Discurso durante a 82ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Satisfação com a instalação, ontem, da Comissão Nacional da Verdade.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS, ATIVIDADE POLITICA.:
  • Satisfação com a instalação, ontem, da Comissão Nacional da Verdade.
Publicação
Publicação no DSF de 18/05/2012 - Página 19510
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS, ATIVIDADE POLITICA.
Indexação
  • ELOGIO, DESTINAÇÃO, DILMA ROUSSEFF, PRESIDENTE DA REPUBLICA, MOTIVO, INSTALAÇÃO, COMISSÃO NACIONAL, VERDADE, OBJETIVO, APURAÇÃO, VIOLAÇÃO, CRIME, DIREITOS HUMANOS, DURAÇÃO, DITADURA, BRASIL, SUGESTÃO, CRIAÇÃO, COMISSÃO, INVESTIGAÇÃO, HISTORIA, CORRUPÇÃO, PAIS.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ontem nós tivemos a oportunidade de assistir, no Palácio do Planalto, um desses eventos que dá vontade de dizer que valeu a pena ter vivido para estar presente naquele ato.

            Eu confesso que muito raramente eu me sinto emocionado com um ato público tanto quanto me senti ao ver a Presidenta Dilma rodeada de todos os ex-Presidentes desde a redemocratização, com exceção do nosso querido e saudoso Itamar Franco, na instalação da Comissão da Verdade.

            Claro que sempre vem para nós aquela ideia de que foram necessários tantos anos para que o Brasil iniciasse um processo que os outros países fizeram tão logo superaram o seu regime militar, como aconteceu na Argentina, como aconteceu no Uruguai, como aconteceu na Grécia e em tantos outros países, como aconteceu na África do Sul. A gente fica pensando que demorou demais. Mas isso não diminuiu a importância daquele evento. Eu até diria que talvez a espera tenha aumentado.

            Além disso, é preciso dizer que o Brasil deve ter orgulho tanto da decisão tomada pela Presidenta quanto da qualidade daqueles que ela escolheu para serem os nossos representantes, os representantes do Brasil inteiro nessa tarefa de trazer para a vida a verdade que estava escondida.

            Não há um nome ali que a gente possa dizer que é revanchista, que vai querer perseguir alguém; não há nenhum ali que a gente diga que vai querer encobrir fatos. Todos eles, todos eles merecem pleno respeito de quem quer tirar tudo o que cobre uma parte da história do Brasil e não quer sair perseguindo aqueles que vamos descobrir que cometeram atos não apenas injustos, mas indignos do mínimo de sentimento de humanidade. Como se não bastasse o fato da reunião de todos aqueles ex-Presidentes juntos, numa demonstração forte de republicanismo, de respeito nas discordâncias.

            A decisão da Presidenta de escolher aquelas pessoas, o orgulho brasileiro de ter pessoas daquele nível, daquele porte. Além disso, nós tivemos o discurso da Presidenta que, de fato, é um desses discursos marcantes e que ficarão para a história do Brasil, daqueles que entrarão para livros de antologia de discursos políticos.

            Essa foi uma manhã, devo dizer, que quem esteve presente dificilmente vai esquecer. Até mesmo pela demora com que ela aconteceu.

            É preciso insistir, como a gente sempre insistiu, eu próprio aqui, que uma coisa é anistia, outra coisa é amnésia. Um país tem o direito de dar anistia mesmo aos piores crimes, mas um país não tem o direito de ter amnésia em relação a sua própria história. É um compromisso de cada país contar tudo da sua história. E o Brasil precisa contar algumas histórias que não estão plenamente contadas, embora não estejam escondidas.

            A história dos três séculos de escravidão, Senador Paim, não está contada plenamente, até por uma decisão tomada lá atrás, logo no começo da República, por Rui Barbosa, aquele que tem o seu busto aqui; numa decisão do ponto de vista político muito sábia, mas do ponto de vista de perspectiva histórica temerária, ele decidiu queimar a maior parte dos documentos relacionados ao tráfico, à venda e à vida dos escravos. Ele tinha uma preocupação corretíssima. Dizia que se deixassem aqueles documentos guardados, com os nomes de quem havia comprado qual escravo, esses compradores iriam querer receber uma indenização ao longo de cinco, dez, vinte anos. Ele pensava até mais: seriam capazes de querer voltar atrás a Lei Áurea.

            Ele pensava até mais: “É capaz de quererem fazer voltar atrás a Lei Áurea”. Por isso nós perdemos muitos documentos. E, apesar de uma boa bibliografia que tem, nós ainda não temos a história completa do holocausto que foi a escravidão no Brasil.

            Eu tentei dar uma contribuição aqui, Senador, lendo as atas dos debates, nesta Casa, durante os dez dias em que se discutiu a Lei Áurea. A Lei Áurea entrou no Congresso no dia 3 de maio de 1888 e no dia 13 já foi assinada. Foram dez dias, um prazo curtíssimo quando a gente vê os debates de hoje sobre leis muito mais simples. E ali a gente vê aqueles que, se estivessem vivos hoje, quereriam esconder o que ali disseram. O que ali disseram nem sempre na defesa explícita da continuação da escravidão, mas na ideia de que, embora devêssemos acabar com a escravidão, ainda era cedo, porque, se a escravidão acabasse, haveria tragédia na agricultura brasileira, que estava montada no chamado sistema servil de trabalho. E a escravidão acabou e não houve sacrifício da agricultura. Ainda houve um pequeno salto da economia com essa mão-de-obra livre que entrou no mercado.

            Nesse pequeno livro que eu fiz, Senador Aloysio, em que eu analiso as atas dos debates, nesta Casa, entre os abolicionistas e os não abolicionistas, para não chamá-los de escravocratas, está claro como hoje o nosso debate parece o mesmo. O senhor e eu mesmo, quando debatemos e defendemos os royalties do petróleo para a educação... As pessoas dizem que precisam desse dinheiro para gastar em atividades suntuárias dos dias de hoje, prisioneiros do presente, que esse dinheiro, indo para as crianças, vai faltar para o asfaltamento de uma rua ou outra. Não deixa de ter aquela relação que tinha naquela época entre os que queriam a abolição já e os que queriam esperar um pouco para evitar a tragédia de um país sem trabalhadores, porque eles, livres, iriam embora, não iriam mais querer trabalhar.

            Ontem, aquele gesto de juntar todos os ex-Presidentes, de assinar uma lei que cria uma comissão que vai ter o prazo de dois anos para apurar a verdade da história deste País, eu creio que foi o ponto máximo, talvez, da democracia brasileira.

            Tivemos outros grandes avanços. Tivemos o avanço do Plano Real, que não se pode dizer que não foi um dos grandes saltos da história deste País, acostumado, por décadas, com uma moeda que não tinha nenhum valor de troca permanente, de repente passar a acreditar numa moeda.

            Foi importante a criação do Fundef e a ampliação dele, depois de Fernando Henrique, pelo Presidente Lula, para o Fundeb.

            Foram importantes, sem dúvida alguma, as decisões de ampliar a Bolsa-Escola, transformando-a em Bolsa Família, para fazer uma política generosa, ainda que não revolucionária, ainda que não transformadora, ainda que não um gesto de justiça, porque generosidade não é sinônimo de justiça. Generosidade é uma prima da justiça, mas não é sinônimo. E os dicionários são ricos nas diferenciações familiares que eles fazem entre palavras, palavras soltas, palavras irmãs, que são os sinônimos, palavras primas, com semelhanças, e até palavras antônimas, inimigas umas das outras. 

            Ontem, a gente viu que este Brasil pode ser republicano, mas não basta nos acostumarmos com algumas coisas. Falta muito. Para ser republicano, vai ser necessário levar em consideração a tortura permanente que pesa sobre 14 milhões de brasileiros adultos que não sabem ler. Não saber ler é ser torturado. Tortura não é só colocar um cigarro, não é só colocar num pau de arara. Tortura é fazer com que a pessoa esteja na rua sem saber o que está acontecendo ao redor, porque não sabe ler. Tortura é deixar uma pessoa caminhar sem ler que tem um cachorro bravo ou alguém, num andaime de construção, andar sem ver escrito “Cuidado. Adiante, tem um abismo”. Isso é tortura.

            Por isso, defendo que um programa de erradicação do analfabetismo no Brasil tem de sair do Ministério da Educação e ir para o Ministério dos Direitos Humanos. O Ministério da Educação pensa em como alfabetizar, o Ministério dos Direitos Humanos pensaria em como erradicar o analfabetismo. É uma perspectiva diferente. Um trata como uma questão da educação, como é a alfabetização de crianças; o outro trata como um gesto de acabar com a tortura do analfabetismo.

            Precisamos fazer com que as escolas deste País sejam iguais para todos. Nós precisamos acabar com a tortura que, todas as noites, estamos vendo na televisão de pessoas doentes que não conseguem ser atendidas. Tortura não é apenas quando algum malvado, bandido toca no corpo das pessoas. Também é tortura quando uma pessoa é tocada pela própria natureza no seu corpo com uma doença e nós não lhe oferecemos os instrumentos necessários para tratar. É tortura, sim, uma mãe com uma criança no colo sem ser atendida, como estamos vendo, todos os dias, na televisão à noite.

            Então, ontem tivemos a instalação da Comissão da Verdade, para apurar os crimes dos 21 anos do regime militar. Eu nem diria dos 21, porque, nos últimos anos, já não havia esses crimes, mas o autoritarismo. Havia a falta de democracia, mas já não havia esses crimes que vão ser analisados.

            Mas é preciso ir além. É preciso uma Comissão da Verdade para apurar corrupção. Temos que passar a limpo a história da corrupção no Brasil. É uma maldade também, é uma falta de ética, e a gente não pode esquecer que tudo isso é preciso. Mas, por enquanto, vamos apurar bem aqueles crimes que foram cometidos contra a pessoa humana durante o regime militar. E reconheçamos que a Presidenta Dilma ontem viveu um grande momento de seu período, pelo republicanismo de juntar ali todos os ex-Presidentes, pela sensibilidade de reconhecer em cada um o papel que teve, e sem fazer nenhuma demagogia, porque o que ela reconheceu de cada um daqueles eles fizeram.

            Por tudo isso, quero aqui saudar a Presidenta pelo que fez, dizendo do meu orgulho de ter estado ali, como brasileiro que esteve do lado dos que sofreram, mas, ao mesmo tempo, dizer que ainda falta muito para que não apenas a verdade e a generosidade existam no Brasil, mas também a justiça.

            Era isso, Sr. Presidente, que eu tinha para falar. 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/05/2012 - Página 19510