Discurso durante a 225ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Considerações sobre a lei que institui o dia 16 de março como o Dia Nacional da Consciência das Mudanças Climáticas; e outro assunto.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA DO MEIO AMBIENTE. HOMENAGEM, DIREITOS HUMANOS.:
  • Considerações sobre a lei que institui o dia 16 de março como o Dia Nacional da Consciência das Mudanças Climáticas; e outro assunto.
Publicação
Publicação no DSF de 10/12/2011 - Página 53321
Assunto
Outros > POLITICA DO MEIO AMBIENTE. HOMENAGEM, DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • COMENTARIO, LEI COMPLEMENTAR, CRIAÇÃO, DIA NACIONAL, CONSCIENTIZAÇÃO, ALTERAÇÃO, CLIMA, IMPORTANCIA, UTILIZAÇÃO, DIA, OBJETIVO, DEBATE, ESTABELECIMENTO DE ENSINO, RELAÇÃO, ASSUNTO, REGISTRO, COMEMORAÇÃO, DIA INTERNACIONAL, DECLARAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, NECESSIDADE, PROMOÇÃO, IGUALDADE, ACESSO, SAUDE, EDUCAÇÃO, POPULAÇÃO.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente Paulo Paim - é muito oportuno que o senhor esteja na Presidência neste momento, pelo que vou falar -, Srs. Senadores, Srªs Senadoras, apenas falando de autoria de projeto, eu quero agradecer ao Presidente Marco Maia, que estava no exercício da Presidência, quando sancionou uma lei fruto de um projeto meu. Uma lei que aparentemente não é tão relevante, mas pode ter uma consequência muito positiva. É a lei que cria o dia 16 de março como Dia da Consciência das Mudanças Climáticas.

            Se nós soubermos usar esse dia 16 de março para debater em todas as escolas do Brasil, nas universidades brasileiras, em todas as partes, o problema mais do que das mudanças climáticas, mas de para onde vai o progresso, nós estaremos prestando um grande serviço.

            Uma dessas coisas que podemos discutir ao longo de um dia dedicado às mudanças climáticas, essa ideia de mudanças climáticas como símbolo da crise geral que atravessamos. Um dos itens tem a ver com o dia de amanhã, quando vamos comemorar 61 anos da Declaração dos Direitos Humanos, um marco na história da humanidade, graças às Nações Unidas.

            E é na comemoração desse dia, Senador Paim, que quero ler alguns desses direitos e fazer uma pequena consideração sobre eles.

            O primeiro artigo diz que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Elas nascem iguais, mas logo depois começam a ficar desiguais. Elas começam a ficar desiguais sobretudo porque as pessoas nascem duas vezes pelo menos: quando nascem biologicamente e quando nascem na escola, o nascimento intelectual. Os outros animais só precisam nascer uma vez. Os seres humanos precisas nascer cada dia, mas especialmente em dois momentos: quando é biologicamente um ser humano e quando começa a ser intelectualmente uma pessoa.

            Art. 2º: “Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição”.

            Esse art. 2º, tão bem-intencionado quanto o primeiro, fracassa, se não tivermos clareza de que, para haver essa igualdade, é preciso que haja acesso absolutamente igual a duas coisas: à saúde e à educação. Em relação as outras coisas, não há problema que haja desigualdade, dentro de certos limites, obviamente. Mas educação e saúde ou são iguais ou os direitos humanos não estão sendo respeitados.

            O art. 3º: “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”.

            Não é possível haver liberdade plena se a pessoa não teve a chance de entender o mundo. Não é livre plenamente aquele que não sabe o que ele tem direito de ser, a que ele tem direito, porque aí, sim, começa a liberdade a agir. Se você nasce numa prisão, vive numa prisão, acha que o mundo inteiro é aquela prisão, você pensa que é livre, mas você não é livre. A liberdade é daquele que sabe que existe um mundo onde não há prisões, e ele é capaz de caminhar por ele. E esse mundo de liberdade tem que ser construído. Ele não é apenas uma ideia; tem que ser construído, dando às pessoas a liberdade de escolher. Quem não tem liberdade de escolher não é livre. E quem não sabe o que pode escolher também não é livre.

            Art. 4º: “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão”.

            As pessoas leem isso, pensando no séc. XIX, quando escravidão era poder ser vendido e comprado no mercado de escravos. Não. Quem não teve a chance de aprender a ler é escravo em um mundo letrado. Em um mundo letrado, quem não tem acesso às letras não é livre. Nós temos que fazer com que essa Declaração dos Direitos Humanos, com toda a sua beleza, seja atualizada não no texto, isso não é preciso, mas na compreensão desse texto.

            Então, esse art. 4º, “ninguém será mantido em escravidão ou servidão”, tem que ser entendido no sentido de que a escola é igual para todos. E a saúde também, porque morto não é livre; doente tem sua liberdade restringida. Por isso, a Declaração dos Direitos Humanos tem que incluir a ideia da educação, como vou falar daqui a pouco.

            Art. 5º: “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.

            É, sim, tortura o estado de analfabetismo de uma pessoa. Uma pessoa que não é capaz de ler o nome do ônibus, Senador Wellington, estando na parada, está sendo torturada; torturada, porque toma o ônibus errado, torturada pelo constrangimento de ter que perguntar a quem está ao lado qual é aquele ônibus.

            Uma pessoa que entra numa farmácia, pede um remédio e não é capaz de ler o nome do remédio para saber se aquele que pediu é o que recebeu está sendo torturada e pode até sê-lo fisicamente, se o remédio que recebeu for outro. A mãe que não é capaz de ler a carta de um filho que mora longe está sendo torturada. É uma tortura!

            Não ensinar as pessoas a ler é manter a tortura, com a qual acreditamos, iludidos, ter acabado, há mais de três décadas. Não acabamos com a tortura no Brasil. Acabamos, talvez, com a tortura física, legitimada, legalizada por governos autoritários, mas não com a tortura nesse sentido pleno.

            “Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação”.

            Claro que é discriminado, sofre discriminação quem não teve acesso a saber que tem o direito de não ser discriminado.

            Art. 9º: “Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado”.

            No mundo letrado, o analfabeto é um exilado. Ele está exilado do mundo. Não é nem só do seu país; ele está exilado do mundo, onde só se consegue viver plenamente lendo o que está escrito ao seu redor.

            Precisamos completar essa Declaração erradicando o analfabetismo.

            Art. 15: “Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade”.

            A nacionalidade não é apenas o país onde você nasce, e já dizia o poeta português Fernando Pessoa: “Minha pátria, minha língua, meu idioma”. Sou da pátria do português. Sou da pátria de quem fala e quem escreve em português. Para isso, deve-se falar bem, deve-se entender bem, deve-se ler bem. Não estamos passando esse português bem falado para todos.

            Há pouco tempo, houve um grande debate sobre a legitimação de ensinar o português, dito popular, que temos que respeitar, mas não podemos ficar restritos a ele. Aos poucos, por uma brecha, um abismo educacional, estamos construindo dois idiomas diferentes: o idioma dos que falam bem porque aprenderam estudando e o idioma daqueles que falam o português que não foi suficientemente elaborado. Não vou dizer que um é melhor do que o outro, mas vou dizer que são dois países diferentes. E as pessoas estão, portanto, exiladas.

            Art. 13: “O direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio”.

            Quem tem direito a de deixar o seu país se não for bem-educado? Os países do norte estão recebendo os nossos doutores que quiserem morar lá. Mas estão proibindo que entrem aqueles que não são doutores, porque estes vão procurar os empregos que eles não quererem deixar que sejam ocupados pelos nossos irmãos, tirando o emprego dos seus conterrâneos.

            Art. 14: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e de expressão”.

            Como ter liberdade de opinião e de expressão se não é capaz de ter opinião e de não saber expressar-se?

            Esse artigo exige tanto ou mais que os outros o acesso à educação da máxima qualidade, para que a pessoa possa ter liberdade de opinião e de expressão, adquirindo opinião e expressão plenamente.

            Art. 21: “Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo do seu país. Toda pessoa tem direito de acesso ao serviço público do seu país”.

            Como é que estamos tratando esse art. 21, num País onde, para ser atendido por um dentista, há uma fila que dura meses; para fazer uma cirurgia urgente, há uma espera de meses? Então, esse artigo, sessenta e um anos depois, está apenas no papel, uma beleza poética, mas nada que permita cumpri-lo.

            Art. 23: “Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego”.

            Como ter acesso à livre escolha de emprego, se cada emprego exige uma qualificação? E o senhor é um exemplo de quem adquiriu emprego pela qualificação. O emprego sem qualificação, no mundo moderno, é quase impossível ou de tão baixa remuneração que não é um emprego, é uma escravidão.

            Art. 26: “Toda pessoa tem direito à instrução”.

            Se toda a Declaração fosse reduzida a essas seis palavras ou cinco palavras e uma contração, se tivéssemos essas cinco palavras cumpridas, tudo o mais poderíamos conseguir sem dificuldade. É o art. 26 que resume toda a Declaração dos Direitos Humanos: “Toda pessoa tem direito à instrução”. Esse é o resumo de tudo, porque esse é o artigo que permitiria que todos os outros fossem cumpridos, se todos tivessem direito à instrução. E instrução como aqui diz: que a instrução, inclusive técnica e profissional, deve ser extensiva a todos; o ensino superior deve ser baseado no mérito; a instrução gratuita pelo menos no nível elementar fundamental.

A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução que promova a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

           Esse é o artigo chave, esse é o artigo central e esse é um dos artigos pouco cumpridos. Ao ser pouco cumprido esse artigo, os outros também não são cumpridos.

           Quero aproveitar o aniversário, amanhã, dos 61 anos da Declaração dos Direitos Humanos - volto a insistir, um marco fundamental na história da humanidade -, como foram Os Sermões, como foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão depois da Revolução Francesa, como foi a Declaração de Independência dos Estados Unidos, que foi um marco fundamental para a humanidade inteira.

           Esses 61 anos merecem ser comemorados, mas comemorados com uma reflexão sobre a dificuldade de fazer com que cada um dos 30 artigos seja cumprido. E isso acontece porque um deles, o art. 26, não foi cumprido no mundo, inclusive no Brasil. É o artigo que diz que toda pessoa tem direito a instrução. Nós não estamos cumprindo esse artigo e, ao não cumpri-lo, os outros não estão sendo cumpridos.

            É isso, Senador Paim, que tenho para falar aqui, nesta comemoração dos 61 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

            Mas queria ainda dizer que, em 16 de março, o Brasil inteiro, sobretudo nas escolas, terá a grande oportunidade de discutir essa Declaração, a partir da criação, ocorrida nesta semana, do Dia Nacional da Consciência das Mudanças Climáticas. Ao fazer isso, nós estaremos descobrindo que todos os problemas passam por um só: a desigualdade no acesso à saúde e à educação, que toma conta de todos nós, especialmente em países como o Brasil, que tem a característica de ter os recursos e não usá-los corretamente - é diferente de países que têm os recursos e os usam corretamente e daqueles que não os usam porque não os têm. Nós temos os recursos para garantir acesso igual à saúde para todos e temos recursos para garantir que o acesso à escola seja o mesmo para todos. Desde o filho do mais pobre trabalhador ao filho do mais rico patrão, todos devem ter a mesma escola. No mais, eles serão desiguais, mas terão a mesma escola e a mesma saúde. Que eles construam o rumo de cada um deles. Que eles construam a desigualdade que termina ocorrendo por causa de talento, por causa de persistência, por causa de vocação, mas não por causa do berço onde nasceram. A Declaração dos Direitos Humanos tem por objetivo especial dizer à desigualdade que deve existir, que pode existir entre as pessoas, até porque ela é característica da liberdade, mas ela não depende do berço, depende das oportunidades, que devem ser oferecidas igualmente a todos.

            Era o que tinha a dizer.

            Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/12/2011 - Página 53321