Discurso durante a 202ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Defesa do povo indígena Guarani-Kaiowá, no Estado do Mato Grosso do Sul.

Autor
Randolfe Rodrigues (PSOL - Partido Socialismo e Liberdade/AP)
Nome completo: Randolph Frederich Rodrigues Alves
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INDIGENISTA. ESTADO DO ACRE (AC), GOVERNO ESTADUAL, CORRUPÇÃO.:
  • Defesa do povo indígena Guarani-Kaiowá, no Estado do Mato Grosso do Sul.
Publicação
Publicação no DSF de 02/11/2012 - Página 58357
Assunto
Outros > POLITICA INDIGENISTA. ESTADO DO ACRE (AC), GOVERNO ESTADUAL, CORRUPÇÃO.
Indexação
  • COMENTARIO, PRECARIEDADE, SITUAÇÃO, COMUNIDADE INDIGENA, LOCAL, MINISTERIO DA SAUDE (MS), MOTIVO, AUMENTO, VIOLENCIA, HOMICIDIO, INDIO, DEFESA, NECESSIDADE, DEMARCAÇÃO, TERRAS INDIGENAS, OBJETIVO, PROTEÇÃO, CULTURA, GRUPO INDIGENA.
  • CUMPRIMENTO, TRIBUNAL DE JUSTIÇA, MINISTERIO PUBLICO ESTADUAL, ESTADO DO ACRE (AC), RELAÇÃO, APRESENTAÇÃO, DENUNCIA, DEPUTADO ESTADUAL, MOTIVO, DESVIO, FUNDOS PUBLICOS, ORIGEM, ASSEMBLEIA LEGISLATIVA.

            O SR. RANDOLFE RODRIGUES (PSOL - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador) - Sr. Presidente, obrigado pela condescendência de V. Exª de, ao final desta sessão, permitir que eu ainda utilize esta tribuna para reiterar um tema que já foi tratado aqui, anteriormente, e na Comissão de Direitos Humanos do Senado: o drama que vive o povo guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul.

            Tivemos hoje uma audiência na Comissão de Direitos Humanos na qual V. Exª estava presente. Sei que, nesta tribuna, o tema foi tratado pelo Senador Cristovam Buarque e por outros Senadores. Queria insistir na abordagem deste tema, a situação do povo guarani-kaiowá, mas não sem antes apresentar aqui a minha concordância com o pronunciamento que mais cedo foi feito pelo meu colega Senador pelo Estado do Amapá João Capiberibe, e cumprimentar o Tribunal de Justiça do meu Estado e o Ministério Público Estadual do Amapá, na pessoa da Drª Ivana Cei, Procuradora-Geral de Justiça, pela decisão tomada ontem. Falo da decisão tomada pelo Tribunal de Justiça do Amapá em razão da ação movida pela Procuradoria-Geral de Justiça e pelo Ministério Público Estadual contra o ex-Presidente e o ex-1º Secretário da Assembleia Legislativa do Amapá. Eles foram indiciados, com pedido por parte do Ministério Público, por desvio de recursos públicos da Assembleia Legislativa.

            Faz-se necessário tratar este tema aqui nesta tribuna: a quantidade de recursos gastos pelos Poderes, notadamente pela Assembleia Legislativa do meu Estado, pelo Tribunal de Contas do meu Estado. Recursos que, no meu entender, faltam concretamente para os investimentos do Estado do Amapá, notadamente investimento em educação e saúde.

            Mas, queria, neste momento, cumprimentar o Tribunal de Justiça do meu Estado e cumprimentar o Ministério Público pelo sucesso dessa ação.

            Voltando e tratando sobre o tema guarani-kaiowá, queria só registrar matéria publicada, no começo desta semana, na segunda-feira, no jornal Estado de S. Paulo, que, no meu entender, ilustra claramente o drama vivido por esse povo no Mato Grosso do Sul.

            Diz a matéria assinada por Pablo Pereira e Wilton Junior:

Eles são cerca de 170 índios guaranis-kaiowás, estão em uma área de 2 hectares [repito, Sr. Presidente, porque isso me chamou atenção no depoimento das lideranças indígenas hoje de manhã, na Comissão de Direitos Humanos - são 2 hectares para 170 índios] estão em uma área de 2 hectares de mata ilhada entre um charco e o leito do Rio Hovy, na divisa da Reserva Sassoró com a Fazenda Cambará, propriedade de 700 hectares no município de Iguatemi, no sul de Mato Grosso do Sul. A presença desse grupo de índios na área de mata ocupada por eles há um ano e chamada de Pyelito Kue/Mbarakay - que quer dizer terra dos ancestrais - foi decretada ilegal pela Justiça Federal há um mês e os indígenas condenados a deixar o local. Mas eles se negam a sair e prometem resistir à ordem judicial de despejo.

            Diz a sua liderança - líder Lopes - sobre a situação: "Esta terra não é dos brancos. É nossa, de nossos ancestrais. Vamos ficar aqui até morrer."

            Faz a liderança indígena uma advertência que ecoa na consciência de todos nós, brasileiros, e que ecoa, em especial, na consciência de todos nós, autoridades públicas, representantes dos Estados federados aqui no Senado Federal, representantes do povo brasileiro na Câmara dos Deputados.

            É bom destacar que, lamentavelmente, essa não é a primeira ofensiva nesta Legislatura e neste curto período, em relação aos povos indígenas. É bom destacar aqui a ocorrência, recentemente, da Portaria nº 303, da Advocacia-Geral da União que, entre outras coisas, proíbe a ampliação de reservas indígenas que já tenham sido homologadas e impõe restrições ao uso das terras por parte das comunidades indígenas.

            A clara inconstitucionalidade dessa Portaria nº 303, a flagrante inconstitucionalidade, destoante com o texto da Constituição de 1988, e as pressões que ocorreram sobre o Governo brasileiro impuseram a revisão, por parte do Advogado-Geral da União, dessa portaria. E não fica somente aí. É bom destacar aqui apresentação da Proposta de Emenda à Constituição nº 215, de 2000, que transfere do Executivo para o Legislativo a prerrogativa de demarcar e homologar terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a de ratificar demarcações.

            Ora, será claramente um retrocesso no Texto Constitucional de 1988 se essa PEC vier a triunfar, porque transfere para Executivos, sem nenhum tipo de controle do Parlamento, a responsabilidade da demarcação de terras indígenas, retrocedendo, e muito, no que foi conquistado em 1988. Temos, ainda, o Projeto de Lei nº 1.610, que autoriza a mineração privada em terras indígenas, mediante o pagamento de royalties. Essas duas matérias pressionam, ameaçam as populações tradicionais. É como uma espada de Dâmocles permanente contra o texto da Constituição de 1988.

            Essa ofensiva, além de ser um retrocesso, nos faz retornar ao começo do século XX. É bom lembrar que até o começo do século XX essa ofensiva anti-indígena encontra suas raízes históricas. Até o começo do século XX, até 1910, o índio era tratado não como ser humano. Até 1910, nosso País tratava as populações que aqui estavam antes de nós chegarmos... Antes da mistura branca, negra e indígena, o Estado brasileiro tratava os índios como não humanos.

            Mas vamos mais adiante. Com o Marechal Rondon, em 1910, é criado o Serviço de Proteção ao Índio. Há uma evolução da compreensão, mas ainda com uma concepção positivista e atrasada de que os índios deveriam ser - abre aspas - “civilizados” - fecha aspas - e integrados à - abre aspas - “civilização brasileira” - fecha aspas. A mudança só aconteceu com os irmãos Villas-Boas e com a criação do Parque Nacional do Xingu.

            Outro retrocesso ocorreu durante a ditadura militar, um retrocesso para a compreensão anterior de que deveria haver a chamada integração. Não sei o que é mais criminoso: se o peso da chacina, se as armas de garimpeiros e do latifúndio contra os povos indígenas, ou se as seguidas tentativas de aculturação, achando que eles devem ser incorporados à nossa chamada civilização.

            Ambos são criminosos do mesmo teor porque não reconhecem uma premissa fundamental para a constituição e a existência de um povo: para ser povo, alguém tem que se olhar em um espelho, o espelho de um povo é a sua cultura. Não se destrói a cultura. Ao se destruir a cultura de um povo, ao aculturar um povo, se destrói a identidade e se destrói o povo. O peso de uma bala é o mesmo das tentativas de destruir a identidade e a cultura dos povos indígenas.

            E quero incorporar nesse sentido, Sr. Presidente, artigo da minha querida companheira, ex-Ministra, ex-Senadora Marina Silva, publicado esta semana no jornal Folha de S.Paulo, que traz trechos do manifesto guarani-kaiowá, que retrata concretamente o drama que esse povo está vivendo.

            E faço questão de aqui transcrevê-los:

            Já se disse tudo sobre os garanis-kaiowás. Nada parece comover, abre aspas, “a civilização brasileira” de que o extermínio desse povo é um crime imperdovável, e o sangue de suas crianças recairá sobre todos nós.

            Dói na alma ler a carta da comunidade Pyelito kue/Mbarakay, de Iguatemi (MS), divulgada depois que a Justiça de Naviraí (MS) determinou sua retirada da beira de um rio.

            É um daqueles documentos que testemunham momentos graves na formação do País, como os relatos de Canudos e o do Contestado, da Revolta da Chibata, da escravidão, da ditadura, dos incontáveis massacres e chacinas que tingem, lamentavelmente, o chão de nossa Pátria.

            Ouçamos, então, a voz guarani-kaiowá no seu manifesto, cita a Senadora Marina, e eu transcrevo aqui trechos do manifesto guarani-kaiowá:

(...) Avaliamos a nossa situação e concluímos que vamos morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos acampados a 50 metros do Rio Hovy, onde já ocorreram quatro mortes, sendo que dois morreram por meio de suicídio e dois em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas. Moramos na margem deste Rio Hovy há mais de um ano. Estamos sem assistência nenhuma, isolados, cercado de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Tudo isso passamos dia a dia para recuperar o nosso território antigo Pyelito kue/Mbarakay [como foi dito; na tradução: terra dos nossos ancestrais.]

            A Senadora fez uma pergunta que eu reapresento aqui, no plenário do Senado: Onde estão os poderes da República, o sistema político, as grandes empresas que se dizem salvadoras da economia nacional? Onde está a opinião pública? Onde estão os brasileiros, diante dessa chacina e da destruição de uma civilização inteira, a que nós estamos assistindo?

            Continua o manifesto guarani-kaiowá:

(...) ali estão os cemitérios de todos os nossos antepassados. 
Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui. 
Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para  jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido [de ajuda] aos juízes federais.

            Há um suicídio, Sr. Presidente, a cada seis dias entre os guaranis-kaiowás. Quase 50 guaranis-kaiowás, ao longo dos últimos anos, têm sido assassinados por ano. São agressões incontáveis. A civilização ocidental assiste ao drama guarani-kaiowá; e assiste perplexa, inerte, sem fazer nada, a um dos maiores crimes que já foram cometidos contra sua própria existência, contra a humanidade.

            A pergunta que a Senadora Marina faz, ao final desse artigo, é a mesma que aqui repasso no plenário do Senado: “Até quando assistiremos a esse genocídio sem fazer nada?” Eu sei que, nesta semana, tivemos a feliz notícia da reversão da decisão da Justiça Federal, de desapropriação, de desalojamento dos guaranis-kaiowás de sua área. Mas não basta isso. O drama desses povos indígenas e de outros povos indígenas localizados no Mato Grosso do Sul não vem de agora.

            Eu sou de um Estado que tem vários motivos de ter orgulho. Um deles é que todas as nossas populações indígenas têm o seu território demarcado. Mas a realidade do Amapá, lamentavelmente, está claro e patente, não é a realidade de todo o País.

            Não é possível, não é aceitável que, depois de 500 anos de nós termos tomado o território deles... Nós, sim; nós os brancos portugueses, os europeus, que singraram o Atlântico, que vieram para cá, que disseram que esta terra não tinha dono, que condenaram os que estavam aqui a serem tratados não como humanos ao longo do tempo.

            Não pode ser aceito isso 500 anos depois de termos cometido a maior chacina da história humana, da passagem humana por este Planeta. Depois de quase 200 anos da nossa Constituição como Nação independente no Planeta; depois de mais de 100 anos da nossa Constituição como República, governo da coisa pública, por assim dizer, na sua definição, e depois de quase um século em que superamos a compreensão de que índio deve ser tratado como humano, não é possível, não é aceitável que nós possamos, em pleno século XXI, assistir à repetição de um crime continuado contra a humanidade. É disso que se trata o que está acontecendo em relação aos guaranis kaiowás.

            Hoje tivemos uma sessão emocionada na Comissão de Direitos Humanos do Senado. Protocolizamos um requerimento que S. Exª o Presidente da Comissão, Senador Paim, promete submetê-lo a voto na próxima segunda-feira; encaminha diligência da Comissão de Direitos Humanos para ir até o Município de Iguatemi e ver de perto o drama guarani kaiowá.

            Não podemos achar que a situação foi resolvida com a última decisão judicial. É necessário acompanhar. Os anos têm sido de chacina continuada, de extermínio desse povo. Nós não podemos permitir que 170 remanescentes de um povo sejam dizimados diante dos nossos olhos.

            Repito aqui um trecho de Edmund Burke, pensador alemão que viu o drama do nazismo. Burke dizia o seguinte: “Diante de tudo o que vi, o que me assustava não era a perversidade dos maus, o que me assustava e o que me intimidava era o silêncio dos bons”.

            Nós não podemos ficar em silêncio. Nós não podemos aceitar que crimes contra a humanidade, sejam os de ontem, sejam os de hoje, ocorram diante dos nossos olhos.

            Muito obrigado pela tolerância e compreensão, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 02/11/2012 - Página 58357