Discurso durante a 125ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexão sobre proposta de emenda à Constituição, de iniciativa de S.Exa., que visa a alterar a redação do caput do artigo sexto da Constituição Federal, de modo a que os direitos sociais ali previstos constem como "essenciais à busca da felicidade".

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
CONSTITUIÇÃO FEDERAL.:
  • Reflexão sobre proposta de emenda à Constituição, de iniciativa de S.Exa., que visa a alterar a redação do caput do artigo sexto da Constituição Federal, de modo a que os direitos sociais ali previstos constem como "essenciais à busca da felicidade".
Publicação
Publicação no DSF de 10/07/2010 - Página 35430
Assunto
Outros > CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Indexação
  • RELEVANCIA, PROPOSTA, EMENDA CONSTITUCIONAL, INCLUSÃO, DIREITOS SOCIAIS, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, REQUISITOS, BUSCA, INTERESSE PARTICULAR, VIDA HUMANA, JUSTIFICAÇÃO, POSSIBILIDADE, AMPLIAÇÃO, CONSCIENTIZAÇÃO, DIREITOS, CONCLAMAÇÃO, UNIVERSIDADE, ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL (OAB), DEBATE, ASSUNTO.
  • IMPORTANCIA, PROGRAMA, AUXILIO FINANCEIRO, ESTUDANTE, IMPLANTAÇÃO, GESTÃO, ORADOR, GOVERNADOR, DISTRITO FEDERAL (DF), EXTENSÃO, AMBITO NACIONAL, PROMOÇÃO, BEM ESTAR SOCIAL, DIGNIDADE, CIDADÃO, ELOGIO, INICIATIVA, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, AUSENCIA, ALTERAÇÃO, NOME, PROGRAMA ASSISTENCIAL, RENDA MINIMA, VINCULAÇÃO, EDUCAÇÃO.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, aproveito esta manhã de sexta-feira para começar meu discurso, lembrando que, já há alguns bons anos, no começo do meu Governo no Distrito Federal, logo depois de ter implantado o Bolsa Escola - foi feita nos primeiros dias do meu Governo essa implantação -, pagávamos um salário-mínimo para que as famílias tivessem seus filhos na escola, e as famílias não recebiam o benefício se quaisquer dos seus filhos perdessem mais de dois dias de aula naqueles mês. Eu tinha acabado de implantar esse programa - naquela época, houve muitas resistências, críticas, ironias - e comecei a procurar, Senador Geraldo, crianças fora da escola, comecei a visitar os familiares. Lembro-me de uma mãe que disse que não ia tirar a criança do trabalho em troca dessa bolsa para que os filhos estudassem. Ela me disse isso com argumentos muitos fortes: “Não sei quanto tempo vai durar esse programa, não sei se o próximo governador não vai acabar com ele, não sei se ele vai aprender qualquer coisa. Além disso, ele não gosta de estudar”. O menino, creio, tinha uns doze anos. Senador Geraldo Mesquita, consegui convencer essa mãe a mudar de ideia, mas não pelo dinheiro, Senador. Eu consegui fazer isso, usando uma palavra, a palavra de que a criança, indo para a escola, tinha mais condições de buscar a felicidade. O interessante é que a lei que criou o Bolsa Escola não falava em felicidade, falava em escola, falava no direito à educação. Mas o convencimento só veio quando falei em “felicidade” do filho. Eu não disse que o filho seria feliz por estudar, mas eu disse que, ao estudar, ele tinha mais condições de buscar a felicidade.

            Aquilo ficou esquecido. Confesso que foi um argumento usado na hora, nem um pouquinho elaborado ali nem com o tempo, até que, bem recentemente, fui procurado por um grupo de artistas, de intelectuais e de publicitários que criou um movimento chamado “Mais Feliz”, cuja ideia era a de colocar dentro do nosso documento maior, a Constituição, a palavra “felicidade”. O objetivo era colocar na Constituição a palavra “felicidade”, como existe em outras constituições do mundo. E encontramos uma maneira simples de fazer isso. No art. 6º da Constituição, que trata dos direitos sociais, está escrito: “Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância [...]”. São direitos! São direitos sociais! Fizemos uma proposta de mudança, incluindo três palavrinhas, que dizem : “São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde [...]”. E surgiu um grande debate, que estou levando com muita satisfação, porque, se a Constituição fosse um documento privado, eu colocaria também que é essencial buscar a felicidade, debater ideias e lutar para realizá-las.

            Estou sentindo o maior prazer em ver a resistência de muita gente, a ironia de muita gente a essa proposta de emenda à Constituição que põe ali a palavra “felicidade”, que põe ali a ideia - vejam bem! - de que os direitos sociais são essenciais à busca da felicidade. É claro que incomoda a quantidade de pessoas que vêm debater sem conhecer e que dizem: como garantir felicidade às pessoas na Constituição? Ninguém vai garantir felicidade às pessoas na Constituição. Aí é extrapolar o ridículo. Ninguém vai garantir nem mesmo que os direitos sociais tragam a felicidade. A única coisa que se diz é que os direitos sociais são essenciais, não são suficientes. Mas ainda se deve ter o cuidado de dizer: nem mesmo são essenciais à felicidade, são essenciais à busca da felicidade. E falemos com franqueza: é fácil buscar a felicidade sem ter onde morar? É fácil buscar a felicidade sem ter um atendimento médico, que poderia salvar a vida? E se a pessoa morre? É possível buscar a felicidade sem um emprego que assegure uma renda? Não, isso não é possível. A busca da felicidade exige como condições essenciais os direitos sociais. Por isso, essa PEC.

            Senadores, isso tem uma dimensão maior do que o que está aparecendo. Na verdade, o que a gente está tentando fazer é humanizar o Direito. O Direito ficou frio, o Direito ficou uma coisa da racionalidade, o Direito perdeu o sentimento que deveria ter, desumanizou-se. Falar que a educação é um direito social é uma maneira política de fazer e de falar. Dizer que a educação é um direito essencial à busca da felicidade é humanizar o Direito, é humanizar a política. Uma das tragédias que a gente vive na política brasileira é a sua desumanização, é a frieza como ela é tratada, é até - eu diria - a aritmetização da política, em que os êxitos são medidos pelo número de votos, não pelo que resulta depois graças ao número de votos que têm os que vencem.

            Precisamos humanizar a Constituição brasileira, precisamos humanizá-la para tocar o coração com a palavra “felicidade”, não tocar apenas ao cérebro com o conceito de direito social. É isso que a gente vai tentar fazer, é isso que está dando essa ótima briga, essas incompreensões que já vivi em outros momentos, como o da própria ideia da Bolsa Escola, quando foi formulada, Senador Mozarildo. A Bolsa Escola não era entendida de jeito nenhum, era ridicularizada, criticada, até que hoje virou, embora deturpada, o maior programa de rede de proteção social do Brasil e talvez até do mundo. Deixou de ser um instrumento de ascensão social, como era no começo, mas virou um instrumento de proteção social, o que é melhor do que não haver o programa. Mas a Bolsa Escola também carregou um sentimento humanista, carregou sentimento. Não foi uma ideia apenas racional de que é preciso que as crianças estudem, não. Com esse programa, o que se diz é: estudar é tão importante que justifica pagar um salário às famílias, para que seus filhos não trabalhem.

            Esse foi o gesto de humanização, e é isso que terminou contaminando a população, que aceitou tão bem esse programa, que ele, hoje, é o carro-chefe do processo eleitoral brasileiro. O Presidente Lula põe isso como grande projeto para justificar a candidata Dilma, e o opositor está dizendo que vai aumentar o número. Estão disputando qual dos dois - PT ou PSDB - foi o padrinho, o pai da ideia. Aproveito para dizer que, nesse sentido, não foi o Governo Fernando Henrique. O Governo Fernando Henrique teve o imenso mérito de pegar uma ideia de Brasília, que também estava sendo testada, mas de forma diferente, em Campinas. Em Campinas, o programa era mais para Bolsa Família do que para Bolsa Escola, tanto que era administrado pela Secretaria da Assistência Social. Em Brasília, era administrado pela Secretaria de Educação. O Presidente Fernando Henrique teve o grande mérito de pegar um pequeno projeto e de levá-lo para o Brasil. E o mérito foi o de que, como ser humano, pegou, com dignidade, uma expressão criada por um militante - que era eu, que fazia oposição a ele, pois eu era do PT - e manteve o mesmo nome. Fernando Henrique teve uma generosidade política raramente vista: manter o nome de um programa criado por um militante, um político de outro Partido, de um Partido da oposição. Se Fernando Henrique tivesse usado um nome diferente de Bolsa Escola, ninguém mais falaria em Bolsa Escola neste País. Foi ele, ao agarrar o nome de Brasília e colocar para o Brasil, que consolidou esse nome. Mas, ao mesmo tempo em que faço elogio, preciso dizer: passei cinco anos mandando cartas ao Presidente Fernando Henrique até ele decidir pôr o programa em marcha. Antes da posse dele, em novembro, eu, eleito Governador - ele tinha sido eleito Presidente -, fui ao escritório dele, levei a proposta e lhe dei de presente meu livro A Revolução nas Prioridades, em que está a ideia do Bolsa Escola. Depois, enviei cartas para ele, para o Ministro, e nunca deram a menor atenção. Só no seu segundo mandato dele é que ele pôs em prática a ideia.

            Mas esse é um parêntese na minha fala aqui, Senador Mozarildo, sobre a necessidade da humanização dos conceitos de direito. Ao ficar apenas no espaço da política, os direitos sociais deixaram de seduzir as pessoas, os direitos deixaram de passar o sentimento que eles deveriam representar, os direitos se desumanizaram. A educação, a segurança, a previdência passaram a ser conceitos apenas do espaço político.

            Tomemos o exemplo há pouco falado da previdência. A gente discute a previdência como se fosse algo apenas de aritmética das finanças públicas. A gente não está discutindo do ponto de vista do sentimento dos velhinhos que ficam sem a renda. Se tivéssemos o sentimento dos velhinhos sem a renda, analisaríamos as finanças públicas diferentemente, a gente não perguntaria: aumenta ou não aumenta o salário do aposentado? A gente perguntaria de onde tiramos o dinheiro para fazer o aumento dos aposentados. Mas não perguntamos de onde tiramos o dinheiro para pagar os aposentados; perguntamos como vamos equilibrar as finanças, pagando os aposentados. Está errado! Perdemos o sentimento. Se, como estou propondo com essa PEC, estivesse escrito no art. 6º da Constituição que “os direitos sociais são essenciais à busca da felicidade, inclusive a previdência”, qualquer velhinho poderia dizer: estou buscando o direito de buscar a felicidade. Isso traz a dimensão humana, humaniza o conceito de direito social. É isso o que a gente está querendo.

            Esse debate é ótimo. Creio que ele deve demorar mais. Estou propondo às universidades começarem a debater não apenas essa minha proposta de emenda constitucional num artigo. Não! Agora, quero levantar o debate para a seguinte questão: como humanizar o texto da Constituição brasileira em todos os seus artigos, como dar sentimento à Constituição? Quando a gente vê a Bandeira do Brasil, a gente sente. Quando a gente lê a Constituição, a gente pensa. Não pode ser assim. A gente tem de ter sentimento ao ver a Bandeira, ao ouvir o Hino, e a gente tem que ter sentimento ao ler a Constituição. Mas, como está escrita hoje, a Constituição não passa a menor dimensão de sentimento, mas passa frieza de direitos.

            É preciso manter os direitos, humanizando-os, e guardar a racionalidade do texto, dando-lhe sentimento. É isso que a gente quer com essa proposta de emenda à Constituição, com estas pouquinhas palavras, que dizem: “são direitos sociais, essenciais à busca da felicidade”. Queremos colocar a expressão “essenciais à busca da felicidade”, só isso, dentro do artigo dos direitos sociais, para humanizar o artigo dos direitos sociais, para dar sentimento aos direitos sociais, para tirar a frieza de direitos vistos apenas como coisa da política e para passar a dizer que é uma coisa da alma do Brasil.

            É preciso colocar o sentimento de que, ao não ter educação, a criança terá mais dificuldades para buscar sua felicidade. Uma coisa, como mostrei no começo da minha fala, é convencer uma mãe a usar o direito social de seu filho à educação; outra coisa é convencer a mãe de que, usando esse direito social, seu filho terá uma condição melhor de buscar a felicidade. Isso aconteceu anos atrás, quando fiz esse convencimento de uma mãe. Mas não dá para a gente conversar com cada uma.

            Vamos colocar isso no texto da Constituição, mas vamos colocar isso não só nesse artigo. Vamos, sim! Esse é o desafio que estou lançando às universidades brasileiras, aos cursos de Direito, a todos eles, independentemente de serem ou não de universidades, e à própria Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). É o desafio que estou propondo: como humanizar, como dar sentimento aos textos dos artigos da nossa Constituição?

            Fiz minha parte, graças à inspiração desse grupo chamado Mais Feliz - eu não teria tomado a iniciativa se não fosse a busca que eles fizeram a mim -, graças também àquela senhora que encontrei lá atrás, cujo filho, hoje, já deve ser um homem grande. Ela entendeu que a escola era importante não apenas porque a criança tinha o direito a ela, mas porque ela era condição essencial para que seu filho buscasse a felicidade. Não era uma condição para que ele tivesse a felicidade, não; era condição apenas para que ele pudesse buscar a felicidade. Nem era um direito à felicidade, era apenas um direito à busca da felicidade.

            Creio que está na hora de discutirmos mais como humanizar os textos jurídicos, como humanizar os direitos sociais, como humanizar a política, como tirar a frieza com que tratamos os problemas do povo. A maneira é usar palavras do sentimento, não apenas palavras do Direito. “Direito social” é uma expressão corretíssima do ponto de vista lógico, mas insuficiente do ponto de vista do sentimento. Nem passa humanismo nem humanidade, passa apenas política, política fria. A palavra “felicidade”, ao contrário, passa humanidade, passa humanismo, passa sentimento. Por isso, ela é importante, e, por isso, a gente vai lutar por essa PEC. Por isso, vamos defender - e espero que se transforme num verdadeiro movimento - que os direitos sociais, que têm de ficar explicitados na Constituição, são essenciais à busca da felicidade. E vamos levar adiante o debate, para humanizarmos o texto não apenas do art. 6º da Constituição, mas de todos os artigos, onde for possível, da Constituição.

            Era isso, Senador Mozarildo, que eu queria falar. Ao mesmo tempo, eu o parabenizo pelo seu discurso, bem como parabenizo Boa Vista pelo aniversário!

 

            


Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/07/2010 - Página 35430