Discurso durante a 58ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Homenagem pelo transcurso, no dia 19 do corrente, do Dia do Índio.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM, EDUCAÇÃO.:
  • Homenagem pelo transcurso, no dia 19 do corrente, do Dia do Índio.
Publicação
Publicação no DSF de 14/04/2012 - Página 12427
Assunto
Outros > HOMENAGEM, EDUCAÇÃO.
Indexação
  • HOMENAGEM, ORADOR, IMPORTANCIA, DIA NACIONAL, INDIO, REGISTRO, ARTIGO DE IMPRENSA, AUTORIA, ESCRITOR, PUBLICAÇÃO, PERIODICO, ASSUNTO, HISTORIA, GENOCIDIO, GRUPO INDIGENA, BRASIL.
  • CRITICA, OMISSÃO, BRASIL, EXPLORAÇÃO, GENOCIDIO, POPULAÇÃO, INDIO, NEGRO, DESENVOLVIMENTO, INTELECTUAL, CRIANÇA, FATO, DECADENCIA, ENSINO, INSUFICIENCIA, INVESTIMENTO, POLITICA EDUCACIONAL.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Um bom-dia a cada uma e a cada um, meus agradecimentos ao Senador Acir, que me permitiu falar no seu lugar para poder ter tempo para outras atividades que tenho hoje ainda, e minha satisfação de ter aqui o Presidente da Comissão de Direitos Humanos presidindo esta sessão.

            O que quero falar, Sr. Presidente, é de uma data de que muitos não percebem a importância que tem, que vai ocorrer na próxima semana, que é o chamado Dia do Índio. No dia 19 de abril, nós comemoramos os índios brasileiros, e nós temos obrigação fundamental de comemorar, por tudo de mal que foi feito contra os índios brasileiros, ao longo de 500 anos da nossa história, reduzindo a sua população, de 5 milhões, naquela época, para 350 mil hoje, ou seja, um genocídio das maiores dimensões da história do mundo inteiro.

            Os nazistas provocaram o Holocausto, que envergonha a humanidade inteira, porque terminamos assistindo àquilo que acontecia com as perseguições ao povo judeu. Mas nós aqui, Senador Paim, não fizemos duas, nós fizemos três holocaustos, um deles contra os índios; o outro contra os negros, escravos que vieram para este País e o terceiro estamos fazendo e falarei no final do meu discurso.

            O primeiro, creio que vale a pena a gente citar a tragédia desse holocausto e para isso uso um texto escrito por Edison Barbiere na revista Mundo e Missão. Ele escreveu não tudo que vou ler, mas ele escreveu, por exemplo, que:

Em pleno Brasil 500 anos, longe da costa atlântica - onde alguns milhões de índios morreram a partir da chegada dos colonizadores europeus, em 1500 -, diversos grupos indígenas brasileiros ainda vivem isolados no coração da floresta amazônica. Em redutos preservados, alguns reagem à aproximação dos brancos. O grupo arredio que vive na reserva biológica do Guaporé, em Rondônia, finca estacas nas trilhas da floresta, na tentativa de conter os caminhões carregados de madeira. Outros aceitam a presença branca em seus territórios e, em geral, acabam pagando um alto preço por esse gesto de confiança - doenças, mortes, alcoolismo, invasão de suas terras e perda de sua identidade cultural e até de suicídios em massa”.

Reduzidos a 5% do que foram [naquela época, há 500 anos atrás], estão hoje em todos os Estados brasileiros. Muitos deles dominam o português e conhecem os caminhos que levam a Brasília, onde mora o chefe dos brancos que tinha, até outubro de 1993, para demarcar todas as terras indígenas, de acordo com a Constituição. Porém [mais de vinte anos depois, quase vinte anos depois de 1993], os dados da Funai indicam que nem metade das terras indígenas [que a Constituição determinava definir, nem metade] foram demarcadas. Se antes a população indígena se concentrava na costa, onde encontrara caça abundante, fartura de frutos e solo fértil para as roças, hoje, a maioria (54%) vive na Amazônia [e talvez salvam essa maioria pelo isolamento]. Aí está também a maior parte de suas terras que representam 10% do território nacional. A marcha para o Centro-Oeste [do Brasil], nos anos 60 [incluindo nisso a vinda da Capital para Brasília] e os programas voltados para a ocupação da Amazônia, a partir de 1970, tiveram grande impacto sobre as populações indígenas, surpreendidas com a construção de estradas em suas terras. Em vários pontos dessas regiões, a Funai montou frentes de contato, às pressas, para chegar antes das máquinas [ terminaram provocando graves desajustes].

Dois anos depois de contato com algumas tribos daquela época, em terras cortadas pela rodovia Cuiabá-Santarém, no Mato Grosso, os krenhacarores estavam reduzidos a menos de um terço da população original [em dois anos foram reduzidos a um terço da população para permitir que em suas terras passasse uma estrada]. Em 1975, foram transportados (...) para o Parque do Xingu [saíram do seu habitat, abandonaram, obrigadamente, suas formas de sobrevivência]. Desde então, já sofreram quatro [outras] transferências dentro do próprio Xingu.

            Cada transferência dessa é um desajuste social, é uma perda de relação com a natureza que conhece, é um aumento da forme, é o surgimento de novas doenças. O desejo deles é voltar ao antigo habitat ocupado agora pela colonização e pelo garimpo.

A invasão da selva amazônica foi tão fulminante que há conflitos dentro das próprias comunidades indígenas[disputando os pequenos territórios que os brancos deixaram para eles]. No Pará, os índios caiapós, liderados pelo cacique Tutu Pombo, não impedem a ação dos garimpeiros, que transformaram [a terra dos índios num lamaçal] do rio Fresco um lamaçal [e um lamaçal contaminado, inclusive pelo mercúrio]. Já outro líder caiapó, Raoni, que chefia seu grupo na região do Capoto, não aceita a presença dos garimpeiros e tenta convencer os liderados por Pombo dos malefícios do garimpo. Em Rondônia, os uru-wau-waus travam uma luta tensa, cheia de emboscadas, contra os madeireiros, enquanto os vizinhos cintas-largas desfilam em possantes caminhonetes, oferecidas pelos brancos que exploram suas terras [mas possantes caminhões que não lhes trazem cultura, maneira de viver]. Alguns desses casos são tão longínquos que somente por sorte ganham destaque na imprensa, por exemplo, os ianomâmis, cujas terras na fronteira com a Venezuela foram invadidas por 30 mil garimpeiros, desde a década de 80. Depois de viver por cinco anos dependendo dos garimpeiros, responsáveis por uma séria redução nessa população indígena, os 10 mil remanescentes tiveram seu território demarcado [e voltaram a plantar suas roças sem estranhos à volta]. Aos grupos remanescentes contatados ou ainda "isolados", não parece restar alternativa senão a de percorrer o mesmo caminho dos seus antepassados que aceitaram os presentes dos brancos e ficaram na miséria. A diferença é que esses presentes hoje fazem parte de um processo de integração e é mais rápido. Acontece, às vezes, através de um helicóptero que rasga a floresta e pousa numa roça de mandioca perto de aldeias onde vivem os índios [e logo a roça é destruída, a comida desaparece, a fome chega e vêm os presentes, em geral álcool, desarticulando toda relação familiar e cultural dos índios]. Os 180 grupos étnicos conhecidos enfrentam situações diversas em relação ao Brasil oficial. Se no Norte há ainda grupos esquivos, nas outras regiões brasileiras, onde a maioria vive em contato permanente com o branco, muitos deles não perderam suas terras mas a própria referência [étnica]. Entretanto, mesmo enfrentando séculos de hostilidade e desprezo, a singular riqueza dessas etnias imprimiu suas marcas nas feições de milhões de brasileiros, cuja pele morena denuncia a presença do sangue tupi, guarani, jê ou tapuia. Porém [aqui e ali], bons ventos ajudam esses povos que vivem na floresta [essas ajudas corretas e esses bons ventos mostram como seria possível cuidar bem de nossos índios]. A população voltou a crescer onde apareceram soluções coerentes com a realidade. Depois de ter chegado acerca de 70 mil pessoas, por volta de 1950, a cultura indígena deixou seus marcos na agricultura, na alimentação e em outros aspectos da vida nacional, como na língua, na geografia, onde se encontram elementos sobretudo da língua tupi, a mais falada.

            De setenta mil caíram para um número insignificante e estão voltando a crescer graças à correta maneira de tratar... Eu não usei “a maneira de proteger”, mas de tratar com respeito, dando as condições.

            Essas poucas soluções “são realidades simbólicas e é preciso resgatá-las na memória e na consciência do povo brasileiro”, da mesma maneira que é preciso resgatar a importância dos povos indígenas para todos nós, mesmo “depois de 500 anos de opressão, esquecimento e preconceitos”.

            Esse holocausto contra os índios não é muito diferente, e eu não aceito comparar com o dos judeus e com o dos índios, mas não dá para dizer que foi menor ou maior, mas de uma forma cuja brutalidade equivale ao que houve com os escravos vindos da África. O Brasil provocou um holocausto com os quase 10 milhões de negros africanos que aqui vieram, com os seus filhos e netos que aqui chegaram, o holocausto da morte precoce, da exploração permanente pelo trabalho forçado, do deslocamento do seu habitat, da sua cultura, em direção a outro mundo.

            Esses genocídios nos permitem reflexão. Como ocorreram? Ocorreram pela violência, ocorreram pela escravidão, ocorreram pelo preconceito religioso, dizendo que os índios e negros não tinham alma durante boa parte da nossa história. Nós não podemos ficar calados diante do genocídio que houve, não podemos ignorar a responsabilidade do Brasil, não quer dizer da geração atual, mas do Brasil, com esses genocídios, como a Alemanha não esquece o papel que teve, embora não fosse a Alemanha, mas os nazistas, mas não esquece a responsabilidade que teve com o holocausto contra o povo judeu. Mas hoje a gente está vivendo outro holocausto, um holocausto tão grave, Senador Pedro Simon, que a gente não percebe, como não se percebia o holocausto contra os negros e índios, pois não era visto como tal, como não era percebido o holocausto contra o povo judeu, não era percebido como tal, era tolerado, era aceito, nem que fosse pela omissão.

            Hoje, estamos sendo omissos com o genocídio que não mata fisicamente, mas mata mentalmente. Nós estamos sendo coniventes com o genocídio contra as mentes das nossas crianças e até mesmo contra os corpos das nossas crianças. Nós estamos vivendo um genocídio intelectual neste País. O nosso sistema educacional é uma câmara de gás que incinera cérebros de duas formas, incinera expulsando as crianças da escola, tirando-lhes o direito de viverem intelectualmente na potência de seus cérebros, e também assassina aqueles que ficam dentro da escola e recebem uma educação que não é compatível com a realidade do século XXI ou que pode até ser compatível, mas compatível do ponto de vista técnico, roubando-lhes a formação moral, roubando-lhes valores que lhes permitam não apenas viver, mas mudar, não apenas mudar a si, mas mudar o mundo, mudar o Brasil, construir uma sociedade nova.

            Estamos sendo as testemunhas desse genocídio intelectual que hoje acompanha a história do Brasil. Estamos sendo testemunhas dessas câmaras de gás das escolas brasileiras ao incinerar os que estão fora e ao incinerar até mesmo os que estão dentro. Nós assistimos isso fazendo uma sessão em homenagem ao povo indígena na próxima semana, no Dia do Índio. Uma homenagem corretíssima para lhes agradecer, mas uma homenagem que não será suficiente se não tirarmos dela a reflexão necessária para parar a atual violência que cometemos contra as nossas crianças, violência física.

            A lei contra a violência das crianças chegará em breve aqui ao Senado. Espero que aqui não a tratem com a ideia ridícula da lei da palmada, mas sim com a dimensão séria de uma lei que tenta impedir que o Brasil seja campeão mundial do assassinato de crianças fora tempos de guerra. Espero que saibamos que ali está uma lei que, como a Ficha Limpa, possa trazer problemas para algumas pessoas que não são corruptas, mas é necessária a lei da Ficha Limpa, mesmo que haja alguns erros, tenta impedir que o Brasil continue sendo campeão mundial de violência. Mas, mais que isso, espero que reflitamos sobre a possibilidade de que haja um holocausto de mentes, um holocausto intelectual, que é a negação da escola. E um holocausto que não prejudica apenas as pessoas que são suas vítimas, prejudica uma Nação inteira que comete o crime.

            O Brasil paga hoje alto preço por ter sido um país escravocrata, por ter tido uma economia baseada na escravidão e não no trabalho livre, por ter sido um País que, graças à escravidão, foi baseado no trabalho manual e não no trabalho intelectual que hoje é o que dinamiza as economias do mundo.

            Vamos aprender com os erros que cometemos. E sempre que digo que nós os cometemos, recebo críticas de pessoas que dizem: “Eu não tenho nada a ver com isso. Foram os portugueses de antes, foram os brasileiros de antes”. Temos que ver. Somos responsáveis pelo que foi feito no País, enquanto não pararmos e não reconhecermos.

            Até hoje não há, Senador Paim - discutíamos esta semana -, um monumento grande aos escravos brasileiros. O mundo inteiro tem monumentos. Felizmente esses monumentos existem para lembrar a todos o sofrimento do povo judeu. Há monumentos em muitas partes para lembrar a tragédia do holocausto provocado pelos nazistas, mas nós não temos um monumento para lembrar o holocausto contra os índios nem outro contra os judeus e nem estamos fazendo o dever de casa para que, daqui a cem anos, a duzentos anos, não seja preciso fazer um monumento ao holocausto que nós estamos cometendo contra as crianças brasileiras, pela violência que nós fazemos contra elas.

            Essa violência chega ao ponto de um juiz do STJ dizer que um homem não pode ser condenado por estupro porque a menina de doze anos com quem ele teve relação sexual era uma prostituta. O simples fato de assumir que há prostituição infantil no Brasil já é parte de um sistema de holocausto contra as crianças. O fato de dizer que não é estupro porque a menina era prostituta é um fato de reconhecimento, de tolerância, de aceitação de uma barbaridade, que hoje nós criticamos quanto aos escravocratas, que batiam nos seus escravos. Tomamos isso como algo claro de barbárie, mas assistimos à barbárie hoje; somos coniventes com a barbárie de hoje, somos omissos diante da barbárie de hoje contra nossas crianças, como lá atrás fomos contra os índios, como lá atrás fomos contra os escravos.

            Que o dia 19 de abril sirva para que os índios que sofreram nos deem uma lição, que nos permita refletir para que nós não possamos, no futuro, ser acusados do holocausto intelectual, do holocausto de mentes que nós estamos provocando contra as nossas crianças.

            Era isso, Sr. Presidente, o que eu tinha que colocar nesta sexta-feira, por coincidência, sexta-feira 13, que costumam dizer por aí que é dia de azar. Eu prefiro dizer que não é dia de azar, não é dia de sorte. É dia de refletir sobre uma tragédia que o Brasil viveu e continua omisso vivendo hoje.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/04/2012 - Página 12427