Discurso durante a 165ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Apelo em favor dos que são soterrados pelo analfabetismo no Brasil, a propósito do resgate de 33 mineiros soterrados em uma mina no deserto do Atacama, no Chile.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. EDUCAÇÃO.:
  • Apelo em favor dos que são soterrados pelo analfabetismo no Brasil, a propósito do resgate de 33 mineiros soterrados em uma mina no deserto do Atacama, no Chile.
Aparteantes
Valter Pereira.
Publicação
Publicação no DSF de 15/10/2010 - Página 47255
Assunto
Outros > HOMENAGEM. EDUCAÇÃO.
Indexação
  • CUMPRIMENTO, RESGATE, TRABALHADOR, MINAS, PAIS ESTRANGEIRO, CHILE, ELOGIO, GOVERNO ESTRANGEIRO, ENGENHEIRO, SOLIDARIEDADE, AMBITO INTERNACIONAL, OPERAÇÃO.
  • REGISTRO, QUANTIDADE, ANALFABETO, MUNDO, ESPECIFICAÇÃO, BRASIL, DEFESA, PRIORIDADE, COMBATE, ANALFABETISMO, JUSTIFICAÇÃO, CAPACIDADE, RECURSOS FINANCEIROS, TECNOLOGIA, CONCLAMAÇÃO, URGENCIA, INICIATIVA, CONTRIBUIÇÃO, POSSIBILIDADE, CIDADÃO, LEITURA, BULA, MEDICAMENTOS, SINALIZAÇÃO, ONIBUS, NOME, VIDA PUBLICA, ATUAÇÃO, DIGNIDADE, VIDA HUMANA.

                          SENADO FEDERAL SF -

            SECRETARIA-GERAL DA MESA

            SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Obrigado, Senador Suplicy. Eu venho falar, Senador Suplicy, desse mesmo assunto, Senador Valter, que tem tomado conta do nosso imaginário, da nossa cabeça, dos nossos corações, que é esta operação maravilhosa, assistida por um bilhão de pessoas, de salvamento de 33 mineiros no Chile.

            Mas eu venho falar, Senador Suplicy, talvez pela minha obsessão, talvez pela minha mania, talvez pela nota só que eu costume tocar, eu venho falar sobre a nossa insensibilidade, no mundo inteiro...

            O Sr. Valter Pereira (PMDB - MS) - Permita-me um aparte, Senador Cristovam. Eu vou ter de me afastar desta sessão, mas eu não poderia fazê-lo sem antes cumprimentar V. Exª pelo exuberante resultado que obteve das urnas. Às vezes, a gente analisa o que aconteceu no País e tem alguns desapontamentos, algumas decepções; mas, em alguns casos, vê-se a justiça se pronunciar como foi a reeleição de V. Exª. Indiscutivelmente V. Exª representou, com extraordinário brilho, a população do Distrito Federal e recebeu o reconhecimento. V. Exª bem disse, aí, às vezes é chamado de o Senador de uma nota só. Só que a nota que V. Exª enfatiza é talvez a mais relevante de todas, porque é aquela que abre os caminhos para a verdadeira emancipação de cada cidadão, a verdadeira emancipação de cada indivíduo. Portanto, as minhas homenagens. Associo-me à alegria que, certamente, tomou conta de V. Exª e cumprimento a população do Distrito Federal pelo acerto de sua escolha.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Senador Valter, o senhor me criou um problema. Porque depois do seu pronunciamento, eu estou com vontade de descer para guardar só o que o senhor disse. Falando, eu vou poluir essa fala. Eu gostaria muito de guardar esse seu pronunciamento como uma única coisa desta tarde. Muito obrigado, Senador. É muito bom ouvir isso. É muito bom mesmo.

            De qualquer maneira, Senador Suplicy, Senador Nery, que fico feliz de tê-lo aqui. Eu estava dizendo que - pela nota só de que o Senador Valter falou - quero falar de outros soterrados. Os soterrados que não provocam nosso sentimento, que não faz com que nós trabalhemos no sentido de tirá-los lá de baixo da escuridão onde estão. Eu falo dos soterrados no analfabetismo. O mundo inteiro olhou, tenso, torcendo e riu contente, emocionado - o mundo inteiro - depois que o último dos chilenos foi retirado lá do fundo daquela mina de San José. Mas, hoje, o mundo inteiro tem 800 milhões de pessoas maiores de 15 anos caminhando na superfície do planeta, mas vivendo num certo grau de escuridão pela incapacidade de decifrar o que está escrito ao redor dele.

            Senador Eurípedes o analfabetismo provoca uma escuridão, impede que a pessoa viva plenamente; não falta o oxigênio químico, que dá a vida biológica, mas falta, sim, o estimulante, o combustível da vida intelectual sem a qual é difícil se sobreviver no mundo moderno.

            A pessoa que não sabe ler sobrevive do ponto de vista da vida biológica, mas não sobrevive plenamente, porque nós seres humanos somos feitos de uma vida ao nascer e de um nascimento ao entrar na escola; nós nascemos duas vezes. Os outros animais nascem uma única vez biologicamente. Nós nascemos duas: ao sair de dentro da barriga da mãe da gente e ao entrarmos na escola onde vamos começar o nosso desenvolvimento intelectual. Claro que há exceções, pessoas que têm essa capacidade de desenvolvimento independentemente de escola, mas é muito raro. Claro que existem pessoas analfabetas profundamente sábias e até muitos doutores estúpidos. Mas é muito rara a capacidade de virar um sábio no mundo moderno sem ler tudo aquilo que outros sábios e até alguns não sábios escreveram.

            Por isso, eu quero falar hoje, ao mesmo tempo em que homenageio o governo chileno, homenageio os técnicos chilenos, homenageio os socorristas - assim traduzidos na televisão -, chilenos que entraram naquela profundidade para ajudar a sair os que lá estavam. Ao mesmo tempo, manifesto meus cumprimentos a esses. O meu orgulho de ser humano que viu o esforço de um governo, de uma população e do saber da engenharia e da geologia para retirar aqueles que iriam perecer em pouco tempo mais. Ao mesmo tempo em que os homenageio, manifesto o meu orgulho, a minha alegria, porque - talvez pouca gente saiba - sou engenheiro mecânico de formação e não posso deixar de dizer que eu senti orgulho de uma profissão que aliás eu abandonei muito cedo para seguir outra. E como a engenharia é capaz de fazer milagres.

            Mas eu quero refletir, Senador José Nery, é sobre o fato de que raramente a tecnologia tem compromisso com o coração; a tecnologia tem compromisso com o bolso, e é isso que nos entristece. Quase todos avanços tecnológicos foram feitos para aumentar lucro de empresas e não alegria dos povos.

Até remédios, aparelhos cirúrgicos não são inventados no mundo de hoje pela saúde que trazem, mas, sim, pelo lucro que propiciam às empresas que os inventam e os produzem. Ali, naquele deserto de Atacama, a gente viu a engenharia, a tecnologia a serviço do coração, da emoção, da solidariedade. E é essa tecnologia que já temos que não estamos usando para retirar da escuridão, retirar do soterramento os milhões de seres humanos, 800 milhões [de analfabetos] que há na terra.

            O maior engenheiro das letras, pelo menos no século XX, foi Paulo Freire, um brasileiro. E é incrível que, sendo brasileiro esse engenheiro maior de todos das letras, tenhamos, no nosso País, 14 milhões de adultos que não são capazes de decifrar as letras. Não estou falando daqueles outros 30 [milhões] que decifram as letras, entendem as palavras, mas não conseguem captar o sentido de uma frase, de um parágrafo ou de uma página, os chamados analfabetos funcionais. Falo daqueles que não são capazes de entender uma palavra escrita porque não percebem que aquela combinação de símbolos significa palavra. Falo, Senador Suplicy, dos 14 milhões que não conhecem a nossa Bandeira porque não sabem ler Ordem e Progresso. Os 14 milhões que, se a gente mistura essas letras, continuam achando que é a bandeira do Brasil, embora deixe de ser a bandeira do Brasil se a gente mistura as letras do Ordem e Progresso ou se escreve de trás para a frente.

            Quero falar aqui dos nossos mineiros, não os nossos mineiros originados em Minas Gerais; não os nossos mineiros que buscam minérios nos subterrâneos das nossas minas; os nossos mineiros ditos metaforicamente, simbolicamente, os nossos cidadãos, concidadãos, conterrâneos nacionais que estão soterrados na escuridão do analfabetismo. Quero pedir que a gente veja como foi possível um país se juntar, canalizar os recursos necessários. E foram muitos. Vi, não sei onde, que gastaram US$120 milhões na operação, e tenho certeza de que o povo chileno gastaria 200, 300, 500, 1 bilhão, se fosse preciso, para salvar aqueles 33 mineiros soterrados.

            Por que a gente não gasta uma parcela, que não é grande, para salvar os nossos mineiros, para tirar os analfabetos adultos da escuridão, para garantir uma escola boa para nossas crianças, para, quando chegarem aos 15 anos, todas serem capazes de não apenas saber ler mas serem leitoras?

            Lembro que ontem foi o Dia Nacional da Leitura, e estamos na Semana Nacional da Literatura, conforme lei originada aqui no Senado, de minha autoria, sancionada pelo Presidente Lula há dois anos.

            Nós precisamos tirar do que houve no Chile não apenas a alegria de saber que a tecnologia, que o saber humano, que a engenharia, tudo isso pode ser usado a serviço da emoção, a serviço do bem estar, a serviço da vida, da solidariedade. Temos esperança, portanto, de que não seja uma regra natural absoluta que a ciência e a tecnologia estão comprometidas com o bolso, com o lucro. A ciência e a tecnologia podem ser comprometidas com o deslumbramento de ver pela televisão, no mundo inteiro, 33 pessoas serem salvas - o deslumbramento que nos trouxe a tecnologia da telecomunicação.

            Usou-se a tecnologia da engenharia e da geologia para fazer um milagre, o milagre completo de furar um túnel de quase setecentos metros exatamente onde se desejava, colocar aquela cápsula, enfiá-la e retirá-la, enfiá-la e retirá-la até não ter mais ninguém perdido ali dentro. É muito mais fácil alfabetizar catorze milhões do que retirar 33 mineiros do fundo de um poço daqueles; leva mais tempo, mas é mais fácil. Tanto é mais fácil, que nós já temos muito mais milhões que sabem ler do que os milhões que não sabem ler; tanto é mais fácil, que nós já temos quase cinco milhões de brasileiros nas universidades.

            Só para comparar, não para defender como estratégia: bastaria que cada universitário alfabetizasse duas pessoas e meia para termos resolvido o problema do analfabetismo. Isso mostra que os recursos que estão à nossa disposição são grandes. Não custa mais do que trezentos reais alfabetizar um adulto. Trezentos eu disse! Trezentos reais é o custo de alfabetizar uma pessoa. Depois custa mais para fazê-la gostar de ler, ter acesso a livros, ser leitora, aí é outra coisa. Simplesmente alfabetizar, porém, consegue-se com trezentos reais para cada pessoa. Multipliquem isso por catorze milhões e verão que não é um número absurdo o custo de se acabar com o analfabetismo. Divida por quatro, cinco ou seis anos, que é o tempo que esse processo poderia levar, e verão que é muito menos do que estamos gastando com coisas em relação às quais ninguém pergunta de onde vem o dinheiro: hidrelétricas, Copas, Olimpíadas e outras coisas mais. Gasta-se muito com a infraestrutura física da economia sem nenhuma preocupação, mas não se gasta para fazer a infraestrutura intelectual - eu diria até espiritual - de um povo por meio da leitura.

            Vamos comemorar, sim, a grande vitória da humanidade, graças aos chilenos, de se retirar 33 mineiros que estavam presos a setecentos metros da superfície, mas vamos fazer um outro esforço também. Vamos tomar a decisão, que nunca um governo tomou no Brasil, de iluminar os catorze milhões que caminham sobre a superfície, mas que vivem na escuridão de não conhecerem o mundo a seu redor; de tomarem um remédio sem saber se é o que devem tomar porque não sabem ler o nome do remédio; de subirem num ônibus sem saberem se vai para onde querem porque não sabem ler o destino daquele ônibus; de não poderem procurar um emprego porque não sabem ler um anúncio no jornal - e se alguém ler para eles, não vão conseguir o emprego porque não sabem ler -; de caminharem em direção ao abismo porque não souberam ler: “Cuidado! Abismo à frente!” - é isto que leva muitos operários da construção a morrerem em acidentes no Brasil: não serem capazes de ler anúncios sobre o risco adiante.

            Não temos estatísticas sobre o número de pessoas que morreram por serem analfabetas. Da mesma maneira que sabemos quantas morrem por não usarem o cinto de segurança no automóvel na hora do acidente, não sabemos quantas morrem por não terem o cinto de segurança que a alfabetização assegura ao permitir ler o que acontece ao redor, ao evitar que se tome veneno no lugar do remédio, ao permitir evitar um caminho que leva a um abismo, como nas construções civis.

            Se somos capazes de nos alegrar com o salvamento de vidas enterradas, precisamos também cuidar para evitar mortes por causa do analfabetismo e evitar o sacrifício que significa ser analfabeto num mundo baseado na letra. Não podíamos conviver com 33 homens enterrados debaixo da terra sob o deserto chileno. Como somos capazes de viver tranquilamente quando pessoas - catorze milhões no Brasil - são soterradas, estão soterradas, vivem soterradas pela incapacidade de viverem plenamente num mundo letrado? Como podemos não ficar tristes quando sabemos que essas pessoas não têm as luzes que as letras trazem? A luz do sol faltou àqueles mineiros, a luz das letras falta aos nossos catorze milhões de analfabetos. Vamos cuidar dos nossos mineiros analfabetos como o Chile cuidou dos seus 33 mineiros soterrados. Não custa muito, não tomaria muito tempo se aqui se tomasse a decisão que lá eles tomaram.

            Obviamente, lá eles tomaram essa decisão pressionados por todos que estavam preocupados, mas aqui não nos preocupamos com o analfabetismo, e esse é o grande problema. Não há uma pressão no sentido de resolver esse problema. Não há mesmo sentimento, sensibilidade para sofrer por esse problema, como nós sofremos quando uma pessoa, só uma, está enterrada em uma caverna debaixo da terra.

            Nós choramos pelas pessoas perdidas numa caverna - felizmente, choramos -, mas não choramos pelas pessoas perdidas nas ruas das nossas cidades porque não sabem ler os nomes daquelas ruas, porque muitas vezes, Senador Suplicy, têm vergonha de perguntar a alguém que passa o nome da rua para não deixar transparecer que não sabem ler a placa que está ali. Esse é um sofrimento muito forte. É menor do que não ter oxigênio para respirar? É menor, dói menos, mas dói mais longamente.

            Nós não temos o direito de comemorar aqui o salvamento dos mineiros chilenos se não fizermos o mesmo com todos os mineiros que temos no Brasil, soterrados de diversas formas. Eu falei da forma mais grave para mim, que é a do analfabetismo, mas há outras também: por falta do remédio para cuidar da saúde; por falta do médico para indicar o remédio; por falta de emprego, o que não permite sobrevivência plena; hoje há também os milhões de soterrados na droga, que é também uma forma de tirar oxigênio, de tirar a vida.

            Nós precisamos cuidar dos nossos mineiros, seguir o exemplo do povo chileno. Parabéns ao povo chileno, mas aprendamos com eles que existem outros soterramentos, menos visíveis, menos dramáticos, mas não menos graves.

            Era isso, Sr. Presidente, o que eu tinha a dizer.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/10/2010 - Página 47255