Discurso durante a 184ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comemoração do centenário de nascimento da escritora Rachel de Queiroz.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL. DIREITOS HUMANOS.:
  • Comemoração do centenário de nascimento da escritora Rachel de Queiroz.
Publicação
Publicação no DSF de 18/11/2010 - Página 50814
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL. DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, ESCRITOR, JORNALISTA, ESTADO DO CEARA (CE), LEITURA, TEXTO, QUESTIONAMENTO, FUTURO, CRIANÇA, ESTADO DE POBREZA.
  • REGISTRO, PROGRAMAÇÃO, TELEVISÃO, FILME DOCUMENTARIO, ADOLESCENTE, USUARIO, DROGA, COMENTARIO, APREENSÃO, PAES, IMPORTANCIA, ATENÇÃO, CRIANÇA, JUVENTUDE, DEFESA, CONTRIBUIÇÃO, PROGRAMA, RENDA MINIMA, CIDADANIA, EXPECTATIVA, CUMPRIMENTO, PROMESSA, DILMA ROUSSEFF, CANDIDATO ELEITO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, COMBATE, FOME, MISERIA, POBREZA.
  • REITERAÇÃO, SOLICITAÇÃO, PRESIDENTE DE REPUBLICA ESTRANGEIRA, PAIS ESTRANGEIRO, CUBA, AUTORIZAÇÃO, PARTICIPAÇÃO, CIDADÃO, DEBATE, SENADO, FILME DOCUMENTARIO, BRASIL, DEFESA, ORADOR, LIBERDADE DE EXPRESSÃO.

                          SENADO FEDERAL SF -

            SECRETARIA-GERAL DA MESA

            SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Prezado Senador José Sarney, Presidente do Senado Federal, Srª Maria Amélia Mello, que aqui representa a Editora José Olympio e amiga pessoal que representa também os amigos e familiares de Rachel de Queiroz. Cumprimento V. Exª, Senador José Sarney, e os Senadores Inácio Arruda, Marco Maciel, Marisa Serrano e Roberto Cavalcanti, que pronunciaram palavras tão belas a respeito da extraordinária escritora Rachel de Queiroz.

            Ainda ontem, muitos provavelmente assistiram ao programa “Profissão Repórter”, a respeito da Cracolândia, em São Paulo. Ali apareceram meninos e meninas, jovens que infelizmente estão envolvidos com a droga, como o crack.

            A reportagem tão bem feita por Caco Barcellos, que dedicou dias e dias, madrugadas para examinar aquele problema tão difícil de ser resolvido, terminou com a imagem e as palavras de um pai que estava há dias buscando a sua filha. Ele, ao final, faz um apelo muito belo e comovente para que sua filha retorne ao lar.

            Fiquei pensando: o próprio Senador Roberto Cavalcanti hoje presidiu uma reunião tão bela a respeito de professores da França e de uma brasileira que é professora na Escócia, que falavam da infância, de crianças adotadas e de como é importante que, desde a primeira infância, até mesmo aquelas pessoas que, às vezes, perdem os seus pais, precisam ter o carinho de alguém para que possamos viver num mundo com paz, com justiça.

            Rachel de Queiroz, tantas vezes, em suas obras, falou a respeito de como as crianças, sobretudo no Nordeste, em meio à seca, aos lugares de dificuldades enormes, precisariam ter melhores oportunidades, maior carinho por parte de todos.

            Há uma de suas crônicas que eu considero notável e que, uma vez, eu já li aqui. E gostaria mais de dedicar o meu tempo às palavras da própria Rachel de Queiroz, lendo um dos seus textos que me parece, inclusive, uma formidável justificativa - eu poderia até colocá-lo como a justificativa -, por exemplo, do projeto da Renda Básica de Cidadania.

            Assim, Sr. Presidente, minha homenagem a Rachel de Queiroz será a leitura de Menino Pequeno.

Ele descia a ladeira e vinha só. De cor era branco, de tez era pálido - dessa brancura descorada de criança que não come vitamina, filho de emigrante pobre que não herdou as cores rosadas de gente da terra velha e não adquiriu ainda o moreno igualitário da terra nova. Num pé só, calçava um acalcanhado sapato de lona. No outro, uma tira negra encordoada, que há tempos fora uma atadura. Vestia uma jardineira azul, que na certa pertencera a um menino mais velho, pois a barra das calças arrastava atrás; os bracinhos nus, ao frio da manhã sem sol, de tão arrepiados eram ásperos, azulados.

É de notar que o pequeno, ao descer assim a ladeira empedrada, não ia à toa, tinha um propósito, embora singular. Porque na mãozinha suja como ele todo, carregava - calculem! - carregava uma rosa. Uma grande rosa cor-de-rosa propriamente dita, tão bela, tão preciosa, dessas que só medram em jardim de governo ou em jardim de rico, pétalas de porcelana, mal desabrochada, formosa, frágil como uma bolha de sabão. E o pequeno, evidentemente, tinha consciência daquela beleza e daquela fragilidade. Pois caminhava de leve, a mão direita que segurava a rosa era mantida rígida, embora um pouco trêmula, e a mão esquerda de vez em quando se erguia à frente para afastar da flor uma rajada de ar, ou qualquer perigo invisível - assim como a gente levanta a mão a fim de proteger a luz de uma vela.

Para onde iria aquele menino com tais cuidados, carregando aquela rosa? Para dar, para entregar, ou para ficar com ela, embriagado pela enamorada alegria de ser dono do que é belo?

Eram oito da manhã. Ele teria no máximo uns seis anos, levando-se em conta a desnutrição, o seu possível raquitismo de garoto pobre. Pois, se não fosse a carinha viva, pelo tamanho a gente diria que não passava dos quatro.

Cruzou comigo, que comprava os jornais na banca, e não levantou os olhos, embebido na flor. Virou a esquina. Depois se sumiu no meio dos transeuntes que iam em busca da feira da Glória.

Quem seria mais frágil, o menino ou a rosa? Ah, quem pode dizer neste país quanto durará um menino? Aquele, aquele azulado pelo frio na sua velha jardineira sem mangas, será que escapa da pneumonia, será que escapa da septicemia com o pé infeccionado dentro da atadura negra, será que escapa do atropelamento, sozinho no meio da rua, absorto na sua rosa, sem ver o lotação matador que o aguarda no atravessar do asfalto, será que escapa da tuberculose assim tão mal comido e mal vestido, será que escapa da vida, menino sem dono, anão perdido na cidade grande?

Vi uma vez uma fita americana chamada “They were expendable”. Tratava de soldados na guerra e o título quer dizer mais ou menos - “eles são para gastar” ou “eles são para jogar fora”. Assim também é menino neste país. Não nasce para nada - nasce para se perder, para morrer, para ser jogado fora.

Tanto trabalho, tanta agonia custa um menino. E mesmo que não custe nada, mesmo que nasça de parto sem dor e se crie sozinho pelas estradas sertanejas, pelos pés de serra, pelas calçadas do Rio; quanto custa a ele viver, quanto vale aquele pequeno milagre de vida que um dia pode chegar a ser homem!

Sim, sei que a gente nasce para morrer. Mas não tão cedo. Não tão depressa que não dê nem para sentir o gosto da vida. Quem se dá ao trabalho de vir ao mundo deveria ter pelo menos um direito garantido - o de sobreviver. Para que, afinal, a gente se organiza em sociedade, para que obedece às leis, para que aceita essa porção de contratos com a civilização - casamento, serviço militar, impostos, moral, semana inglesa, ministério do trabalho, eleição, justiça, polícia - se em troca nem ao menos se garante a chance de viver a um menino que nasce debaixo dessas leis? Ele nasceu perfeito, tinha pernas e tinha braços, tinha coração e fígado, tinha alma e tinha amor dentro do peito, e tinha ternura com a sua rosa. E então por que ninguém lhe assegura, como todos os bichos da natureza aos seus filhotes, o sustento e a proteção enquanto deles carece?

“Rose, elle a vécu ce que vivent les roses...” Ah, a eterna verdade cantada pela boca inocente dos poetas. Quem teria vivido mais, meu Nosso Senhor, aquele menino ou aquela rosa?

            Sr. Presidente, fico pensando aqui nos propósitos comuns que levaram Rachel de Queiroz a fazer esse diagnóstico, que faz lembrar um pouco o diagnóstico que certamente a nossa querida Presidenta eleita Dilma Rousseff colocou para o Brasil, sobretudo.

            Eu ainda me lembro de ter visto, no dia 28 de outubro último, quando ela, aqui no Teatro dos Bancários, ao lado da filha de Josué de Castro, Anna Maria de Castro, que disse: “Olha, querida Dilma, eu vim aqui porque a senhora compreende muito bem aquilo que meu pai, Josué de Castro, dizia; que muitas vezes os homens se organizam para que outros homens vivam na fome e na miséria”. E seria perfeitamente possível que a sociedade humana se organizasse para que não houvesse mais fome e miséria, como retratado nesse belo conto de Rachel de Queiroz.

            E eu espero, até em homenagem aos cem anos de Rachel de Queiroz e a todas as suas lembranças, que possa a Presidente Dilma Rousseff efetivamente levar adiante as proposições que venham a fazer de seu governo aquilo que ela tanto deseja: efetivamente, em quatro anos, acabar com a fome, a miséria e a pobreza absoluta para que todo e qualquer menino e menina deste País tenha esse direito de sobreviver, de que Rachel de Queiroz tão bem falou.

            E mais uma coisa, querido Senador Inácio Arruda: V. Exª sabe que vou lembrar um episódio de Rachel de Queiroz, relatado por V. Exª e pelo Senador José Sarney - acho que por todos aqui -, quando ela teve uma discordância com o Partido Comunista: “Que negócio é esse de censurar a minha obra!”. V. Exª sabe, e o Presidente José Sarney chegou inclusive a encaminhar à Embaixada de Cuba o convite que o Senador Demóstenes Torres fez para que pudesse Yoani Sánchez, a blogueira de Generación Y de Cuba, vir aqui ao Senado e expor sobre aquilo que ela escreve, sobre o cotidiano da vida.

            Eu, ainda há poucas semanas, encaminhei ao Presidente Fidel Castro, Senador José Sarney, uma carta aberta, publicada no mesmo jornal - sairá estes dias - em que escreve Fidel Castro no Brasil, em Caros Amigos, em que digo a ele, carinhosamente: permita que Yoani Sánchez venha ao Brasil e exponha aqui suas ideias, que possa até apresentar um documentário, pois o documentarista Claudio Galvão a convidou para o mostrarem em Jequié. Vamos respeitar a liberdade de pensamento.

            Também eu vi hoje que Frei Betto almoçou, ou esteve em duas refeições, uma com o Presidente Raúl Castro, outra com o Presidente Fidel Castro. E eu espero, porque mandei a cópia de todas essas correspondências ao Fidel Castro também para Frei Betto, por ser ele amigo, até em homenagem à liberdade de expressão que tantas vezes Rachel de Queiroz defendeu, ela como membro que foi do Partido Comunista e que sabia dizer como é importante que os objetivos de igualdade, solidariedade e fraternidade possam sempre estar harmonizados com os objetivos de liberdade de expressão.

            Meus cumprimentos a todos que amam Rachel de Queiroz.

            Muito obrigado. (Palmas.)


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/11/2010 - Página 50814