Discurso durante a 153ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexão sobre os diversos aspectos da legalidade no país, no ano que comemoramos os 50 anos da Campanha da Legalidade.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Reflexão sobre os diversos aspectos da legalidade no país, no ano que comemoramos os 50 anos da Campanha da Legalidade.
Aparteantes
Marcelo Crivella.
Publicação
Publicação no DSF de 06/09/2011 - Página 36550
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • REGISTRO, PARTICIPAÇÃO, ORADOR, CONGRESSO, COMEMORAÇÃO, ANIVERSARIO, CAMPANHA, LEGALIDADE, CRIAÇÃO, LEONEL DE MOURA BRIZOLA, EX GOVERNADOR, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), NECESSIDADE, CONGRESSISTA, CONTINUAÇÃO, DEBATE, OBJETIVO, MELHORAMENTO, BRASIL.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PDT - DF. Para uma comunicação inadiável. Sem revisão do orador.) - Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, nesses últimos dias, o Governo do Rio Grande do Sul fez uma série de comemorações pelos cinquenta anos da Campanha da Legalidade, liderada, naquela época, pelo jovem Governador gaúcho Leonel Brizola.

            Isso faz exatamente cinquenta anos, e o Partido Democrático Trabalhista aproveitou, como Partido que tem origem no Brizola, Senador Eurípedes, para fazer o 5º Congresso. Nesse 5º Congresso, tivemos uma discussão que, a meu ver, vale a pena repercutir aqui. A primeira é lembrar de que a legalidade que ficou visível foi a legalidade da defesa da Constituição que desse posse ao Vice-Presidente eleito João Goulart.

            O que insisti na minha fala é que a legalidade tinha outro aspecto que a gente esquece. A legalidade visava não apenas a dar posse a um presidente eleito, mas também a continuar as tarefas propostas de reforma de que o Brasil precisava. Então, a legalidade tinha duas visões: a legalidade do gesto de resistência contra o golpe militar, que estava sendo trabalhado... Foi a única vez, na história do Brasil, que um movimento civil conseguiu resistir a um golpe militar. Desejei, provoquei um debate não para esse lado, mas para outro lado, do que a gente não fez na busca da legalidade, do ponto de vista social e econômico.

            Naquela época, fazia parte da legalidade, por exemplo, termos o Paulo Freire continuando um trabalho pela erradicação do analfabetismo. E isso não se fez. Para se ter uma ideia, hoje, cinquenta anos depois, o número absoluto de analfabetos no Brasil é maior do que era em 1961. Pouca gente sabe disso, pouca gente olha essas contas. No meu caso, é uma obrigação.

            A porcentagem de analfabetos em relação à população em geral caiu, mas o número absoluto não caiu. Isso é uma vergonha! Isso é uma ilegalidade do ponto de vista ético, porque não é possível que não percebamos a falta de ética de uma população, de uma sociedade, de uma nação que é a sétima economia do mundo ter uma das maiores populações de adultos analfabetos. A legalidade não foi vitoriosa nesse aspecto.

            Fazia parte da legalidade, sim, o início de uma reorientação da economia de tal maneira que pudéssemos sair das amarras criadas em 1930 - aí o Presidente Collor, aqui presente, teve um papel nesse sentido, no governo dele, algumas décadas depois -, precisávamos sair daquelas amarras de 1930, do protecionismo exagerado, e iniciar uma marcha para uma economia mais competitiva no mundo inteiro. E essa legalidade nós não estamos completando hoje porque mudou a definição da competitividade. Naquela época, era competitividade dos preços; agora, é competitividade do produto novo que ganhe mercado. E nós estamos ficando para trás nisso.

            Nós somos um país que tem uma capacidade baixíssima de competir no mundo no que se refere a novos produtos. Nós ainda conseguimos concorrer no que se refere aos preços, apesar de ser alto o Custo Brasil. As estradas e os portos que não funcionam, a falta de vias férreas, tudo isso faz com que a nossa soja e outros produtos tenham dificuldade de ser exportados a um preço baixo. Mesmo assim, a gente consegue competitividade, mas para produzir soja, não para produzir iPads, não para produzir novos tipos de telefones celulares, não para colocar satélites, porque perdemos a capacidade de fazer isso. A legalidade da modernização econômica, da inovação não foi cumprida.

            Não foi cumprida também a legalidade, naquela época, da reforma agrária.

            Claro que hoje temos de ver de outra maneira. Naquele tempo, os latifúndios eram improdutivos; hoje, a gente pode até dizer que muitos dos latifúndios são produtivos e eficientes. Não é aí que se faz reforma agrária. Nós ainda temos uma população de sem-terra que vem para as cidades por falta de apoio e da garantia de uma terra para ali produzirem.

            E temos também, embora isso seja muito provocador para diversas pessoas, a não complementação da legalidade - falo do ponto de vista ético - no que se refere àqueles assentados produzirem, em vez de ficarem apenas recebendo assistência permanente.

            Nós não completamos a legalidade. Nós temos a ilegalidade ainda, não completamos a legalidade na maneira de fazer combinar bem o sistema financeiro e o sistema produtivo. Cinquenta anos depois, nós temos um sistema financeiro inclusive sólido do ponto de vista da cooperação com o resto do mundo, Senador Crivella, mas ainda não conseguimos casar perfeitamente o sistema financeiro com o sistema produtivo, de tal maneira que o sistema financeiro seja capaz de arrecadar recursos para dinamizar a economia. Hoje, ele é capaz até de arrecadar recursos para financiar o consumo, não a produção. Na produção, temos uma poupança baixíssima nos investimentos. Nosso sistema financeiro existe, hoje, para financiar o consumo, e não tem futuro um sistema financeiro baseado no financiamento do consumo em vez do financiamento da produção. Nós não completamos a legalidade do ponto de vista do casamento do sistema financeiro com o sistema produtivo.

            Por isso - não quero tomar muito o tempo e quero dar um aparte ao Senador Crivella -, nessa reunião do PDT, sintonizado com as comemorações dos cinquenta anos da legalidade, evento organizado pelo Senador Tarso Genro, em função dos cinquenta anos do gesto do Leonel Brizola, eu fiz questão de debater - e debatemos bastante - a necessidade de continuarmos a luta pela legalidade, talvez do ponto de vista metafórico, não a legalidade da Constituição, mas a legalidade de um novo Brasil, de um Brasil que erradica o analfabetismo, como a gente queria naquela época - quando digo “a gente” não quero me referir a nós, porque não estávamos ativos, mas o Brasil -, da revolução na educação como uma condição necessária da legalidade plena neste País. Naquela época, acreditava-se na igualdade plena - o socialismo dizia isto -; hoje, a gente sabe que a legalidade plena é antilibertária. Mas duas coisas, Senador Crivella, têm de ser iguais para termos decência: a igualdade no acesso ao serviço de saúde e a igualdade no acesso aos serviços educacionais.

            Não faz mal roupa diferente, renda diferente, conta bancária diferente, carro diferente, andar de ônibus ou de carro. Isso é desigualdade. Mas se o acesso à saúde e à educação não for o mesmo para todos, isso não é desigualdade, mas imoralidade. É imoral uma pessoa morrer antes ou depois por falta de dinheiro. É imoral uma pessoa estudar mais ou menos por falta de dinheiro. Não é imoral uma pessoa ter uma roupa bonita e a outra não ter; isso é desigual.

            Essa é a legalidade de que o Brasil ainda precisa. Essa é a legalidade que, de maneira ou de outra, estava na cabeça daqueles que, ao lado de Leonel Brizola, deram o grito para que não passasse a interrupção do sistema democrático que a Constituição previa da posse do Vice-Presidente diante da renúncia do Presidente. Aquela legalidade foi vitoriosa, embora só tenha durado três anos, e houve interrupção outra vez, embora tenha sido necessário o gesto de conciliação de João Goulart para aceitar o parlamentarismo, perdendo parte do seu poder em nome de viabilizar a continuidade constitucional.

            Aquela legalidade do grito, no bom sentido, obviamente, foi feita. Falta completarmos a legalidade que se espera até hoje: a legalidade de um sistema nacional soberano e decente nas relações sociais. Esse seria, não foi, o meu pronunciamento, porque eu gostaria de dar a palavra ao Senador Crivella, se a Presidenta me permite.

            O Sr. Marcelo Crivella (Bloco/PRB - RJ) - Sr. Senador, é sempre bom ouvir o discurso de V. Exª quando fala sobre legalidade e sobre educação. Hoje, vivemos uma democracia coligada com o capitalismo. Hoje, vencem-se eleições desde que o público majoritário consuma. O consumismo acaba gerando mais desigualdade. As pessoas consomem e acabam mandando recursos para aqueles que têm os meios de produção, e a desigualdade aumenta. O aumento da desigualdade causa apatia na vida pública e na vida política. Ficamos todos sujeitos a uma coisa só: o lucro. As pressões do capital nesta Casa fazem com que a sociedade brasileira caminhe como caminha a americana, que desregulamentou todo o sistema bancário e hoje está vivendo essa crise. V. Exª me faz lembrar, na sua pregação, a Bíblia. O consumo, as coisas materiais exercem algum fascínio antes de chegar às mãos; depois, tornam-se frustrações. A sabedoria, não; o conhecimento, não; a participação na vida política, o poder de decidir, o sujeito ser cidadão - acho que esse era o grande grito da legalidade -, isso satisfaz. Isso não deixa as pessoas irem para as drogas, para o crime, para o vazio, para a depressão, para todos esses sintomas que vemos nos Estados Unidos, onde se procurou a igualdade através do consumo.

Como V. Exª bem diz, é impossível chegarmos à justiça...

(Interrupção do som.)

            O Sr. Marcelo Crivella (Bloco/PRB - RJ) - Não quero tomar mais o tempo de V. Exª, mas é bom lembrarmos disto: que sociedade teremos no futuro, quando, nesta Casa, quem faz a pauta é o capital, quando nós votamos sempre pelos interesses do lucro, quando nós postergamos reformas como essa que V. Exª fala, da saúde e também da educação, e liberamos bilhões e bilhões, via BNDESPar, para criar grandes grupos econômicos, sabendo que o que nos dará vitória na eleição é o consumo do povo? Agora, esse consumo aumenta a desigualdade e faz com que a apatia tire a nossa garantia de uma democracia no futuro ligada à justiça e que supere os erros do capitalismo pela participação popular, pela cultura, pela cidadania. Obrigado, Senador.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PDT - DF) - Eu que agradeço, e quero começar agradecendo, Senador, a promoção que o senhor fez da minha fala, porque, como professor, dizem que eu dou aula; como Senador, que eu faço discurso; o senhor diz que eu fiz uma preleção, uma pregação. Pregação é muito superior a discurso ou a aula. Eu lhe agradeço muito.

            E quero dizer que, na verdade, o que nós temos é que compor um sistema social tal que a economia possa ter capitalismo sem nenhum problema, capitalismo definido como propriedade privada, como leis do mercado. Não tem problema, desde que o Estado saiba, através da política fiscal, da política orçamentária, garantir a todos as três coisas que, se não forem para todos, é imoralidade: educação, saúde e o meio ambiente, quando a gente analisa entre gerações. Essas três coisas sendo garantidas para todos, o resto são pequenos ajustes e desajustes sociais que a gente pode corrigir sem grande dificuldade e sem vergonha.

            Agora, educação, saúde e meio ambiente fazem parte da vergonha, quando a gente não faz o dever de casa, e, nesses 50 anos, é lamentável - claro, vamos deixar o meio ambiente de lado, porque isso é um fenômeno recente dos últimos 20 anos, 25 anos - que a gente não tenha feito ainda o dever de casa. Brizola fez a parte dele, mas nós ainda não completamos a nossa parte.

            Vamos comemorar os 50 anos passados olhando os próximos 50 anos, e dizendo: “Vamos completar a legalidade, vamos fazer uma legalidade plena neste País”, construindo um sistema social ético e uma economia eficiente. Duas coisas que a gente pode perfeitamente combinar.

            Muito obrigado, Srª Presidente. Era essa a comunicação que eu queria fazer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 06/09/2011 - Página 36550