Discurso durante a 208ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentários sobre matéria publicada na Revista Época, intitulada “Meu Encontro com Nem”.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA.:
  • Comentários sobre matéria publicada na Revista Época, intitulada “Meu Encontro com Nem”.
Publicação
Publicação no DSF de 18/11/2011 - Página 47663
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • REGISTRO, ARTIGO DE IMPRENSA, PUBLICAÇÃO, PERIODICO, EPOCA, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), ASSUNTO, ENTREVISTA, TRAFICANTE, CHEFE, QUADRILHA, TRAFICO, DROGA, FAVELA, RELAÇÃO, COMERCIO, ENTORPECENTE, CORRUPÇÃO, POLICIA.
  • COMENTARIO, NECESSIDADE, POVO, OPORTUNIDADE, ACESSO, EDUCAÇÃO, PRATICA ESPORTIVA, PARTICIPAÇÃO, RIQUEZAS, PAIS.

            O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Prezado Presidente, Senador Waldemir Moka, Srs. Senadores, nas últimas semanas, os meios de comunicação do Brasil e do mundo reportaram com destaque a Operação de Ocupação da Favela da Rocinha, denominada “Choque de Paz”, pelas forças de segurança do Estado do Rio de Janeiro, cujo principal responsável é o Governador Sérgio Cabral e que teve no Secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, seu coordenador maior.

            Felizmente, aquela ousada operação foi realizada com um planejamento estratégico muito bem feito, com informação prévia aos seus duzentos mil moradores, com a participação de mais de 400 policiais muito bem treinados, sem que tenha havido quaisquer tiros e derramamento de sangue. Houve, sim, inúmeras prisões e aprisionamento de 132 armas, desde o início da operação até hoje, muitas das quais estavam escondidas, enterradas no mato e embaixo da terra e de concreto.

            De todas as matérias publicadas, muitas das quais de ótima qualidade, houve uma excepcional que acredito deva ser destacada. Aqui resolvi lê-la, pois considero-a de grande relevância para que compreendamos melhor as razões pelas quais muitos lugares das regiões metropolitanas de nosso País sofram com problemas tais como os que lá existem e ainda perduram. É a que foi publicada na revista Época, em 14 de novembro último, escrita pela jornalista Ruth de Aquino, sob o nome “Meu Encontro com Nem”. Ruth de Aquino, que já fez outras coberturas no Brasil e no exterior de alto risco, na própria Rocinha, na Colômbia, em Angola, durante a guerra civil, ali teve um encontro com Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, considerado o principal chefe da quadrilha de narcotráfico, que, há seis anos, pelo menos, realizava ações que envolviam o comércio de drogas, a corrupção de policiais que protegiam aquelas ações e a morte de diversas pessoas, inclusive adolescentes, em circunstâncias ainda por serem esclarecidas, poucos dias antes de sua prisão.

            A matéria e o diálogo com Nem são tão ilustrativos e reveladores da história e das percepções de Nem, inclusive ao diagnosticar as razões que fizeram ele próprio e muitos jovens a entrar no caminho do crime, e ao reconhecer méritos nas ações governamentais que possam colaborar para diminuir a criminalidade e até mesmo na própria ação que levou à sua prisão que vale a pena ler a íntegra dessa matéria de Ruth de Aquino.

            Não sei se o prezado Senador Pedro Taques teve a oportunidade de ler a Época desta última semana. Eu gostaria aqui de ressaltar, Senador Cícero, se eu fosse uma pessoa para indicar matérias que merecem, digamos, o Prêmio Esso de Jornalismo ou algo assim, eis uma matéria que valeria estar entre as que merecem um premio de melhor reportagem.

            Diz Ruth de Aquino, que escreveu, em 11 de novembro deste ano, “Meu encontro com Nem”:

Era sexta-feira 4 de novembro. Cheguei à Rua 2 às 18 horas. Ali fica, num beco, a casa comprada recentemente por Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, por R$115 mil. Apenas dez minutos de carro separam minha casa no asfalto do coração da Rocinha. Por meio de contatos na favela com uma igreja que recupera drogados, traficantes e prostitutas, ficara acertado um encontro com Nem. Aos 35 anos, ele era o chefe do tráfico na favela havia seis anos. Era o dono do morro.

Queria entender o homem por trás do mito do “inimigo número um” da cidade. Nem é tratado de “presidente” por quem convive com ele. Temido e cortejado. Às terças-feiras, recebia a comunidade e analisava pedidos e disputas. Sexta era dia de pagamentos. Me disseram que ele dormia de dia e trabalhava à noite - e que é muito ligado à mãe, com quem sai de braços dados, para conversar e beber cerveja. Comprou várias casas nos últimos tempos e havia boatos fortes de que se entregaria em breve.

Logo que cheguei, soube que tinha passado por ele junto à mesa de pingue-pongue na rua. Todos sabiam que eu era uma pessoa “de fora”, do outro lado do muro invisível, no asfalto. Valas e uma montanha de lixo na esquina mostram o abandono de uma rua que já teve um posto policial, hoje fechado. Uma latinha vazia passa zunindo perto de meu rosto - tinha sido jogada por uma moça de short que passou de moto.

Aguardei por três horas, fui levada a diferentes lugares. Meus intermediários estavam nervosos porque “cabeças rolariam se tivesse um botãozinho na roupa para gravar ou uma câmera escondida”. Cheguei a perguntar: “Não está havendo uma inversão? Não deveria ser eu a estar nervosa e com medo?”. Às 21 horas, na garupa de um mototáxi, sem capacete, subi por vielas esburacadas e escuras, tirando fino dos ônibus e ouvindo o ruído da Rocinha, misto de funk, alto-falantes e televisores nos botequins. Cruzei com a loura Danúbia, atual mulher de Nem, pilotando uma moto laranja, com os cabelos longos na cintura. Fui até o alto, na Vila Verde, e tive a primeira surpresa.

LOGÍSTICA

A Rocinha é uma das maiores favelas do Rio. Entre os bairros ricos da Zona Sul e a Barra da Tijuca, é um ponto estratégico para o crime.

Não encontrei Nem numa sala malocada, cercado de homens armados. O cenário não podia ser mais inocente. Era público, bem iluminado e aberto: o novo campo de futebol da Rocinha, com grama sintética. Crianças e adultos jogavam. O céu estava estrelado e a vista mostrava as luzes dos barracos que abrigam 70 mil moradores. Nem se preparava para entrar em campo. Enfaixava com muitos esparadrapos o tornozelo direito. Mal me olhava nesse ritual. Conversava com um pastor sobre um rapaz viciado de 22 anos: “Pegou ele, pastor? Não pode desistir. A igreja não pode desistir nunca de recuperar alguém. Caraca, ele estava limpo, sem droga, tinha encontrado um emprego... me fala depois”, disse Nem. Colocou o meião, a tornozeleira por cima e levantou, me olhando de frente.

Foi a segunda surpresa. Alto, moreno e musculoso, muito diferente da imagem divulgada na mídia, de um rapaz franzino com topete descolorido e riso antipático, como o do Coringa. Nem é pai de sete filhos. “Dois me adotaram; me chamam de pai e me pedem bênção.” O último é um bebê com Danúbia, que montou um salão de beleza, segundo ele “com empréstimo no banco, e está pagando as prestações”. Nem é flamenguista doente. Mas vestia azul e branco, cores de seu time na favela. Camisa da Nike sem manga, boné, chuteiras.

- Em que posição você joga, Nem? - perguntei.

- De teimoso - disse, rindo -, meu tornozelo é bichado e ninguém me respeita mais em campo.

Foi uma conversa de 30 minutos, em pé. Educado, tranquilo, me chamou de senhora, não falou palavrão e não comentou acusações que pesam contra ele. Disse que não daria entrevista. “Para quê? Ninguém vai acreditar em mim, mas não sou o bandido mais perigoso do Rio”. Não quis gravador nem fotos. Meu silêncio foi mantido até sua prisão. A seguir, a reconstituição de um extrato de nossa conversa.

“Acho que em menos de 20 anos a maconha vai ser liberada no Brasil. Já pensou quanto as empresas iam lucrar?”

Nem, líder do tráfico:

UPP “O Rio precisava de um projeto assim. A sociedade tem razão em não suportar bandidos descendo armados do morro para assaltar no asfalto e depois voltar. Aqui na Rocinha não tem roubo de carro, ninguém rouba nada, às vezes uma moto ou outra. Não gosto de ver bandido com um monte de arma pendurada, fantasiado. A UPP é um projeto excelente, mas tem problemas. Imagina os policiais mal remunerados, mesmo os novos, controlando todos os becos de uma favela. Quantos não vão aceitar R$100 para ignorar a boca de fumo?”

Beltrame “Um dos caras mais inteligentes que já vi. Se tivesse mais caras assim, tudo seria melhor. Ele fala o que tem de ser dito. UPP não adianta se for só ocupação policial. Tem de botar ginásios de esporte, escolas, dar oportunidade. Como pode Cuba ter mais medalhas que a gente em Olimpíada? Se um filho de pobre fizesse prova do Enem com a mesma chance de um filho de rico, ele não ia para o tráfico. Ia para a faculdade.”

            Religião “Não vou para o inferno. Leio a Bíblia sempre, pergunto...

            (Interrupção do som.)

            O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP) - Espero a sua generosidade, como foi hoje dada aos demais.

Leio a Bíblia sempre, pergunto a meus filhos todo dia se foram à escola, tento impedir garotos de entrar no crime, dou dinheiro para comida, aluguel, escola, para sumir daqui. Faço cultos na minha casa, chamo pastores. Mas não tenho ligação com nenhuma igreja. Minha ligação é com Deus. Aprendi a rezar criancinha, com meu pai. Mas só de uns sete anos para cá comecei a entender melhor os crentes. Acho que Deus tem algum plano para mim. Ele vai abrir alguma porta.”

Prisão “É muito ruim a vida do crime. Eu e um monte queremos largar. Bom é poder ir à praia, ao cinema, passear com a família sem medo de ser perseguido ou morto. Queria dormir em paz. Levar meu filho ao zoológico. Tenho medo de faltar a meus filhos. Porque o pai tem mais autoridade que a mãe. Diz que não, e é não. Na Colômbia, eles tiraram do crime milhares de guerrilheiros das Farc porque deram anistia e oportunidade para se integrarem à sociedade. Não peço anistia. Quero pagar minha dívida com a sociedade.

Drogas “Não uso droga, só bebo com os amigos. Acho que em menos de 20 anos a maconha vai ser liberada no Brasil. Nos Estados Unidos, está quase. Já pensou quanto as empresas iam lucrar? iam engolir o tráfico. Não negocio crack e proíbo trazer crack para a Rocinha, porque isso destroi as pessoas, as famílias e a comunidade inteira.

Conheço gente que usa cocaína há 30 anos e que funciona. Mas com o crack as pessoas assaltam e roubam tudo na frente.

Recuperação "Mando para a casa de recuperação na Cidade de Deus garotas prostitutas, meninos viciados. Para não cair na vida nem ficar doente com aids, essa meninada precisa ter família e futuro. A UPP, para dar certo, precisa fazer a inclusão social dessas pessoas. É o que diz o Beltrame. E eu digo a todos os meus que estão no tráfico: a hora é agora. Quem quiser se recuperar vai para a igreja e se entrega para pagar o que deve e se salvar."

Ídolo "Meu ídolo é o Lula. Adoro o Lula. Ele foi quem combateu o crime com mais sucesso. Por causa do PAC da Rocinha. Cinquenta dos meus homens saíram do tráfico para trabalhar nas obras. Sabe quantos voltaram para o crime? Nenhum. Porque viram que tinham trabalho e futuro na construção civil."

Policiais "Pago muito por mês a policiais. Mas tenho mais policiais amigos do que policiais a quem eu pago. Eles sabem que eu digo: nada de atirar em policial que entra na favela. São todos pais de família, vêm para cá mandados, vão levar um tiro sem mais nem menos?"

Tráfico "Sei que dizem que entrei no tráfico por causa da minha filha. Ela tinha 10 meses e uma doença raríssima, precisava colocar cateter, um troço caro, e o Lulu (ex-chefe) me emprestou o dinheiro. Mas prefiro dizer que entrei no...

            O SR. PRESIDENTE (Sérgio Souza. Bloco/PMDB - PR) - Senador Suplicy, vou conceder a V. Exª mais dois minutos. Já concedi outros três.

            O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP) - ...

Mas prefiro dizer que entrei no tráfico porque entrei. E não compensa."

Nem estava ansioso para jogar futebol. Acabara de sair da academia onde faz musculação. Não me mandou embora, mas percebi que meu tempo tinha acabado. Desci a pé. Demorei a dormir.

            Assim conclui Ruth de Aquino.

            Que reportagem formidável! Ela me faz muito pensar que é importante, sim, assegurarmos a todos que vivem na Rocinha e em todas as regiões metropolitanas, onde há condições semelhantes àquela, propiciar as boas oportunidades de educação, de realização de esportes, de manifestações culturais as mais diversas, mas também é importantíssimo assegurar-se como um direito à cidadania, o que todos devem ter neste País, o direito inalienável de participar da riqueza da Nação, inclusive aquelas pessoas que vivem na região maravilhosa do Rio de Janeiro, da Rocinha, onde se tem uma beleza fantástica de vista e é importante que eles tenham direito de participar da riqueza do Estado do Rio de Janeiro, que atrai tantas pessoas; que tenha o direito de participar da riqueza inclusive do pré-sal. É um direito inalienável que todas as pessoas tenham uma renda básica de cidadania, porque não estariam sujeitos às condições que levaram o Nen e muitos dos jovens da Rocinha a entrar para a vida do crime.

            Muito obrigado, Sr. Presidente. Eu acho muito importante que venhamos a refletir sobre as razões da criminalidade ali na Rocinha e em tantos outros lugares do Brasil como nos bairros carentes da metrópole de São Paulo.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/11/2011 - Página 47663