Discurso durante a 120ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentários acerca da Lei da Ficha Limpa.

Autor
Valter Pereira (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/MS)
Nome completo: Valter Pereira de Oliveira
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
LEGISLAÇÃO ELEITORAL.:
  • Comentários acerca da Lei da Ficha Limpa.
Publicação
Publicação no DSF de 08/07/2010 - Página 34539
Assunto
Outros > LEGISLAÇÃO ELEITORAL.
Indexação
  • CRITICA, DIFICULDADE, APLICAÇÃO, LEGISLAÇÃO, INELEGIBILIDADE, IMPUGNAÇÃO, CANDIDATURA, GOVERNADOR, ACUSADO, MALVERSAÇÃO, FUNDOS PUBLICOS, LEITURA, ARTIGO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, COMPETENCIA, UNIÃO FEDERAL, DEFINIÇÃO, NORMAS, LEGISLAÇÃO ELEITORAL, ACUSAÇÃO, ORADOR, INCONSTITUCIONALIDADE, DEPENDENCIA, ASSEMBLEIA LEGISLATIVA, AUTORIZAÇÃO, INVESTIGAÇÃO, GOVERNANTE, ESTADOS.
  • ELOGIO, INICIATIVA, PROCURADOR GERAL DA REPUBLICA, APRESENTAÇÃO, AÇÃO DIRETA, INCONSTITUCIONALIDADE, DISPOSITIVOS, CONSTITUIÇÃO ESTADUAL, PROTEÇÃO, GOVERNADOR, LEGISLAÇÃO, INELEGIBILIDADE, MANIFESTAÇÃO, ORADOR, EXPECTATIVA, DECISÃO, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF).
  • APOIO, PROPOSTA, EMENDA CONSTITUCIONAL, AUTORIA, DEMOSTENES TORRES, SENADOR, EXTINÇÃO, IMUNIDADE, GOVERNADOR.

            O SR. VALTER PEREIRA (PMDB - MS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, a Lei da Ficha Limpa gerou a expectativa de que um amplo saneamento poderia ser feito no universo político já a partir desta eleição. É exatamente isso o que pretendo analisar depois de reflexões que fiz sobre os termos desse novo diploma legal.

            De fato, a sanção de inelegibilidade tornou-se mais ameaçadora para quem cometeu deslizes com o Erário e foi responsabilizado por isso.

            À primeira vista, o que se vislumbra é que a lei é abrangente e implacável, podendo suspender direitos políticos de um simples funcionário público ao mais influente Senador da República. No entanto, quem imagina que a nova regra vai promover todo esse saneamento poderá desapontar-se.

            Nesta intervenção, Sr. Presidente, não vou nem me ocupar na avaliação de supostos vícios de inconstitucionalidade, mas não tenho dúvidas de que questionamentos nesse sentido serão arguidos perante o Supremo Tribunal Federal. As primeiras decisões da Corte Constitucional, socorrendo candidatos que seriam atingidos já neste pleito, são sintomáticas e elas não seriam prolatadas se os magistrados não encontrassem, pelo menos, a fumaça do bom Direito.

            Porém, não é isso o que pretendo debater agora. Meu objetivo, neste momento, é mostrar que a redação da lei está distante da perfeição. Apesar da legitimidade que lhe fora dada por quase dois milhões de assinaturas, o projeto deixou brechas pelas quais alguns poderão escapar.

            É o caso de governadores de Estado, por exemplo, que respondem a ação penal. Acontece que as Constituições estaduais os contemplaram com uma espécie de imunidade funcional. Pela norma, eles só podem ser processados criminalmente mediante prévia autorização das respectivas Assembleias Legislativas.

            Ora, para quem conhece a relação estabelecida entre Executivo e Legislativo estadual, não sobra dúvida de que esse consentimento raia à ficção. Assim, se as Assembleias negam autorização prévia, os governadores não podem sequer ser investigados. Não sendo processados, jamais poderão ser condenados, quer provisória, quer definitivamente. Livres de processos, livres de condenação, pelo menos enquanto exercerem o mandato. Conclusão: estão todos eles imunizados contra a chamada Lei da Ficha Limpa. Pode existir até alguma exceção, mas a regra geral é proteger a figura, a pessoa do governador.

            No recente episódio do Distrito Federal, o afastamento só se deu em razão de uma inédita mobilização popular. Graças às pressões das ruas, que contagiaram até o Judiciário, foi decretada a cassação do Governador Roberto Arruda. Mas o afastamento dele não se deu pelas denúncias de improbidade ou por qualquer um dos crimes a ele imputados e que foram fartamente noticiados. Na verdade, a perda do seu mandato decorreu de uma sanção imposta por uma falta menor, por um pecado venial. Foi uma punição por infidelidade partidária, circunstância que dificilmente se sustentaria numa Corte Superior. Como ele não recorreu da decisão, consolidou-se a cassação do Tribunal Regional do Distrito Federal.

            O fato é que a proteção dada pelas Assembleias Legislativas a governadores é um privilégio injustificável nos dias atuais. Um privilégio que pode impedir a apuração de falcatruas e negar ao eleitor o direito de conhecer a verdadeira ficha de quem o governa. Com efeito, pode alcançar até quem foi governador, mas quem está no exercício do mandato, na prática, não pode sequer ser processado. Até a denúncia de grave crime contra a administração pública está fadada a permanecer congelada.

            Graças a essa blindagem, governadores podem concorrer à reeleição ou à eleição para cargo diferente sem ser molestado pelo Poder Judiciário. E o eleitor nem fica sabendo de nada, já que tais processos ensejam outra regalia, que também não é a regra geral, mas é concedida, sim: o chamado segredo de justiça!

            Assim, nem a mais peluda das denuncias terá o condão de macular a ficha protegida pela imunidade concedida pela Assembleia Legislativa. Com certeza, os defensores dessa prerrogativa hão de proclamar que ela se insere na autonomia dos Estados, e é sobre isso que alimento sérias duvidas. Inicialmente por entender que autonomia não se confunde, nunca se confundiu com soberania; e a soberania política só é e só pode ser exercida pela União. Os Estados são entes federados que desfrutam de autonomia, sim, mas ela deve obedecer os limites traçados pela Carta Magna do País.

            A Constituição Federal prescreve que é privativa da União a competência para legislar sobre direito eleitoral. A norma está no art. 22. É elementar o juízo de que as condições de elegibilidade estão no coração do Direito Eleitoral. Dos diversos parágrafos que dispõem sobre esse título, no art. 14, da mesma Carta Magna, é importante atentar para a redação do § 9º, assim explicitada:

Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

            Já o incido V do art. 15 prescreve a perda ou suspensão dos direitos políticos na hipótese de improbidade administrativa nos termos do art. 37, § 4º.

            Resta inquestionável, Sr. Presidente, que a antiga Lei nº 64/90, quanto aos termos que foram acrescidos a ela pela Lei da Ficha Limpa, tem o crisma da constitucionalidade.

            Nessas alturas, cumpre uma indagação: sendo a Constituição Federal a lei suprema do País, não estamos todos - indivíduos e instituições - subordinados aos seus ditames, aos seus comandos? Se a Carta Magna e a Lei Complementar não autorizam a aplicação dessa imunidade ao governador, o favor previsto nas constituições estaduais é uma usurpação aos Poderes da União. Mais do que um conflito de competência, é a frustração de sanções moralizadoras a maus administradores, cuja aplicação depende de investigações e de adequada ação judicial.

            Manter governadores imunes é transformar o poder num alvará para a rapinagem; a isonomia, num deboche; e a lei, em ficção do direito. Nossa lei estrutural já reserva aos governadores uma relevante prerrogativa de função: o foro privilegiado - está no § 1º do art. 105 da Carta Magna.

            Por seu turno, de que adianta a Constituição Federal proteger a probidade administrativa e a moralidade, no exercício do mandato, se são mantidas intactas tais restrições impostas pelas assembleias estaduais? E vejam que o legislador constituinte, quando deu ao governador o foro privilegiado do Superior Tribunal de Justiça, automaticamente já deu o sinal de que o julgamento tem que ser feito aqui. Se o julgamento tem que ser feito aqui, pelo STJ, por que é que a assembleia tem que autorizar?

            A Secretaria da Corte Especial do STJ revela o que isso tem representado. Em março de 2009, havia 110 ações penais contra autoridades que têm foro especial, entre as quais 11 governadores. Eles respondem a 26 ações penais, 20 das quais aguardam autorização das Assembleias Legislativas para ter seguimento e outras já estão arquivadas, porque as Assembleias já negaram autorização.

            Enquanto governadores não forem tratados como os demais mortais, a busca por essa tarefa saneadora será incompleta. Um passo importante nesse sentido foi dado pelo ilustre Procurador-Geral da República, jurista Roberto Gurgel. O diligente representante do Ministério Público propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade, que aguarda decisão do Supremo Tribunal Federal.

            A iniciativa merece aplauso não só do Congresso, mas de toda a sociedade organizada, já que vai na trilha da transparência e do respeito à coisa pública. No passado, o próprio Congresso já foi beneficiário da imunidade parlamentar. Em momento de grande lucidez, Deputados e Senadores cortaram a própria carne e acabaram com o privilégio. Foi através da Emenda Constitucional nº 35, de dezembro de 2001, que o Parlamentar deixou de ser intangível. O mesmo destino precisa ser dado a idênticas regalias que ainda beneficiam uns poucos príncipes recalcitrantes.

            Aqui no Senado Federal, Sr. Presidente, ainda hoje, numa discussão na Comissão de Constituição e Justiça, nós tivemos conhecimento de que o Senador Demóstenes Torres é autor de uma PEC que tem o objetivo claro, direto de acabar com esse privilégio. E aqui, neste pronunciamento, quero falar do nosso apoio e do nosso engajamento, porque essa será também a contribuição do Congresso para que a nossa sociedade seja mais igualitária, para que a nossa sociedade trate com mais igualdade os atores que fazem a política e que tomam as decisões neste País.

            Era o que eu tinha a dizer, Sr. Presidente.

            Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/07/2010 - Página 34539