Discurso durante a 196ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Críticas à qualidade da Democracia brasileira.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ESTADO DEMOCRATICO.:
  • Críticas à qualidade da Democracia brasileira.
Aparteantes
Ana Amélia.
Publicação
Publicação no DSF de 28/10/2011 - Página 44464
Assunto
Outros > ESTADO DEMOCRATICO.
Indexação
  • ANALISE, ARTIGO DE IMPRENSA, PERIODICO, CONGRESSO EM FOCO, DISTRITO FEDERAL (DF), ASSUNTO, CRITICA, QUALIDADE, DEMOCRACIA, BRASIL, MOTIVO, AUSENCIA, ETICA, RELACIONAMENTO, PARTIDO POLITICO, GOVERNO, NECESSIDADE, ELABORAÇÃO, POLITICAS PUBLICAS, ATENÇÃO, FUTURO, PAIS.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Está bem, Presidente.

            Sr. Presidente, o assunto de que vou falar mereceria muitas horas, mas não por mim. Por mim, eu creio que dez minutos são suficientes. Mereceria muitas horas, meses, talvez mesmo alguns anos por parte de nós todos juntos. O que quero lembrar aqui, começando a minha fala, Sr. Presidente e Senadora Ana Amélia, é que aconteceu, há pouco mais de 100 anos, na Bahia, um movimento de revolta liderado por um senhor chamado Antônio Conselheiro.

            Dezenas de repórteres tomaram conhecimento - recentemente, até, um grande escritor escreveu um livro sobre isso, o Prêmio Nobel Mario Vargas Lhosa -, mas foi preciso um, chamado Euclides da Cunha, para chegar lá como repórter e, em vez de apenas descrever o que via, descrevê-lo fazendo uma análise sociológica daquele momento, daquela guerra, descobrindo, por exemplo, que a briga não era apenas entre o exército e os rebeldes. A briga era entre o campo e a cidade; a briga era entre a mentalidade imperial e a mentalidade republicana; a briga era entre uma elite que estava abandonando a Igreja e uma população religiosa. Foi isso que fez Euclides da Cunha ficar na história, porque ele não ficou apenas no superficial.

            Eu digo isso para dizer que, lamentavelmente, quase todos os jornalistas de hoje e nós próprios não vamos ficar na história pela análise que fazemos do que acontece, hoje, na política brasileira. Pior ainda, pela análise que nós nem fazemos. Nós apenas olhamos o superficial. Esses últimos dias têm sido prova disso. Têm sido prova em alguns assuntos que nós votamos e têm sido prova no evento que aconteceu, envolvendo o Ministro do Esporte e o Governador do Distrito Federal quando ele era Ministro.

            Nós não estamos fazendo uma espécie de sociologia da política atual. Nós estamos apenas descrevendo o superficial. Nós não estamos percebendo, por exemplo, que o que acontece caracteriza o que um jornalista, sim, conseguiu mostrar hoje, numa coluna na revista Congresso em Foco, o Rudolfo Lago: a ideia de que temos uma democracia com baixa qualidade, Senadora Ana Amélia. É muito importante.

            Esse é um conceito sociológico, que sai da superficialidade, importante, de quem paga dinheiro a quem; de quanto é transferido de uma conta do Governo para a ONG. Isso é fundamental, mas não é profundo. O que é profundo é quando a gente vê Rudolfo Lago citar o escritor, o intelectual Kurt Weyland, que levanta a ideia de que o Brasil construiu uma crescente e sustentável democracia, que é cada vez mais sustentável, mas cada vez com menos qualidade. E dá para a gente perceber essa baixa qualidade que esse senhor chama de presidencialismo de coalizão, que é quase um presidencialismo imperial, quase um imperial comprado na base de cargos, na base de fechar os olhos para malfeitos.

            Isso nos leva a analisar o que está por trás desses fatos que lemos nos jornais sem aprofundar. Por exemplo, está assim por baixo a realidade de um país, de uma política, de uma democracia onde os partidos não têm causas; só interesses; onde os partidos não têm visão; só nariz. Não estamos mais fazendo a política dos que olham com visão do futuro; estamos fazendo a política dos políticos que cheiram para saber como ficam no poder. Isso leva a uma degradação do processo político. Isso leva a uma quebra da qualidade da democracia, ainda mais quando esses partidos, sem ideologias, sem propostas, sem causas, em vez de servirem ao País, que é obrigação de todo partido, eles querem que o partido sirva a eles, na troca de favores, na troca de interesses, na garantia de cargos, mas não cargos para transformar o Brasil. Cargos para exercer um poder menor, com p minúsculo; não com p maiúsculo, que as grandes transformações de um país exigem.

            Se houvesse um Euclides da Cunha, creio que ele estaria descrevendo, Senadora Ana Amélia, o cinismo que está tomando conta de nós todos da classe política brasileira, uns já entregues ao cinismo, outros resistindo, mas como se uma onda chegasse para nós.

            E o que é mais triste para mim, que esse repórter sociólogo diria, é que esse cinismo está tomando conta da jovem militância dos partidos. Nossos partidos não têm causa e têm uma juventude que está ficando cínica. É aquela juventude que diz: o que estão dizendo não apareceu na televisão, então não é verdade. Não apareceu o Governador pegando o dinheiro, filmado na hora, então não importa, não é importante. É o cinismo que está tomando conta. E um cinismo ainda maior de dizer: não há como fazer política diferente. O cinismo de dizer: todos fazem isso.

            Isso é pior até do que a transferência de dinheiro do setor público para o privado, que é uma coisa gravíssima, um crime. Aliás, um crime que o nosso cinismo está fazendo chamar de corrupção, em vez de chamar de ladroagem. Se alguém bate uma carteira na rua e pega R$100,00 do bolso de alguém para o seu, isso é chamado de roubo. Se alguém pega R$100 milhões simplesmente manejando contas do setor público para o setor privado, isso não é roubo, é corrupção. Essa ideia de corrupção degrada a força do conceito de roubo.

            Pois bem, se tivéssemos um Euclides da Cunha hoje - e felizmente o Rudolfo Lago, de certa maneira, deu um toque nisso, senão eu não estaria nem aqui falando nesse assunto -, ele diria que esse cinismo, que surge da falta de causa, impede o nascimento de causas. Ele diria também, terceiro - e depois eu passo ao aparte -, que faz parte da degradação da política algo que acontece aqui nesta Casa, esse tal de voto por liderança sem que a liderança discuta com a gente.

            É claro que há momentos em que se faz acordo. Mas, mesmo no acordo, a gente deveria votar, para o povo saber como cada um de nós vota, se de acordo com o líder ou contra o líder. Para que o povo saiba de que lado nós estivemos em cada momento. Nós não estamos fazendo isso. A quantidade de assuntos importantes em que não posso dizer como votei historicamente. Posso dizer aqui, mas ficar registrado nas Atas não pode, porque os líderes se reuniram e disseram que estavam de acordo. E, em geral, sem consultar a gente.

            Se consultassem e cada um desse a sua opinião e a maioria do partido tomasse uma posição e fechasse questão, os que estivessem dissidentes deveriam ter a chance de dizer que não quiseram, até para serem punidos no partido. Ou poderiam se submeter à vontade da maioria do seu partido. Não estaria incorreto se não fosse uma questão de ética. Agora, não ter a chance...

            E a história de a gente votar ficando como está?” É uma vergonha! Isso daí, em assembleia de estudante, nem se faz mais, que eu saiba. Aqui, de vez em quando, a gente descobre que a coisa foi aprovada porque ninguém se mexeu; e não se mexeu porque estava descuidado; e estava descuidado porque ninguém está dando atenção à importância dos assuntos que estão em votação. Tudo isso faz com que a democracia tenha uma baixa qualidade, como diz esse Sr. Weyland, citado pelo Rudolfo Lago.

            Eu vou interromper aqui para passar a palavra à senhora, porque eu sei que vai enriquecer, seja a favor ou contra o que estou dizendo, que é outra coisa que está nos desmoralizando. Aqui não tem contraditório quase. Às vezes, até têm posições diferentes, mas não se chocam no embate que deveria ser obrigação nossa. Parlamentar é debater, é conversar, é ter embate e depois aceitar a posição dos outros. Não estamos fazendo isso. Aqui cada um vem, chega, fala e pronto.

            Eu vou passar a palavra, porque eu tenho certeza de que aparte sempre tende a engrandecer, seja criticando, seja apoiando.

            A Srª Ana Amélia (Bloco/PP - RS) - Senador Cristovam Buarque, vou ser breve, porque o Senador Roberto Requião, rigoroso que é, já disse que são só dez minutos para o senhor. Então eu espero que ele desconte o meu aparte do seu pronunciamento. Eu queria apenas dizer, de acordo com essa visão, que V. Exª tem uma parte, sim, de razão quanto à qualidade da política e sobretudo do sistema que nós vivemos. Não penso que a coalizão seja um mal em si. O mal é como ela é feita, por que é feita, por quem é feita, quem integra essa coalizão. Então aí é que está a questão a ser discutida, Senador Cristovam Buarque. Talvez seja também uma preocupação da Presidenta Dilma Rousseff nas substituições que tem feito no seu Governo e na forma como ela tem agido. Não devem ser fáceis para a Presidenta da República esses momentos dessas decisões tão complicadas. Mas isso não se deve à questão da coalizão em si, mas à forma como ela é feita, sem compromissos programáticos, e também às pessoas que são envolvidas nesse processo. Então penso que nós devemos buscar uma qualificação da política, das ações da política, uma qualificação da coalizão, da governabilidade e também uma participação maior do grupo de Parlamentares nas decisões da liderança. Ontem, por acordo de liderança - certamente V. Exª gostaria muito de votar na Comissão da Verdade, mas foi acordo de liderança -, não votamos. Então entendo V. Exª e partilho também dessas apreensões a respeito dessa matéria. Muito obrigada, Senador Cristovam.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PDT - DF) - Agradeço, Senadora. E quero dizer que a coalizão é fundamental na democracia, Senador Sarney.

            Mas existem as coalizões de causas. Estamos vivendo uma espécie de coalizão de ferro, uma coalizão que não muda, independentemente da linha que se vai seguir, que nem se importa com a linha que se vai seguir em relação às propostas. É uma coalizão que tem por base acordos que não estão claros, em sintonia, além da governabilidade. E a governabilidade é importante, mas para fazer algumas determinadas, que precisariam ficar claras.

            Continuo, ainda, sobre essa linha.

            A ideia de que temos uma democracia de baixa qualidade, definida por esse professor, é a de que estamos com uma democracia sem compromisso claro com o futuro, e a melhor prova disso é o voto que se deu aqui para os royalties do petróleo. Corretíssima eu acho a proposta de dizer que o petróleo pertence ao Brasil, mas o incorreto é esquecer que o Brasil vai além das gerações atuais.

            Faz parte dessa democracia de baixa qualidade a fuga do debate, que seria a própria razão de ser da gente. Faz parte dessa democracia de baixa qualidade colocarmos o marketing, a mídia, a aparência na frente da realidade. Faz parte dessa democracia sem compromisso aquilo que não aparece, porque não temos hoje um Euclides da Cunha para analisar um fenômeno que parecia uma simples guerrilha como um fenômeno muito mais profundo, de visões diferentes do mundo.

            E faz parte, finalmente, de toda esta situação, da democracia de baixa qualidade, a falta de crença nos políticos, e aí não somos só nós, os brasileiros. Pesquisa de ontem, nos Estados Unidos, mostra que a crença no Congresso está abaixo de 90%. Não é só nosso.

            Aí, Senador Sarney, o senhor uma vez, nessa mesma cadeira, disse-me algo que tenho citado: nós não entendemos, ainda, o papel dos novos meios de comunicação.

(Interrupção do som.)

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PDT - DF. Fora do microfone.) - Peço um minuto apenas.

            Os Parlamentos do mundo ainda não entenderam que vivemos um novo tempo nas relações entre eleitos e eleitores, que nos dizem as coisas todos os dias, não só a cada quatro anos.

            Nós não soubemos ainda entender como a gente ouve, sem se submeter a eles, porque às vezes eles pensam apenas no curto prazo do interesse imediato, e não nos interesses nacionais, de longo prazo, daí por que o Congresso vai existir enquanto houver uma democracia de qualidade.

            A democracia direta seria comprometida apenas com o imediato, com o interesse de cada um, somando os interesses da maioria como se fossem representantes de todos. E não são. Não só porque não representam os que não estão aqui ainda, porque são as próximas gerações, mas porque não levam em conta e respeitam certas vontades legítimas das minorias.

            Encerro, Senador, dizendo que fiquei preocupado, mas contente ao ler este artigo de hoje de Rudolfo Lago, pois percebi que tem gente começando a querer fazer uma análise mais do que apenas jornalística dos fatos que acontecem, querem fazer uma análise sociológica da realidade que vivemos hoje.

            Como eu disse no começo, isso não vai exigir nem dez nem vinte minutos e nem fala de um só Senador, isso vai exigir um debate muito grande de nós e atrair para cá esses intelectuais do Brasil para que analisem por que estamos nos comportando dessa maneira e não apenas descrevam o comportamento da gente. É muito pouco o simples descrever de uma realidade. É preciso analisá-la, entendê-la, para, depois, modificá-la.

            Era isso o que tinha para falar, Sr. Presidente, agradecendo o tempo que me deu. Espero que outros artigos como este do Rudolfo Lago possam nos despertar para o que há de mais profundo.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 28/10/2011 - Página 44464