Discurso durante a 193ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Comentários e reprodução de trechos do texto publicado no jornal Folha de S. Paulo, intitulado "A outra vida do tio Enéas", da atriz paulista Mika Lins.

Autor
Jarbas Vasconcelos (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/PE)
Nome completo: Jarbas de Andrade Vasconcelos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS.:
  • Comentários e reprodução de trechos do texto publicado no jornal Folha de S. Paulo, intitulado "A outra vida do tio Enéas", da atriz paulista Mika Lins.
Aparteantes
Demóstenes Torres.
Publicação
Publicação no DSF de 25/10/2011 - Página 43569
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • APOIO, PROJETO DE LEI, ASSUNTO, CRIAÇÃO, COMISSÃO, AMBITO NACIONAL, VERDADE, OBJETIVO, INVESTIGAÇÃO, VIOLAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, DITADURA, REGIME MILITAR, GARANTIA, MEMORIA NACIONAL, DESCOBERTA, HISTORIA.

            O SR. JARBAS VASCONCELOS (Bloco/PMDB - PE. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente, Senador Mozarildo Cavalcanti, Srªs e Srs. Senadores, li, neste último final de semana, mais precisamente ontem, domingo, no jornal “Folha de S.Paulo”, no caderno “Ilustríssima”, o relato de um dos crimes mais bárbaros, mais chocantes ocorridos no Brasil durante o período da Ditadura Militar, que se instalou no País a partir de 1º de abril de 1964.

            O texto, intitulado "A outra vida do tio Enéas", foi escrito pela atriz paulista Mika Lins e fala da amizade de seus pais com o “Tio Enéas”, que, na verdade, era o dirigente do Partido Comunista Brasileiro, o "cearense-pernambucano" David Capistrano da Costa.

            O alerta, Sr. Presidente, para esse importante registro histórico me foi feito pelo ex-Deputado Federal Maurílio Ferreira Lima, que é uma pessoa - mesmo sem mandato parlamentar - atenta a todas as questões de relevância política, quer seja no Brasil ou no cenário internacional.

            Dito isso, Srªs e Srs. Senadores, gostaria de reproduzir alguns trechos do depoimento emocionante de Mika Lins.

            Foi um dos relatos mais chocantes, Sr. Presidente, que li nos últimos anos.

     “ Tio Enéas era um homem muito alto e, na minha memória, aparece com um terno escuro, a camisa branca, o cabelo penteado para trás e um bigodinho engraçado. Para uma criança, filha única de pais que trabalham fora, qualquer hóspede era motivo de alegria. Ainda mais um hóspede como ele, sempre tão atencioso.”

     David Capistrano era um homem incrível. Quando o conheceu, nos anos 1960, no Recife, meu pai tinha uns 18 anos e já militava no PCB; trabalhava no governo Miguel Arraes. David tinha história. Nascido em 1913, no Ceará, participou do levante de 1935, quando era sargento da Aeronáutica, e foi condenado à prisão pelo Estado Novo. Lutou na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Francesa durante a ocupação nazista. Em 1947, já de volta ao Brasil, foi eleito Deputado Estadual por Pernambuco, onde também dirigiu os jornais “A Hora” e “Folha do Povo” . Com a ditadura, caiu na clandestinidade, até partir para Tchecoslováquia, no início dos anos 70.

     Meu pai amava aquele homem pelo espírito de luta, pela posição ideológica e pela humanidade. Minha mãe também -, tanto que escondia David em nossa casa, mesmo não sendo mais casada com meu pai e tendo a perfeita noção do risco que corríamos.

     Em 1974, aos 61 anos, David voltou escondido do exílio. Ao passar pela fronteira em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, foi preso pelos agentes do Exército e logo dado como desaparecido.

     Em 2008, a jornalista Taís Morais publicou o livro “Sem Vestígios - Revelações de um Agente Secreto da Ditadura Militar Brasileira”, escrito com base em anotações enviadas a ela de forma anônima pelo agente de codinome Ivan Carioca. Nelas, Carioca relata com detalhes o fim trágico de David, torturado, morto e esquartejado, em Petrópolis.”

            Até agora não se tinha notícias da morte de David Capistrano, as notícias eram de que ele estava desaparecido. Sabia-se que deveria ter sido torturado e morto, mas não nas circunstâncias que o Sr. Ivan Carioca descreve numa cena de prisão nos porões da ditadura militar.

“Carioca descreve a visão do corpo daquele homem enorme e doce que conheci: “Um tronco dividido ao meio. As costelas de Capistrano pendiam do teto, e ele, reduzido aos pedaços, como se fosse uma carcaça de animal abatido, pronta para o açougue”.

            É o relato, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, do ex-agente policial que presenciou essa cena tenebrosa.

     “Depois de ler, com tristeza, perguntei delicadamente a meu pai se gostaria de ler. Respondeu que sim - em 2008, ele se tratava de um câncer de pulmão diagnosticado no ano anterior.

Meu pai morreu neste último 5 de agosto, mas não sem saber como partiu o amigo a quem homenageara dando a meu irmão o nome de David Lins. Para minha mãe, o colar que ganhou de David Capistrano é a única joia da família e o presente mais significativo que recebeu.”

            Seu filho, David Capistrano Filho foi Prefeito, por dois mandatos da cidade de Santos, uma das cidades mais importantes do Estado de São Paulo. No período de redemocratização do Brasil, após o término da ditadura militar, David Capistrano Filho, médico sanitarista, teve oportunidade de dirigir aquele grande e importante Município paulista por duas vezes.

     “Ao lembrar essa história, além da saudade do meu pai, tenho a sensação desagradável de que talvez crimes da ditadura brasileira nunca sejam punidos. E penso que, por trás de cada movimento histórico, revolucionário ou não, há uma partícula delicada, talvez banal, de cada homem, que se mantém pela lembrança de uma garota com seu brinquedo de lata ou no brilho de um colar de cristal.”

            Sr. Presidente, pela contundência desse depoimento publicado na edição da Folha de S. Paulo do último domingo, 23 de outubro, gostaria de solicitar a transcrição, nos Anais do Senado, de todo o artigo da Srª Mika Lins, pois existem episódios na nossa história que não devem ser esquecidos. Este é um deles.

            E mais ainda, Sr. Presidente: devemos ter em mente que lembrar esses acontecimentos ajuda a impedir que eles se repitam no futuro.

            O povo tem a memória muito curta, por isso é preciso sempre lembrar aos mais jovens o que foi o período da ditadura militar - que se iniciou há quase 50 anos - é preciso mostrar às novas gerações o que foi a barbárie desse período: uma pessoa, um estudante, um profissional liberal, um jornalista, um médico, um sindicalista ser perseguido por um automóvel com agentes policiais, sequestrado, torturado e morto.

            O fim dos ditadores nessa primavera árabe mostra exatamente isso. Ditaduras marcadas pela barbárie e pelo ódio que se prolongaram por muitos anos levaram os seus artífices, os seus comandantes, a um fim trágico.

            É preciso combater a ditadura, seja ela qual for, de direita ou de esquerda, pois ditadura é ditadura. Ela suprime os direitos humanos, não respeita o cidadão e é marcada pela prática de crimes hediondos. Porque sequestrar uma pessoa, jogá-la no porta malas de um automóvel e depois torturá-la e matá-la, é um crime hediondo, tenebroso.

            Isso deve ser dito ao País sempre, reiteradamente. Não é revanchismo, não é contestar a Lei de Anistia, que foi ampla, para todos. Mas os fatos precisam ser apurados. Um crime como esse que estou relatando aqui tem que se apurado, é inaceitável uma pessoa ser esquartejada e pendurada em peças, como num açougue, dentro de uma prisão militar, como relatado, recentemente, por um ex-agente policial.

            Sr. Presidente, esse fato é profundamente chocante e faço sempre questão de reiterar as barbáries cometidas na ditadura militar. Quando ocupei um cargo Executivo, à frente da Prefeitura da cidade do Recife, promovi a realização de concurso público para que fosse construído o primeiro monumento no país em homenagem aos mortos e desaparecidos políticos do Brasil. Ele foi concebido pelo arquiteto piauiense Demetrio Albuquerque no mesmo período do movimento “Tortura Nunca Mais”. O Objetivo é chamar atenção dos que passam pela Rua da Aurora no centro do Recife. Chamar atenção do filho que passa ao lado de seu pai e não entende aquela escultura simulando uma pessoa sendo torturada em um “pau de arara”. A intenção é que ele pergunte ao seu pai o que significa aquilo e que seja esclarecido a ele o que é a torturada, o que foi a ditadura. Um regime que se põe acima da lei, independentemente da ideologia, que não respeita o cidadão e que não respeita os direitos humanos.

            Outra iniciativa que tomarei, Senador Demóstenes, é procurar o nobre Senador Paulo Paim, um dos parlamentares mais comprometidos com as causas sociais desta Casa, que será o Relator, na Comissão de Direitos Humanos, do PLC 88/11, que cria a Comissão Nacional da Verdade, para que, juntos, possamos ultimar a tramitação desse projeto, se possível, contando com a boa vontade das lideranças, para que a proposição possa tramitar em regime de urgência, visto que já possui parecer favorável da CCJ, onde foi brilhantemente relatada pelo Senador Aloysio Nunes, do PSDB de São Paulo.

            A Comissão terá como finalidade examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período de 1946 até a data da promulgação da Constituição de 1988, com o objetivo de garantir o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.

            Ouço V. Exª, Senador Demóstenes Torres, com muita honra.

            O Sr. Demóstenes Torres (Bloco/DEM - GO) - Senador Jarbas, V. Exª é um parlamentar lúcido, com uma história de combate à ditadura militar e um líder de ontem e um líder de hoje. V. Exª é uma das figuras melhores de nosso Congresso de todos os tempos e faz uma análise perfeita, tranquila, serena, de um episódio horripilante, narrado ontem na Folha de S.Paulo. Eu me lembro bem tanto de David Capistrano, quanto de David Capistrano Filho, e o relato da sua morte é algo que coaduna com as palavras de V. Exª, ou seja, não se pode admitir ditadura de qualquer espécie. Ditadura é ditadura. Viola a Constituição, viola as leis, ofende os direitos humanos e, sem sombra de dúvida, deixa uma marca no País. Mais acerto ainda tem V. Exª ao dizer que é um crime que já deve ser apurado pela Comissão da Verdade, que está sendo instituída agora por lei. Sempre se soube que, de uma forma ou de outra, David Capistrano teve um fim trágico; agora, mais do que trágico, teve um fim semelhante ao de Tiradentes, não é verdade? Um homem que foi esquartejado. É algo inaceitável! Inaceitável é a morte em qualquer circunstância. Mas qual a razão dessa violência? Como disse V. Exª, a anistia pôs um manto para que não houvesse, no futuro, um grau de rivalidade permanente, tentou consolidar uma paz futura no Brasil, que acabou acontecendo. Mas isso não impede que esses crimes sejam apurados. Não impede que o Brasil conheça a verdade. Não impede, inclusive, que esse memorial, que V. Exª levanta a hipótese de existir, seja, sim, erigido para que essa página possa ser virada. Alguém disse, relembrando um escritor, que para virar a página é preciso ler a página. É o que V. Exª está propondo. Vamos ler essa página. Vamos descobrir tudo o que aconteceu, porque até agora só se sabe uma parte. Que essa Comissão seja composta por homens como V. Exª, historiadores, homens desapaixonados, embora a questão seja apaixonante, que possa trazer de fato o relato para o Brasil do que, efetivamente, aconteceu. E que nós, finalmente, consigamos enxergar a realidade. Efetuemos as punições, aquelas que possam ainda acontecer. Reparemos, inclusive através de indenização, o que ainda possa ser reparado, mas, especialmente, que o nosso acerto de contas com esse período trágico e recente finalmente se dê, para que situações, embora tão horríveis quanto essa, possam vir a público e consigamos enxergar realmente a violência que foi esse período negro no Brasil. Parabéns! V. Exª continua, para a nossa felicidade, sendo um grande líder e um dos maiores vultos de todos os tempos, da história do nosso Congresso, com quem tenho a honra extraordinária de conviver.

            O SR. JARBAS VASCONCELOS (Bloco/PMDB - PE) - Senador Demóstenes Torres, muito obrigado pelo seu aparte, sempre oportuno e com conteúdo.

            V. Exª concorda plenamente que ditadura não tem cor, não tem ideologia, pode ser a ditadura de Pinochet no Chile, a de Hugo Chávez na Venezuela ou a de Fidel em Cuba, sempre é ditadura. Temos de nos insurgir e combatê-la.

            Temos de explicitar para o Brasil, sobretudo o Brasil das novas gerações, o que foi a ditadura militar no Brasil.

            É importante ressaltar que entre os crimes, o mais bárbaro, o mais hediondo é torturar uma pessoa indefesa.

            Levantar esse assunto não é revanchismo, a anistia foi concedida a todos; ficou claro, na Constituinte, que não havia vencidos e nem vencedores, mas é muito importante que relatos como esses, da morte de David Capristano, feito por um ex-agente de polícia, de vulgo Carioca, seja apurado, assim como o desaparecimento de Rubens Paiva em circunstâncias até hoje não esclarecidas.

            Pretendo solicitar ainda, Sr. Presidente, ao Senador Aloysio que se dê prioridade às investigações sobre a tortura e o bárbaro e perverso assassinato de David Capistrano, relatado com riqueza de detalhes no livro Sem Vestígios”, da jornalista Taís Morais, publicado em 2008, que também serviu de referência para o texto de Mika Lins.

            O Brasil precisa se reencontrar consigo mesmo e esclarecer de forma definitiva, sem quaisquer dúvidas, casos como o da bárbara morte de David Capistrano, o desaparecimento de Rubens Paiva e de centenas de assassinatos de brasileiros por setores do aparelho repressivo do regime ditatorial.

            Esses episódios representam páginas incompletas da História do Brasil, representam um período sombrio, no qual a barbárie foi patrocinada pelo Estado, os abusos e os desrespeitos aos direitos humanos tomaram proporções assustadoras.

            Não se trata de revanchismo, mas sim de uma necessidade premente do nosso País de se transformar numa sociedade democrática e desenvolvida de forma plena, jogando luz onde a história ainda é marcada pela escuridão.

            Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente Mozarildo Cavalcanti.

 

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DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR JARBAS VASCONCELOS EM SEU PRONUNCIAMENTO.

(Inserido nos termos do art. 210, inciso I e §2º, do Regimento Interno.) ******************************************************************************************

Matéria referida:

- A outra vida do tio Enéas, Artigo da Folha de S.Paulo, de Mika Lins.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/10/2011 - Página 43569