Discurso durante a 143ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Reverência à memória do cineasta, ator e escritor Glauber Rocha, pela passagem dos trinta anos de seu falecimento.

Autor
Lídice da Mata (PSB - Partido Socialista Brasileiro/BA)
Nome completo: Lídice da Mata e Souza
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Reverência à memória do cineasta, ator e escritor Glauber Rocha, pela passagem dos trinta anos de seu falecimento.
Publicação
Publicação no DSF de 24/08/2011 - Página 33964
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE MORTE, ATOR, DIRETOR, CINEMA.

            A SRª LÍDICE DA MATA (Bloco/PSB - BA. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, caras Srªs e Srs. Senadores, representantes e autoridades aqui presentes, familiares de Glauber: Dª Lúcia, sua filha Paloma, Sara, Henrique, Senhoras e Senhores.

            É para mim uma satisfação muito grande estar hoje nesta tribuna para incorporar-me às relevantes homenagens que o Senado presta agora a um dos mais inventivos, brilhantes e conceituados cineastas brasileiros: Glauber Rocha, prematuramente, falecido aos 42 anos de idade.

            Quando discuti com amigos a ideia de fazer essa homenagem hoje a Glauber, como já havia realizado uma homenagem ao centenário de Caribe, grande artista plástico baiano, não tinha idéia de como terminaria essa homenagem. Iniciava pensando em só fazer um discurso. Depois, veio a nós a ideia de fazer um seminário a respeito do pensamento e da obra de Glauber. E, finalmente, conversando com o Presidente José Sarney, a quem procurei para que nos desse apoio no sentido de, em contato com a TV Senado, garantir que passassem, durante um determinado período, a obra de Glauber, para que pudesse ser exibida pela nossa televisão, S. Exª indicou o caminho de fazermos esta sessão solene aqui, hoje, que teve imediatamente o seu apoio e assinatura; e depois se agregou a nós o meu querido amigo, Senador Walter Pinheiro.

            Baiano de Vitória da Conquista, profundamente baiano pelo imenso amor que devotava a todo o nosso Estado e à sua capital, a venerável Salvador, de todas as misturas e todas as culturas, foi ele, sobretudo, um grande amoroso do Brasil, cuja dinâmica realidade soube estudar, com a emoção de artista e a aplicação de um pesquisador de campo. Sim, pois essa é a primeira condição que devemos salientar, quando evocamos a excepcional figura do cineasta revolucionário. Embora dotado de ampla e diversificada cultura literária e cinematográfica, cujos teóricos estudou a fundo, notabilizou-se como um grande pesquisador do Brasil e da saga obscura do homem interiorano, cuja trágica trajetória apreendeu em seus filmes tumultuados, onde as imagens ganham, não raro, frenesi onírico.

            Quem lê os livros e os ensaios do Glauber Rocha teórico pode imaginar que ele teria sido um intelectual de gabinete. Seria um juízo absolutamente equivocado. Desde cedo, o objetivo essencial desse criador múltiplo e frenético foi o conhecimento da vastidão do Brasil, a interiorização em seus espaços telúricos, a vida do homem distanciado das cidades, em conflito com as asperezas do clima e oprimido pela natureza tirânica.

            Para munir-se dos conhecimentos práticos que logo transformaria na substância dos seus filmes, tornou-se um pesquisador de campo, um observador in loco do agreste brasileiro.

            É verdade que já trazia a tradição da terra na sua formação interiorana em Conquista, mas seu projeto era bem maior, pois abarcava o aprofundamento da visão crítica pela totalidade do Nordeste brasileiro. Ele queria sentir a pulsão profunda da gente desterrada, do sofrimento causado pela seca, pelo flagelo diuturno da fome e do êxodo sertanejo. Da realidade, em suma, geradora do desespero do cangaço e do fanatismo alienante, que levava o brasileiro, sempre esquecido e marginalizado pelos governos, a buscar, com os olhos nos céus, as compensações para as misérias da terra que o expulsava e lhe negava alimento.

            A ânsia de conhecer o Nordeste levou-o primeiro a estudar a obra dos grandes romancistas da ficção de 30, José Lins do Rego à frente de todos. Com entonação possante e os gestos teatrais com que dava forma às suas inclinações dramáticas, jovem ator que fora já nas experiências colegiais, em seu apartamento nos Barris, em Salvador, ponto de encontro habitual de uma legião de devotados amigos, Glauber Rocha costumava ler, em voz alta e forte, trechos dos romances de Zé Lins do Rêgo, mas também de Rachel de Queiroz, Jorge Amado e Graciliano Ramos, todos eles provocando a inquieta imaginação do adolescente para as formas revolucionárias que concebia para o seu cinema.

            Eis por que Glauber Rocha foi, no Brasil artístico, um revolucionário das imagens. Se é certo que o cinema é a arte do movimento, ele desejou levar essa qualidade intrínseca da arte cinematográfica ao paroxismo, pois, ao lado da pregação em defesa dos marginalizados da terra, queria também a forma revolucionária que intensificasse a transmissão visual do desespero e da dor provocados pela fome, implacavelmente expulsando do seu habitat a procissão dos deserdados.

            Ao lado das lições da ficção nordestina, Glauber mergulhou também na sociologia de Gilberto Freire, antes de se aventurar pelas terras ásperas e longínquas que desejava pesquisar, para completar o conhecimento da terra iniciado em Vitória da Conquista. Foi por isso que, em 1958, com apenas 18 anos de idade, convidou o seu amigo (e posterior biógrafo) João Carlos Teixeira Gomes, nosso Joça, para a grande saga da primeira viagem nordestina, que seria fundamental para a elaboração de filmes da envergadura de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, exponenciais em sua filmografia e que, tratando de temas essencialmente brasileiros, logo o fizeram famoso, como o grande e mais ousado cineasta do Terceiro Mundo.

            Tal viagem não foi uma aventura tranquila. Nas proximidades da cidade de Catu, ainda em solo baiano, bem próximo de Salvador, o superlotado e precário lotação que transportava os jovens amigos sofreu terrível acidente, mas o nosso cineasta escapou incólume e, com ânimo de ferro, tornou-se mais obstinado ainda para pesquisar a região que nem estradas dignas ou transitáveis possuía para facilitar o seu conhecimento.

            O percurso prosseguiu por Sergipe, Maceió e Pernambuco, com demoradas permanências nas menores cidades, entrevistas com tipos regionais, palestras com intelectuais locais, visitas a centros de cultura e jornais, tudo exprimindo o planejamento calculado que Glauber Rocha estabelecera para apreender a vida nordestina pelos ângulos mais diversos e definidores. E, principalmente, pelo contato com escritores e artistas populares da região. Neste particular, foram sumamente valiosas as visitas que fez ao poeta pernambucano Ascenso Ferreira, uma das vozes mais típicas e renomadas do Nordeste, e ao grande ceramista Mestre Vitalino. O universo popular deste último, povoado de cenas, figuras e tipos imortalizados na fragilidade do barro habilmente trabalhado, encantou sobremaneira o jovem pesquisador e exerceria influência profunda na sua concepção fílmica posterior, como já assinalou o seu biógrafo João Carlos Teixeira Gomes, no livro Glauber Rocha, Esse Vulcão, de 1997.

            Ao lado, porém, do estudo da realidade interiorana do Brasil, em uma dimensão que jamais foi igualada antes ou depois por qualquer outro realizador cinematográfico do nosso País, cumpre destacar o preparo teórico de Glauber Rocha para a realização do seu mister como diretor cinematográfico.

            Causa certa perplexidade verificar como um jovem nascido numa cidade como Vitória da Conquista, que nem cinema possuía à época - hoje uma das maiores cidades do nosso Estado - para exibições regulares, possa ter acumulado tanta ciência na arte de filmar. Em progressão, isso se desenvolveu a ponto de tê-lo transformado não só num diretor consagrado internacionalmente, como no autor dos mais relevantes escritos sobre arte cinematográfica já publicados em nosso País, em atividade começada no jornalismo e em programas de rádio de Salvador, nos anos 50.

            Toda essa riqueza teórica o levou a exercer naturalmente não só a liderança cultura da sua geração na Bahia, como também em plano nacional, pois, transferindo-se para o Rio de Janeiro na década de 60, logo se tornou o líder e principal figura do movimento que ficou conhecido como “Cinema Novo”, que projetou nomes do nível de Cacá Diegues, Nelson Pereira dos Santos (vindo de experiências paralelas), Arnaldo Jabor, Joaquim Pedro de Andrade, Gustavo Dahl e Zelito Viana, entre outros igualmente relevantes. Com este último, uma particularidade deve ser assinalada: ambos fundaram e mantiveram uma produtora de nome “Mapa”, fato inédito no Brasil, revelador das altas ambições de Glauber. Não queria apenas dirigir filmes audaciosos e renovar a linguagem do cinema no País, longe dos esquemas obsedantes da tradição de Hollywood, que ele tanto abominava e combateu com um destemor bem “glauberiano”, isto é, com determinação absoluta e irrefreável coragem.

            A criação de “Mapa” revelou que Glauber, aliando-se a um parceiro para a empreitada, desejava gerar condições materiais para que a aventura do “Cinema Novo” ganhasse condições objetivas e materiais, conquistando autonomia.

            Outro dado significativo: julgado em geral como um criador tumultuário, arrebatado e imprevisível, que não se sujeitava a normas estabelecidas e queria “o novo, novo”, na definição magistral de Ferreira Gullar (referindo-se à obsessão de Glauber com a atualização da linguagem e com a contemporaneidade da cultura), o nosso homenageado foi um empresário disciplinado, eficiente e responsável.

            Se ele captou a dimensão do Brasil interiorano em filmes que se tornaram legendários, já citados, sendo também um arguto analista da miséria política e colonialista em filmes como “Terra em Transe” e “O Leão de Sete Cabeças”, é preciso destacar que toda sua formação começa na Bahia, em Conquista e, principalmente, em Salvador, onde lidera no Colégio Central, para secundaristas, a famosa “Geração Mapa”, reunindo nomes expressivos como Florisvaldo Mattos, Fernando Peres, Fernando Rocha, Antonio Guerra, Paulo Gil Soares, João Carlos Teixeira Gomes, Anísio Melhor, Calazans Neto, Sante Scaldaferri e tantos outros, que o ajudaram a renovar as artes plásticas e a literatura na Bahia.

            Do cinema tornou-se sem demora o líder inconteste, atento à notável pregação do cinéfilo Walter da Silveira, fraterno amigo que chefiava o valioso Cine Clube da Bahia, de tanta influência em toda geração de cineastas baianos.

            Antes de ser tornar conhecido no Brasil, como diretor de vanguarda, foi na Bahia que ele começou a filmar realizando o filme praieiro “Barravento” e experimental “O Pátio”, neste último utilizando de forma embrionária alguns recursos das suas leituras herdados em livros e revistas internacionais sobre cinema.

            Ainda na Bahia, deu o passo decisivo ao filmar em Milagres, onde obteve material que sacudiu as plateias com a visão pessoal do cangaço, do misticismo dos beatos, da labuta dos vaqueiros, da força do latifúndio, do castigo da seca e da repressão dos vaqueiros e da ação dos repressores armados, pagos pelo poder dominante, expressos na figura inconfundível de Antonio das Mortes (um dos personagens mais poderosos do cinema nacional).

            Pouca gente sabe que originalmente Glauber queria ser ator e autor de teatro, tendo escrito, adolescente, uma peça intitulada “Séfanu e o Diabo”, que chegou a ler de público, para espanto e admiração dos ouvintes.

            Essa vocação o levou a realizar, com os amigos citados e outros colegas do Colégio Central, a encenação em palco de poemas líricos de poetas modernistas brasileiros e de outras nacionalidades, em espetáculos conhecidos como “As Jogralescas”, que marcara época em Salvador.

            No gênero, essas encenações, sem similar no Brasil e que não podem ser esquecidas, exigindo a reavaliação dos estudiosos da cultura teatral na Bahia, transcenderam a condição de espetáculos de jovens estudantes para ganhar a dimensão de realizações artísticas de valor intrínseco. Do preparo da cenografia à transmissão do discurso poético no placo, tudo se fez com esmero, beleza e competência.

            A ambição ilimitada do cinema, que lhe daria fama permanente e um nome internacional, elogiado por cineasta consagrados no mundo, veio logo a seguir. A prática cinematográfica, aliada ao ensaísmo dos artigos eruditos, consolidou um projeto que no menino e adolescente Glauber Rocha começou pelo desejo de fazer teatro e se desenvolveu paralelamente à rica militância jornalística, inclusive como um dos fundadores do Jornal da Bahia, em 1958

            Sr. Presidente, meus colegas, senhoras e senhores, não posso ter a pretensão, nos limites naturais de uma fala desta natureza, em tão significativa solenidade, de revelar o magnífico Glauber de corpo inteiro, nem pretendi fazê-lo. Apenas como representante da minha querida Bahia, senti-me no dever de evocar algumas facetas do baiano genial que conquistou o mundo com filmes inigualáveis. Na França e na Itália da década de 70, foi ele o intelectual mais prestigiado do Brasil e do chamado Terceiro Mundo, e a sua dissertação sobre a “Estética da Fome”, amarga interpretação da realidade do atraso e do subdesenvolvimento das nações chamadas periféricas, marcou época na Europa culta.

            Erigido em sua homenagem, pela dedicação da sua mãe, Dona Lúcia Rocha, o Tempo Glauber, no Rio, será sempre o centro privilegiado dos estudos glauberianos e fecundo monumento pelas ideias que inspira, à sua memória.

            Cabe a nós amá-lo e reverenciá-lo por tudo que produziu pelo nosso País, com o coração generoso, paladino que foi do combate cultural, disseminador de frases magníficas e de pensamentos originais sobre arte, cinema e política, além de ter sido o incomparável revolucionário das imagens.

            Esta sessão, Sr. Presidente, caros Srs. Senadores, senhoras e senhores, talvez não tenha a grandiosidade do Glauber, mas tem, sem dúvida nenhuma, a sinceridade do respeito à sua memória.

            A minha geração foi a geração que cultuou Glauber. Assistíamos Glauber nas universidades, nas faculdades da Universidade Federal da Bahia, nos cineclubes realizados no período em que era necessário, para resistir à ditadura militar, organizarmo-nos, para, dali, discutir a política.

            Fui, no entanto, testemunha do enorme esforço de sua mãe, Dona Lúcia. Quando fui prefeita de Salvador, acabava um dia, na semana seguinte, ela já nos telefonava outra vez, ia à cidade, lutando para estabelecer um tempo, o Tempo Glauber em Salvador, na Bahia, especialmente próximo ao local onde eles tinham vivido. Muitas tratativas foram feitas, no entanto, não conseguimos que as autoridades baianas à época pudessem tornar real esse sonho de Dona Lúcia. O Tempo Glauber existe e existiu no Rio de Janeiro graças à tenacidade, à perseverança e à luta dessa mulher, Dona Lúcia Rocha, que serve de exemplo para todos nós.

            Nós esperamos que outros artistas tão importantes do Brasil não precisem ter nas suas famílias a ação principal de resguardar a sua memória. Que o Ministério da Cultura e o Governo Federal possam fazer também por Augusto Boal o que seus familiares fizeram por Glauber. Que o Estado brasileiro e o Ministério da Cultura possam dar prosseguimento a este Tempo Glauber, que é, acima de tudo, um tempo de resistência cultural, um monumento de resistência cultural, da sua família e de todos aqueles que o admiraram, entre esses o Presidente desta Casa, que foi seu amigo e para quem trabalhou, e, através desse trabalho, pôde financiar um dos seus mais importantes filmes.

            O meu abraço a todos vocês; o meu obrigada ao Presidente da Casa; ao Senador Walter Pinheiro, que se dispôs a comigo realizar esta sessão; a todos os seus familiares que aqui estão; a todos os funcionários do Senado, que de imediato se prontificaram a ajudar; a Maurício, a João, que diretamente ficaram envolvidos na organização desta sessão.

            Muito obrigada. (Palmas.)


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