Fala da Presidência durante a 184ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comemoração do centenário de nascimento da escritora Rachel de Queiroz.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Fala da Presidência
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Comemoração do centenário de nascimento da escritora Rachel de Queiroz.
Publicação
Publicação no DSF de 18/11/2010 - Página 50804
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, ESCRITOR, JORNALISTA, ESTADO DO CEARA (CE), COMENTARIO, AMIZADE, ORADOR, ELOGIO, BIOGRAFIA, PIONEIRO, MULHER, INGRESSO, ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS (ABL), AUTOR, LIVRO, ASSUNTO, SECA, REGIÃO NORDESTE, FILIAÇÃO PARTIDARIA, PARTIDO POLITICO, PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO (PCB), PARTICIPAÇÃO, DIVERSIDADE, JORNAL, RECEBIMENTO, PREMIO, LITERATURA.

            O SR. PRESIDENTE (José Sarney. PMDB - AP. Com revisão do Presidente.) - Não quis tomar a preferência de ser V. Exª o primeiro orador a falar nesta sessão, sendo o autor do requerimento, mas também não posso ficar sem dizer algumas palavras sobre Rachel, sobre a data que nós comemoramos hoje dos seus 100 anos, que é uma data especial para o Brasil. E faz o Senado muito bem procurando valorizar, manter viva a figura dos nossos grandes escritores e ao mesmo tempo homenagear a literatura brasileira. Mas é uma data especial não somente para o país, mas eu também quero dizer que é uma data muito especial para mim, não só por tudo que Rachel representa na literatura brasileira, como pelo privilégio que eu tive de gozar da sua convivência, de ter com ela uma amizade que posso dizer de uma grande intimidade.

            Rachel é uma dessas figuras humanas que não desaparecem da nossa memória, que sempre estão presentes no nosso universo porque ela era uma criatura de uma personalidade doce. Rachel era carinhosa com as pessoas, até com o seu gosto dos casos que ela gostava de mesclar as suas conversas. Lembro-me de quantas tardes estivemos juntos na casa de Odylo Costa, filho, no gosto da convivência. Lembro-me de Rachel, amiga indelével, que começava a ler alguns textos seus e tinha a humildade até de pedir a gente opinasse e brincava “Está bom?”

            São memórias pessoais que guardo de Rachel, que foi predestinada, porque foi a primeira mulher que ingressou na Academia Brasileira de Letras, mas, sobretudo, porque ela era de uma família de literatos, de homens de letras. José de Alencar era primo de sua bisavó materna, Dona Miliquinha, que era uma das pessoas para quem o romancista lia os folhetins que ele escrevia. Nunca saiu do seu sangue a terra, a memória da infância e do lugar onde ela foi criada e nasceu.

            Gostava de contar histórias da sua fazenda. Gostava de contar histórias do sertão do Ceará, de onde ela viveu, na cidade de Quixadá, onde o pai era Juiz de Direito, e da Fazenda do Junco, no universo do sertão cearense, do semiárido, terra que encharca na invernada -- como ela dizia -- e resseca na estiagem.

            Era de uma vida simples. Gostava da simplicidade Rachel e gostava da natureza.

            Em 1913, seu pai foi nomeado promotor em Fortaleza, cargo que deixa um ano depois para ser professor de Geografia no Liceu cearense.

            Bem cedo Rachel aprendeu a montar, a nadar, e correu livre pelo campo com o espírito e a personalidade forte que sempre teve. Embora filha de intelectuais -- que tinham bibliotecas na casa da cidade e na da fazenda --, Rachel não foi à escola, e foi alfabetizada pelo pai. Aos cinco anos leu Ubirajara, de José de Alencar. Mas seu primeiro deslumbramento literário foi com Vinte mil léguas submarinas, de Júlio Verne. A porta de entrada para a literatura brasileira foi A Mão e a Luva, de Machado de Assis. A menina fundiu assim o mundo sertanejo e os mundos literários.

            Retorna à casa e à vida entre a fazenda e o Quixadá.

            Em 1926, nasce sua irmã caçula, Maria Luiza,.

            Em 1917 a família de Rachel, como tantas outras, teve que fugir das consequências da seca de 15 e tentou recomeçar a vida no Rio de Janeiro e em Belém do Pará. Retornam ao Ceará em 1919, e no Quixadá a menina é matriculada, como aluna interna, no curso normal do Colégio Imaculada Conceição, dirigido por freiras francesas. Aos quinze anos torna-se professora, terminando sua educação formal. Retorna à casa e à vida entre a fazenda e o Quixadá. Em 1926 nasce sua irmã caçula, Maria Luíza, Izinha, tão querida também e que tinha tanta afinidade com Rachel, que tinha com ela uma relação quase maternal.

            Menina ainda, a leitora Rachel começa a escrever. Em 1927 publica seu primeiro texto, uma carta ao jornal O Ceará criticando o concurso de Rainha dos Estudantes, que assina como Rita de Queluz, como foi dito. Começa a colaborar no jornal. Torna-se também professora substituta no Colégio Imaculada Conceição. Organiza a página de literatura de O Ceará e aí publica um romance em folhetins, História de um Nome, e a peça de teatro Minha prima Nazaré.

            No sítio do Pici, perto de Fortaleza, onde se recupera de uma congestão pulmonar com suspeita de tuberculosa, começa a escrever sobre a seca de 1915, a famosa seca de 1915. Aos dezenove anos, em agosto de 1930, com o apoio dos pais, publica o romance instaurador do ciclo do romance nordestino, O Quinze. O impacto do livro foi extraordinário: a seca é um personagem central desta obra de forte conteúdo social, que trouxe as fontes populares ao universo literário. No seu romance, ela trata com profundidade o sofrimento humano e faz dele o centro de sua inspiração.

            Rachel torna-se logo uma figura nacional, a porta bandeira dos búfalos do Norte, na expressão de Oswald de Andrade. Ele dizia que, enquanto faziam a Semana de Arte Moderna em São Paulo, a literatura brasileira foi invadida pelos “búfalos do Norte”, que eram Rachel à frente, Graciliano, Jorge Amado, José Américo de Almeida, José Lins do Rego, enfim, todos aqueles grandes escritores nordestinos que marcaram a literatura das secas.

            Aliás, num parêntese, quero dizer que José Lins estava quase esquecido. A mocidade quase que não conhecia mais José Lins do Rego, um romancista extraordinário. Agora, com muita satisfação, vejo que seu livro sobre a infância, Menino de Engenho, alcançou a 100ª edição.

            Em março de 1931, quando vai ao Rio de Janeiro receber o Prêmio Graça Aranha, aproxima-se do Partido Comunista, e na volta ajuda a fundar a organização no Ceará. Torna-se secretária da seção cearense do Partido.

            Em 1932 casa-se com José Auto da Cruz Oliveira, poeta bissexto, e continua a militância política, que levara a polícia de Pernambuco a fichá-la como “perigosa agitadora comunista”. E ela até contava com muita graça que, quando foi abordada para ser presa, o investigador levantou a aba do paletó mostrando um distintivo e disse “eu sou um agente secreto”.

            Seu novo romance, João Miguel, é livro de inspiração política, mas, para espanto de Rachel, o Partido Comunista exige que o submeta a um comitê de leitura antes de publicá-lo. O comitê reprova o livro, que conta a história de um operário que mata outro com uma facada durante uma festa, sua vida na prisão, a traição da companheira e sua solidão. Rachel contaria mais tarde o veredicto do Partido: “Em João Miguel, um operário mata outro operário e o ‘coronel’ é uma figura simpática. Portanto, você tem que fazer o operário matar o coronel, quem tem que ser prostituta não é a companheira de cela porque esta é uma operária, e sim a mocinha porque esta sim é nossa adversária de classe.” Rachel não se conforma, declara que o Partido não tem autoridade para censurar sua obra, foge com os originais e rompe com ele.

            João Miguel é publicado ainda em 1932. Em 1933, em Fortaleza, nasce sua filha, Clotilde. José Auto é transferido para Itabuna e na cidade baiana vivem na casa de Jorge Amado. De lá se muda para o Rio de Janeiro, depois para São Paulo. Trabalha como jornalista e na tradução das memórias de Trotski -- aproximara-se dos trotskistas. Volta ao Ceará, onde candidata-se a deputada pela Frente Única do Partido Socialista. José Auto é transferido para Alagoas e mudam-se para Maceió. Torna-se amiga de Graciliano Ramos, Aurélio Buarque de Holanda, José Lins do Rego, Alberto Passos Guimarães, Jorge de Lima, Valdemar Cavalcanti, o pintor Santa Rosa.

            1935 é um ano trágico para a escritora. Acometida de uma meningite, Clotilde, sua filha, com dezoito meses, morre em menos de 24 horas. Rachel ficou marcada para a vida inteira, porque ela passou de mãe de Clotilde a mãe de todos da família. Ela tinha mesmo um instinto, um gosto maternal. Completando a tristeza, três meses depois seu irmão Flávio morre de septicemia.

            Rachel volta ao Ceará. Trabalha numa firma de exportação. Mas começa a caça aos comunistas, em 1935, e Rachel é presa, incomunicável, no Quartel do Corpo de Bombeiros de Fortaleza. Aí passa três meses.

            É na prisão que escreve Caminho de Pedras. É a história de Noemi com Roberto, jornalista que vai ao Ceará organizar o Partido Comunista, de que traça um retrato detalhado. O caso amoroso termina, Roberto é preso e Noemi perde um filho pequeno de febre súbita.

            Caminho de Pedras é seu primeiro livro lançado pela Livraria José Olympio Editora, e o início da grande amizade com os irmãos José Olympio, Athos e Daniel Pereira. Pouco depois, com os outros livros de Rachel, com os de Jorge Amado, José Lins e Graciliano Ramos, Caminho de Pedras é queimado em praça pública, em Salvador.

            Em 1939, Rachel escreve As Três Marias. Arrisca a narrar na primeira pessoa e a acentuar o caráter biográfico: trata-se da vida de três amigas -- Maria José, Maria da Glória e Maria Augusta -- num internato de freiras. Maria Augusta, a Guta -- um auto-retrato --, vem do sertão e volta para ele.

            A autora, ao contrário de Guta, muda-se para o Rio de Janeiro. Separa-se de José Auto. Vive só, e sustenta-se como jornalista. Forma grandes amizades e passa a fazer parte da vida intelectual da cidade. Em 1940 Pedro Nava -- seu primo -- a apresenta a Oyama de Macedo, médico como Nava. Passam a viver juntos, primeiro em Laranjeiras e depois na Ilha do Governador. É a descoberta do grande amor da vida inteira.

            Ao mesmo tempo o assassinato de Trotski no México, por ordem de Stalin, a afasta da extrema esquerda. Deixa de colaborar em vários jornais para tornar-se então cronista exclusiva de O Cruzeiro, onde continuaria por trinta anos, até o fechamento da revista, em 1975. Continuaria a escrever, colaborando com vários jornais até fixar-se no O Estado de S. Paulo.

            Em 1948 publica A Donzela e a Moura Torta, primeira de uma série de seleções de crônicas que a iam consagrar como mestre do gênero. Depois vieram 100 Crônicas escolhidas, O brasileiro perplexo, O caçador de tatu, As menininhas e outras crônicas, O jogador de sinuca e mais historinhas, As terras ásperas, A longa vida que já vivemos, Um alpendre, uma rede, um açude: 100 crônicas escolhidas. Impregnadas de confidências, num tom de oralidade, estabelecendo de entrada uma conversa com o leitor, Rachel fez do ofício a um só tempo um espaço de registro do Brasil e dos brasileiros, como lugar para afirmar suas fortes convicções políticas, que foram se afastando das origens trotskistas para tornarem-se as de uma conservadora empedernida, sem nunca, no entanto, perder a forte preocupação com as causas sociais e populares.

            Rachel de Queiroz entra, então, pelo teatro, escreve peças extraordinárias, que ficaram indeléveis na história da literatura e do teatro brasileiro, reconstruindo a história do Lampião e Maria Bonita: Lampião, de 1953, e Beata Maria do Egito, de 1958.

            A Academia Brasileira de Letras, em 1957, lhe concede o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da obra. Em 1961, Jânio Quadros a convida para ocupar o Ministério da Educação, convite que ela recusa. Em 1964 é um dos apoios intelectuais do movimento militar.

            Rachel era parente e amiga muito próxima do Presidente Castelo Branco, que a nomeou em 1966 para delegada do Brasil na 21a Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, junto à Comissão de Direitos do Homem, e para o Conselho Federal de Cultura, onde ficaria de 1967 até sua extinção, em 1990.

            Ela era parenta próxima do Castelo Branco, ao contrário do Jornalista Carlos Castelo Branco, que era parente longe. E quando o Castelo foi eleito Presidente, perguntaram ao Castelinho: Você é parente do Castelo? Ele disse: Longe, mas estou me aproximando.

            Desta amizade resultou uma tragédia: em 1967 o Presidente Castelo faleceu depois de visitá-la na Fazenda Não Me Deixes, no Quixadá, quando, voltando a Fortaleza, o avião onde viajava se chocou com outro avião.

            Voltando à literatura, Rachel surpreendeu em 1975 ao publicar, depois de 36 anos de As três Marias, o romance Dôra, Doralina. História forte, em que a personagem parte de uma tragédia familiar -- Dôra faz matar Laurindo para vingar sua traição com sua mãe, Senhora -- para uma vida nômade e cheia de pequenos dramas, que termina com a volta à casa e o reencontro com as terras de Soledade, seu destino. O romance foi um grande sucesso.

            Em 1977 Rachel tornou-se a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras. A resistência contra a participação feminina sempre fora muito forte, resultando no célebre episódio da tentativa frustrada de candidatura de dona Amélia de Freitas Beviláqua e do consequente afastamento de Clóvis Beviláqua -- essa é uma história também interessante, porque ela foi recusada sob o pretexto de que o Estatuto falava que a Academia era composta de brasileiros, não falava em brasileiras, e então, por isso não poderia receber mulheres… Rachel abre as portas da Academia, rompendo a tradição de que as mulheres não podiam entrar. E, na Academia, ela fica no altar-mor, como uma das maiores glórias da Casa.

            Em 1982, faleceu seu companheiro de toda a vida, Oyama de Macedo. Aos filhos que não tiveram, o casal incorporou a família de Izinha e Namir Salek, chamando aos sobrinhos de netos. Conheci também muito Salek e tive a satisfação de que fosse um dos colaboradores do meu Governo.

            Já no fim da vida, quando todos os escritores perdem aquela força interior do início de suas carreiras, Rachel chega e nos surpreende, em 1992, com um livro extraordinário, um livro definitivo, que é o Memorial de Maria Moura. Inspirada na vida de Maria de Oliveira, uma precursora do cangaço no séc. XVIII, Rachel constrói sua narrativa em capítulos-episódios: Maria Moura é violentada por seu padrasto, a quem manda matar, disputa a posse de sua propriedade com seus primos, incendeia a própria casa, constitui seu bando errante que roupa, saqueia e mata e constrói a “Casa Forte”, de onde controla o sertão. A paixão e o assassinato de Cirino, um aventureiro que rompe as regras do bando, antecedem a partida de Maria Moura num galope sem destino. Uma coisa interessante na feitura, na construção do livro, é a técnica que ela usou de cada capítulo ser escrito por cada um dos personagens que compõem o livro.

            Assim ela consagra a obra de romancista, que se estende desde O Quinze, obra inovadora, até o Memorial de Maria Moura, escrito aos 80 anos, uma obra-prima na literatura brasileira.

            Em 1993, Rachel ganhou o Prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa, e o Prêmio Juca Pato. Em 1996, recebe o Prêmio Moinho Santista.

            Rachel ainda escreveu, em 1994, O Nosso Ceará, e em 1998, uma quase autobiografia, Tantos Anos, e em 2000 um livro de recordações culinárias-- Não Me Deixes, suas histórias e sua cozinha -- da sua fazenda mítica, para onde ela retornava sempre, se já não fisicamente, como referência e raiz, profundamente fincada nessa entrada do sertão cearense. Estes três livros foram escritos a quatro mãos com Maria Luiza Queiroz Salek, como já disse, a um só tempo irmã e filha.

            Tive a felicidade de, desde os anos 50, tornar-me também amigo de Rachel, na generosidade com que ela recebia os mais jovens para incorporá-los em seu universo sentimental. Universo de mulher inteligente, que tinha o gosto da vida e que tinha amor às letras e amor às palavras, sabendo que, através das palavras, se podem eternizar sentimentos, emoções, enfim, reconstruir o mundo na sua arte de escritora.

            Rachel foi um exemplo de resistência feminina, forte como o retrato das suas personagens, mas sem seus traços violentos, com uma inexcedível doçura humana, só às vezes temperada de uma tirada irônica -- de que ela tanto gostava -- em que reafirmava sua rebeldia e seu inconformismo com a desordem do mundo. Ninguém como ela soube traçar os tipos sertanejos, o seu universo pessoal, e transformá-los em figuras universais.

            Rachel faleceu numa rede, pensando no Não Me Deixes, em novembro de 2003. Foi com profunda comoção que despedi-me dela, sabendo que está na eternidade, não pela sua pessoa, mas pelas suas obras. Enquanto existir a literatura brasileira, a obra de Rachel de Queiroz estará presente como um dos momentos mais importantes e mais extraordinários da nossa inteligência e também enquanto eu viver ela estará viva na minha memória.

            Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/11/2010 - Página 50804