacional.

            Aprendamos com a derrota que sofremos hoje. Aprendamos com o futebol, que o Brasil pode ser campeão de muitas outras disputas com o mundo inteiro e até mesmo disputas entre nós próprios, brasileiros.

            O SR. PRESIDENTE (José Sarney. PMDB - AP) - Muito obrigado a V. Exª. Eu acho que V. Exª traz aporte a uma grande e profunda reflexão que todos devemos fazer.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Muito obrigado.

            O SR. PRESIDENTE (José Sarney. PMDB - AP) - Eu mesmo já tive oportunidade de escrever a respeito disso: que éramos pentacampeões, mas que a África do Sul já tinha dois prêmios Nobel de Literatura; tem também dois da Paz, que são Desmond Tutu e o Mandela; e tem um de Ciência, que foi o Dr. Barnard, o pioneiro na troca de corações.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Foi um artigo seu na Folha.

            O SR. PRESIDENTE (José Sarney. PMDB - AP) - Eu escrevi a respeito disso. Mas V. Exª traz essa reflexão ao Plenário desta Casa, que eu acho importante. Nós não podemos aspirar a ser uma potência militar, científica ou de qualquer natureza se não formos uma potência cultural e educacional, causa a qual V. Exª tanto se dedica.

            E, ao encerrar a sessão, quero uma vez mais associar o Senado à tristeza do povo brasileiro neste dia, ao mesmo tempo em que nós temos a esperança de que o futuro nos reserve também grandes vitórias nesta área.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 03/07/2010 - Página 32531