Fala da Presidência durante a 143ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Reverência à memória do cineasta, ator e escritor Glauber Rocha, pela passagem dos trinta anos de seu falecimento.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Fala da Presidência
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Reverência à memória do cineasta, ator e escritor Glauber Rocha, pela passagem dos trinta anos de seu falecimento.
Publicação
Publicação no DSF de 24/08/2011 - Página 33972
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • ENCERRAMENTO, SESSÃO, HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE MORTE, ATOR, DIRETOR, CINEMA.

            O SR. PRESIDENTE (José Sarney. Bloco/PMDB - AP. Com revisão do Presidente.) - Eu quero registrar também a presença aqui, em nosso plenário, do representante da Agência Nacional do Cinema - Ancine, o Sr. Ronaldo Galvão, bem como a presença do Coletivo Rodamoinho, realizador da mostra Da Fome ao Sonho, com retrospectiva da filmografia de Glauber Rocha, representado pelo Sr. Victor Guimarães.

            Cabe-me encerrar esta sessão, depois de esgotada a lista de oradores, e é com uma profunda emoção, posso dizer mesmo comoção, que eu o faço.

            Nos últimos tempos, tenho tido a sensação, com os meios de comunicação em tempo real, de que há uma certa compressão do tempo. Tudo acontece ao mesmo tempo e, assim, as coisas vão se aproximando. E essa sensação me faz que eu pense que a morte do Glauber foi há poucos dias.

            E me recordo que eu, ali, segunda fileira, pedi a palavra para comunicar a morte do Glauber e o homenagear nesta Casa. Eu não compreendia, não via o Brasil cultural com essa ausência, que, para mim, sempre foi o mesmo sentimento com que o Brasil recebia o que eu recebia, que era a notícia da morte prematura desse grande intelectual, desse, posso dizer assim, gênio, que foi Glauber Rocha.

            Portanto, não vou aqui de maneira nenhuma querer fazer uma análise da sua obra, tão grande ela é, tão estudada, tão louvada. Mas dizer apenas que esta sessão do Senado tem uma importância grande, porque ela se destina a manter viva a memória de Glauber Rocha. E esta Casa está fazendo justamente isso, participando para que não se mergulhe no esquecimento ou se esmaeça na devoção a presença de Glauber Rocha.

            Portanto, as minhas palavras são de admiração e carinho, porque são feitas com as imagens que guardo dele em minha memória para sempre.

            Acho que na história da inteligência brasileira Glauber Rocha foi um dos instantes maiores que nós tivemos: romancista, poeta, jornalista, cineasta. Marcou de genialidade todas essas atividades do espírito. Ele resumiu sua presença nesses campos como sendo apenas, como ele dizia, um intelectual, e acrescentava com sua marca polêmica da sua visão do mundo: “não me cobrem coerência”.

            Glauber consumiu a sua vida com a presença constante da paixão. Tudo que ele fazia era com uma profunda e grande paixão. Não era, Dona Lúcia? A senhora, mais testemunha do que eu, sabe disso.

            Quando se via ou se ouvia Glauber, tinha-se a impressão de um permanente vulcão, um vulcão intelectual numa atividade ininterrupta de negações e de afirmações. Eu tive o privilégio de muitas vezes conviver com ele em longas noites e em longas horas de reflexão sobre a cultura, sobre o Brasil e seus problemas. Dona Lúcia, há pouco, me contava -- e eu vou repetir isso aqui com muito orgulho --: sempre que ele falava que viria a Brasília, dizia: “Vou a Brasília conversar com Sarney.” E consumíamos nessas conversas noites inteiras e até madrugadas.

            Quando se via ou se ouvia Glauber, portanto, tinha-se a impressão permanente desse vulcão. A racionalidade lhe despontava em pequenos clarões, lampejos até desnecessários, porque tudo era uma busca incessante da causa das causas, era uma indagação contínua e uma angústia intelectual que sempre marcaram a sua trajetória.

            Morreu com 42 anos, o que realmente é um fato capaz de provocar dentro de cada um de nós um sentimento de perplexidade, chegando às raias até da incompreensão.

            Glauber era um homem indomável. Nada conseguiu amarrá-lo. Nenhum deus conseguiu aprisionar o seu espírito, nenhuma ideologia também conseguiu prendê-lo, nenhum homem, nenhum carisma, nenhuma mulher conseguiu escravizá-lo, nada, porque dentro dele havia um desejo de liberdade, dessa liberdade feita da vastidão de todos os gestos, sem teias, sem limites e sem conveniências.

            Procuro traçar em traços muito leves essa personalidade que eu conheci e com quem convivi. Um homem que usava sua liberdade até o limbo de uma santa demência.

            Dentro disso tudo, o testemunho que posso dar é que poucas pessoas amaram tanto este País, sentiram tanto esta Pátria quanto Glauber Rocha. Havia no que ele falava, pulsava nele uma paixão por esta terra capaz de superar todos os seus ressentimentos, uma paixão límpida, paixão pura, paixão desvencilhada de tudo, porque era uma dádiva absoluta, a angústia maior de toda a sua vida.

            Ele venceu a tudo. Duelou com as patrulhas ideológicas, deixando-as ao largo. Enfrentou todos os fanatismos, cuspiu na mediocridade e enfrentou a incompreensão de quase todos.

            Eu canto o Glauber poeta que, na síntese de tudo redescobriu o mundo na transcendência das cores, na luz, na voz de comando ao iluminador, aos atores, no argumento, na trilha sonora, na busca da unidade de imagem. E o universo fantástico criado pelo homem, oleiro desse barro do nada que, depois, num fundo branco, gera emoções, vida e morte: faz chorar e exige lágrimas.

            O cinema para Glauber Rocha foi a sublimação do poeta. A poesia é a arte de Deus, porque antecede a criação. Foi ela que fez o mundo, a noite e o dia, o homem, a bailarina e o beija-flor.

            E como é feita de nada, de nada também é a poesia do cinema. Na tela é apenas o talento e a luz. O resto é obra da ciência e não da arte. Exige um ritmo para o corpo e um ritmo para o espírito. Glauber deu ao cinema brasileiro o direito de figurar nos momentos mais altos da inteligência nacional. Foi ele quem lhe trouxe o toque da genialidade, a ambição do definitivo e a busca de um grande lugar. Foi o pioneiro e profeta.

            Nelson Pereira dos Santos bem definiu a personalidade polêmica de Glauber Rocha quando disse:

            “Glauber fundou o cinema novo, e uma vez escreveu um artigo para acabar com o cinema novo.” E acrescentou: “Ele pode.”

            E Paulo Emílio Sales Gomes lembrou muito bem que Glauber era uma de nossas forças e nós, Brasil, a sua fragilidade.

            Não sei se devo contar aqui a história do filme que ficou celebre e que hoje faz parte de uma discussão nacional sobre cinema que é Maranhão 66, quando ele atendeu a um pedido meu: “Glauber, você poderia, queria filmar a minha posse?” Era uma ousadia para com ele, mas que a amizade permitia e, para surpresa minha, ele disse que ia fazer e fez um filme

            E ele, ao invés de filmar a posse, filmou a miséria, ele filmou o Maranhão, os casebres, seus tipos humanos. Quando esse filme foi apresentado num cinema de arte, na rua Paissandu, do Rio de Janeiro e apareceu “Posse do Governador Sarney” -- era 1966, calculem se num cinema de arte alguém agüentava assistir a uma posse de quem quer que fosse -- houve, de certo modo, uma reação muito grande do público. Depois de dez minutos, terminado o filme, a platéia levantou-se e aplaudiu, porque ele tinha tido inclusive a genialidade de pegar a minha voz, mudar a ciclagem de 50 para 60 e de 60 para 50 de tal modo que ela parece uma voz de fantasma no meio de toda aquela beleza que ele conseguiu fazer do filme.

            Vou interromper porque realmente falando aqui eu acho que os nossos pedidos foram atendidos. Eu posso dizer à Paloma e à Dª Lúcia que a Ministra da Cultura acaba de mandar informar ao Senado de que o Templo Glauber terá todo o seu apoio. (Palmas.)

            Disse antes que o Glauber não foi escravo de ninguém. Eu disse que nenhuma mulher o escravizou, entretanto sua memória se fez escrava de uma mulher, de sua mãe, a tia Lúcia, que carregou todo esse acervo organizando, buscando meio para transformá-lo não em museu estático, mas num centro vivo -- o Tempo Glauber. Como ela contou que com mãos de mãe, de fada, ela conseguiu ver em seu filho desde menino o que ele seria e o talento que ele representava, e, então, guardava tudo o que ela podia guardar para que nós pudéssemos desfrutar daquele gênio que um dia desapareceria tão precocemente, como desapareceu.

            Depois de muita dificuldade, lembro de que assinei o protocolo quatro anos depois da morte dele para, juntos com Dª Lúcia, dar vida ao então chamado Espaço Glauber. Mais tarde, mais uma vez tive ocasião de interferir para preservar o sonho de dona Lúcia, já então com a colaboração decisiva de Paloma. Hoje, o Tempo Glauber é uma referência mundial na história do cinema. E, com satisfação, vemos que essa sessão frutificou, porque a Ministra se sentiu tocada e acaba de empenhar a sua palavra, perante o Senado, todos nós e o Brasil, de que o Tempo Glauber não vai de maneira nenhuma desaparecer -- nem desaparecerá. (Palmas.)

            Quem matou Glauber? Foi a vida, esmagada, com gosto de sal e de orvalho. Mas, quem entra na eternidade sem provar o saibo dessas amargas que só os artistas, os santos e heróis acalentam? E nessa sessão em homenagem a Glauber, eu devo recordar que dos santos não se festeja o dia do nascimento, mas o dia da sua morte.

            Para nós, o seu coração parado dá o sentimento das coisas infinitas. Acontecer é um verbo que dilacera coragem e põe à prova o nosso sentimento trágico, que Unamuno chamou de sentimento trágico da vida. Glauber não convive com o esquecimento. Jamais seu nome será associado ao silêncio dos túmulos, aos monumentos à morte, mas será sempre um convite e um monumento à vida.

            Seu testamento deixa uma herança que está sendo honrada. Sua vida foi um ritual à angústia; angústia como uma permanente busca cultural. Sua morte será uma lembrança de doação total ao cinema brasileiro. Seus filmes têm o sofrimento, o tédio da miséria, a força do povo, as artes pastorais e os pecados do ódio, mas acima de tudo têm presente as raízes culturais de nossa gente, tornadas eternas nas cenas que ele criou e que rolam o mundo, no fluxo das marés de gente que senta e levanta, das luzes que se acendem e se apagam, nas salas de projeção do Brasil e do mundo inteiro; e que continuarão enquanto o bicho homem souber dar vida às coisas mortas.

            De Glauber, meu amigo velho e querido, sempre ouvi que tinha medo da morte, mas acho que mais do que ele ter medo da morte, tínhamos nós, brasileiros, medo de que ele morresse; coisa, sem dúvida, que jamais acontecerá, porque, como disse, na história da inteligência brasileira ele será um ponto sempre imortal.

            (Palmas.)

            Com essas palavras eu quero declarar encerrada esta sessão e uma vez mais agradecer a presença de todos, principalmente de dona Lúcia, de Paloma, de Sara, do seu filho, do seu neto e de todos que estão aqui presentes.

            Muito obrigado a todos.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/08/2011 - Página 33972