Discurso durante a 210ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Análise da relação entre legitimidade e confiabilidade nos Poderes da República.

Autor
Fernando Collor (PTB - Partido Trabalhista Brasileiro/AL)
Nome completo: Fernando Affonso Collor de Mello
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PODERES CONSTITUCIONAIS, ADMINISTRAÇÃO PUBLICA.:
  • Análise da relação entre legitimidade e confiabilidade nos Poderes da República.
Publicação
Publicação no DSF de 14/11/2012 - Página 60734
Assunto
Outros > PODERES CONSTITUCIONAIS, ADMINISTRAÇÃO PUBLICA.
Indexação
  • ANALISE, SITUAÇÃO, DESEQUILIBRIO, RELAÇÃO, LEGITIMIDADE, CONFIANÇA, POPULAÇÃO, REFERENCIA, ATUAÇÃO, PODERES CONSTITUCIONAIS, ADVERTENCIA, ORADOR, FATO, AMEAÇA, DEMOCRACIA, APRESENTAÇÃO, IMPORTANCIA, ATENÇÃO, LEGISLATIVO, MANUTENÇÃO, REGIME POLITICO.

            O SR. FERNANDO COLLOR (Bloco/PTB - AL. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, no último dia 1º deste mês, manifestei desta tribuna minha profunda preocupação com uma crise que se espraia entre os diversos níveis das instituições brasileiras e cujo processo de avanço denominei como o “esfacelamento institucional”. Na oportunidade, chamei a atenção do perigo que é, para a democracia, o desequilíbrio entre os Poderes da União e a perda de legitimidade das instituições e de algumas classes das autoridades públicas.

            Exemplo fático é o que ocorre com as frequentes contendas legislativas travadas entre os Poderes Executivo e Legislativo, que não conseguem contorná-las, nem mesmo por meio da aparente solidez e estabilidade política geradas pelo chamado “presidencialismo de coalizão”, modelo este já consolidado e implantado há exatos 20 anos no Brasil. Refiro-me, como exemplo, Srª Presidente, ao vaivém de projetos, medidas provisórias e vetos presidenciais que, por indecisão, inépcia, desacordo político e até mesmo desrespeito ao Congresso Nacional, acabam por desaguar no Poder Judiciário, mais especificamente no Supremo Tribunal Federal, por meio de ações, consultas e recursos de toda ordem, que visam suprir o vácuo normativo e as discordâncias decorrentes das ambiguidades legislativas. Ou seja, os onze Ministros que compõem a Suprema Corte, indicados pelo Senado Federal, tornaram-se hoje os agentes públicos de maior poder na República. Assim pode acabar a decisão em relação ao Código Florestal, por exemplo, assim caminha a questão dos royalties e, com grande chance, assim pode se dar com o atual esforço de regulação dos benefícios fiscais e a partilha de recursos entre União, Estados e Municípios, cujas propostas, se não forem bem elaboradas e bem acordadas, podem transformar o vislumbrado federalismo solidário num federalismo ainda mais predatório. Trata-se, dessa forma, de um perigoso e delicado processo que ameaça inserir de vez, nesta crise institucional e de legitimidade da ação política, o Pacto Federativo, fundamento precípuo da existência de nossa República.

            Por este e outros motivos, a legitimidade das instituições e de seus agentes é tema central da política e essencial para a compreensão da democracia, tanto que vem sendo estudada profundamente pela Ciência Política, pelo Direito e pela Sociologia. Sua definição pode se dar pelo apoio e o consentimento do cidadão aos governantes. É, portanto, um instituto mais amplo e profundo do que a simples popularidade de quem governa, pois significa que o povo acredita na fórmula política, ou seja, no regime pelo qual é governado. Essa crença de que o sistema político é adequado, é correto, justifica a obediência da população ao Governo. Assim, se obedece porque se considera que essa atitude é a melhor para a comunidade, e a utilização da força física pelo poder político quase não se faz necessária, a não ser em relação aos recalcitrantes, aqueles que se recusam ao cumprimento da lei.

            No Brasil, depois de vários recuos e problemas históricos, consolidou-se o consenso, a crença de que o regime político mais adequado para gerir o País é a democracia representativa. Significa que o poder, em última análise, pertence ao cidadão, e que este o exerce por meio de seus representantes, que são escolhidos em eleições periódicas para que haja a possibilidade de renovação. Assim, os representantes da população governam porque obtêm, nas urnas, um mandato, ou uma delegação, para dirigir a nação e cuidar dos interesses da população.

            De outro lado, Sra Presidente, Sras e Srs. Senadores, a legalidade constitui princípio jurídico em que se assentam os sistemas políticos democráticos, o que equivale a dizer, segundo Paulo Bonavides, que essa é "a noção de que todo o poder estatal deverá atuar sempre em conformidade com as regras jurídicas vigentes". Portanto, esse é o preceito que caracteriza o “governo das leis” para distinguir do “governo dos homens”, em que a vontade do soberano do Estado absolutista não conhecia limites.

            Assim, para os juristas, a legitimidade nada mais é do que "a legalidade acrescida de sua valoração", ou, nas palavras de Bonavides, "o critério que se busca menos para compreender e aplicar do que para aceitar ou negar a adequação do poder a situações da vida social que ele é chamado a disciplinar". Contudo, do ponto de vista sociológico e político, o Prof. Niklas Luhmann afirma que seria supérfluo dispor desse conceito "apenas para poder dizer que as decisões justas são legítimas e que as decisões injustas não o são." Logo, o que distingue a legalidade da legitimidade é que a primeira - a legalidade - diz respeito à conformidade com a lei, a ordem e a justiça; e a segunda - a legitimidade - refere-se à aceitação das decisões dos sistemas políticos. Nesse sentido, normas que careçam da aceitação generalizada da opinião pública, ou pelo menos da maioria da sociedade, seriam ilegítimas, ainda que fossem legais, isto é, mesmo estando de acordo com a Constituição e as leis de cada país.

            Destaque-se, ainda, Srª Presidente, que o que diz respeito às decisões dos sistemas políticos aplica-se também aos sistemas de governo, quer em sua investidura, quer em sua atuação. Assim, a legalidade diz respeito à investidura do poder, e a legitimidade à sua atuação e ao seu desempenho. Outro aspecto de distinção entre os dois conceitos diz respeito a sua própria natureza. A legalidade é um conceito absoluto: ou é legal ou é ilegal. Não se pode dizer que determinada decisão é mais ou menos legal do que outra. Já a legitimidade é um conceito relativo. Não se pode dizer que esta decisão é legitima e a outra que se lhe contrapõe é ilegítima. Pode-se, no entanto, dizer que uma é dotada de maior grau de legitimidade do que outra, que teve menos aceitação. Daí a importância desses conceitos na análise dos índices de aceitação e confiabilidade, ou seja, da legitimidade dos governos e do desempenho dos agentes políticos.

            Em nosso País, o princípio da separação de poderes é aceito como justo e adequado. A mais ampla do País, a Constituição Federal, estabelece entre seus fundamentos a existência dos três Poderes da União: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Em termos sintéticos, há um ramo do poder político que elabora as leis, outro que as executa, e o terceiro que resolve as dúvidas e as disputas que surgem da aplicação da lei. Essa separação de poderes, que devem ser independentes, cooperativos e harmônicos, tem como objetivo evitar a excessiva concentração de poder em um único órgão ou uma única pessoa, o que colocaria o cidadão em situação de extrema vulnerabilidade, sujeito ao absolutismo e ao arbítrio do governante, situação esta oposta à democracia. A Constituição prevê, ainda, um conjunto de medidas que funciona como sistema de pesos e contrapesos, do direito anglo-saxônico, para evitar a hipertrofia de um dos ramos do governo, o que ameaça a legitimidade democrática. Em outras palavras, são mecanismos constitucionais voltados para a manutenção dos três poderes em um mesmo nível de hierarquia, importância e influência, de modo a evitar a assimetria de ascendência entre eles.

            No caso da democracia representativa, é o mandato das urnas que confere legitimidade aos legisladores e aos chefes do Executivo para exercerem suas funções. Eles têm uma procuração da população para exercer o poder em seu nome e o eleitor pode, ou não, por meio do voto, manter esse mandato. No caso do Poder Judiciário, a legitimidade é dada pela lei, pois seus membros não se submetem à escolha do povo. São escolhidos por seu conhecimento jurídico ou pela meritocracia dentro da carreira. A lei que justifica o exercício de suas funções foi elaborada por representantes diretos da população e, portanto, deve ser cumprida e estritamente obedecida. Caso contrário, os membros do Judiciário perdem sua legitimidade. Por conseguinte, o Poder Judiciário não pode extrapolar as fronteiras da lei que delimita suas funções. Assim como os integrantes do Executivo e do Legislativo devem ater-se a cumprir as tarefas para as quais foram eleitos de modo a não cometer usurpação, também os juízes, os promotores e os procuradores, ao saírem dos limites impostos pela lei para suas tarefas, estão usurpando poderes, estão praticando o arbítrio e, por isso, perdem sua legitimidade.

            Passo adiante aqui, Srª Presidente - e peço para que seja dada como lida esta parte do meu pronunciamento -, para ir direto ao final, em que digo:

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o que se tem verificado é que a credibilidade dos poderes e de seus integrantes tem-se mostrado inversamente proporcional à sua legitimidade. É notório que a classe política, especialmente o segmento representado pelos parlamentares, ou seja, o Poder Legislativo nos três níveis da República, é a de menor credibilidade e confiabilidade da população, em que pese ser a totalidade dos seus integrantes escolhida diretamente pela própria população por meio de eleição, que é o instituto da democracia que confere maior legitimidade aos agentes públicos.

            No centro, com maior grau de credibilidade, porém com índices apenas sofríveis, aparece o Poder Executivo e seus integrantes, também considerados agentes políticos, mas cuja escolha da população recai somente nos respectivos chefes, ou seja, o Presidente da República, os governadores e os prefeitos. A estes cabe a escolha dos demais membros diretos, os ministros e secretários. Aqui se tem a legalidade dessas escolhas, porém com menor grau de legitimidade, pois não são oriundas de mandatos concedidos pela população, e, sim, pelos chefes do respectivo Executivo.

            Por fim, tem-se o Poder Judiciário, hoje fortalecido e com melhores índices de aprovação e confiabilidade, mas cujos membros são escolhidos por nomeação ou pela carreira, sem qualquer participação da população. É o caso em que, na escolha, a legalidade prevalece sobre a legitimidade.

            E aqui, Srª Presidente, é de questionar: onde está a falha? Por que as autoridades escolhidas diretamente pela população são exatamente aquelas em quem a população menos acredita e menos confia? De outro lado, por que a maior crença e confiança da população, hoje, são depositadas exatamente nas autoridades para as quais não há qualquer participação dela na escolha? Em suma, trata-se de um ambiente político e de um evento institucional de natureza sociológica que merecem leituras e abordagens distintas de especialistas, de preferência com diversificados e novos métodos de análise e campos de estudo.

            Srª Presidente, terminando o pronunciamento, e mais uma vez solicitando que se dê como lida a parte que estou suprimindo, em função do tempo, gostaria de dizer que, por isso, Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, cumpre a nós, eleitos para o Parlamento, por meio da livre manifestação dos eleitores, recobrar nossos sentidos, retomar nossas obrigações e coibir de vez esses abusos e desequilíbrios institucionais para conseguir, com isso, reagir de pronto a essa grave e real ameaça à democracia brasileira.

            Era o que tinha a dizer, Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores.

            Muito obrigado.

 

SEGUE, NA ÍNTEGRA, CONCLUSÃO DO PRONUNCIAMENTO DO SR. SENADOR FERNANDO COLLOR.

            O SR. FERNANDO COLLOR (Bloco/PTB - AL. Sem apanhamento taquigráfico.) - Por conseguinte, o Poder Judiciário não pode extrapolar as fronteiras da lei que delimita suas funções. Assim como os integrantes do Executivo e do Legislativo devem ater-se a cumprir as tarefas para as quais foram eleitos de modo a não cometer usurpação, também os juizes, os promotores e os procuradores, ao saírem dos limites impostos pela lei para suas tarefas estão usurpando poderes, estão praticando o arbítrio e, por isso, perdem sua legitimidade.

            Sobre o tema, importante diferenciação entre Legislativo e Judiciário é ensinada por Noberto Bobbio em seu artigo "Governo dos homens e governo das leis". Diz ele: "No Estado de Direito, o juiz, quando emite uma sentença, que é ordem individual concreta, exerce o poder 'sub lege' (ou seja, sob a lei), mas não 'per leges' (ou seja, mediante as leis); ao contrário, o legislador supremo, o legislador constituinte, exerce o poder não 'sub lege', mas 'per leges' no momento mesmo em que emana uma constituição escrita." Trata-se, assim, de uma sutil diferenciação, mas que explica por completo o papel precípuo de cada poder: enquanto ao Judiciário cabe julgar de acordo com a lei, ao Legislativo cabe, em última instância, fazer a lei.

            Além disso, a usurpação de poderes fatalmente prejudica a crença da população na justeza do sistema democrático e na necessidade, em uma democracia, de se obedecer às leis. A falta de respeito às normas jurídicas pelos integrantes de cada ramo do governo prejudica, no final, a preservação da própria liberdade do cidadão.

            Contudo, Sr. Presidente, exatamente neste ponto, ao tratar da legitimidade e credibilidade dos poderes e de seus membros, surge uma contradição, um possível paradoxo que merece reflexão da sociedade e, principalmente, deste Parlamento. Apesar do embasamento e da coerência da teoria política e da sociologia sobre o tema, na prática, Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, o que se tem verificado é que a credibilidade dos poderes e de seus integrantes tem-se mostrado inversamente proporcional à sua legitimidade. É notório que a classe política, especialmente o segmento representado pelos parlamentares, ou seja, o Poder Legislativo nos três níveis da República, é a de menor credibilidade e confiabilidade da população, em que pese ser a totalidade dos seus integrantes escolhida diretamente pela própria população por meio de eleição, que é o instituto da democracia que confere maior legitimidade aos agentes públicos. No centro, com maior grau de credibilidade, porém com índices apenas sofríveis, aparece o Poder Executivo e seus integrantes, também considerados agentes políticos, mas cuja escolha da população recai somente nos respectivos chefes, ou seja, o presidente da República, os governadores e os prefeitos. A estes cabe a escolha dos demais membros diretos, os ministros e secretários. Aqui se tem a legalidade dessas escolhas, porém com menor grau de legitimidade, pois não são oriundas de mandatos concedidos pela população, e sim pelos chefes do respectivo Executivo. Por fim, tem-se o Poder Judiciário, hoje fortalecido e com melhores índices de aprovação e confiabilidade, mas cujos membros são escolhidos, seja por nomeação ou pela carreira, sem qualquer participação da população. É o caso em que, na escolha, a legalidade prevalece sobre a legitimidade. E aqui, Sr. Presidente, é de se questionar: onde está a falha? Por que as autoridades escolhidas diretamente pela população são exatamente aquelas em quem a própria população menos acredita, menos confia? De outro lado, por que a maior crença e confiança da população hoje são depositadas exatamente nas autoridades para as quais não há qualquer participação dela na escolha? Em suma, trata-se de um ambiente político e de um evento institucional de natureza sociológica que merecem leituras e abordagens distintas de especialistas, de preferência com diversificados e novos métodos de análise e campos de estudo. Deve-se, inclusive, considerar se há uma correlação entre essa constatação e o fato de ser o Poder Legislativo o mais transparente dos poderes, e o Poder Judiciário o mais fechado e recluso para a sociedade de um modo geral. E ainda, ao fim, se chegar à conclusão de que passou da hora de enfrentarmos de vez uma profunda, radical e definitiva reforma política e eleitoral.

            Não por outro motivo, o cientista político Augusto de Franco, inicia seu artigo "A crise institucional e a necessidade de uma nova formação política no Brasil", de 2006, com a seguinte afirmação:

A crise política brasileira é mais profunda do que se pensa. Temos, por um lado, a falência dos processos e dos mecanismos de representação e, por outro lado, a falência de certa análise sociológica que envelheceu. E não temos ainda o que colocar no lugar dos velhos mecanismos e da velha análise. 'Crise' é exatamente isso: o vácuo entre o que já morreu (mas continua de pé) e o que ainda não nasceu (mas já se prefigurou e ainda não se consumou). Falta, para tanto (para superar a crise) uma alternativa de análise, uma nova visão capaz de perceber e uma alternativa política, uma nova força capaz de preencher esse perigoso vazio institucional.

            Além disso, Sr. Presidente, cabe observar que este não é um evento que ocorre exclusivamente no Brasil. Estudos e pesquisas mostram, de uma forma geral, que na grande maioria dos países democráticos a classe política está entre as de menor confiabilidade e credibilidade da população, e, portanto, na prática, com desempenho de menor grau de legitimidade. Daí ser ainda mais relevante a necessidade de uma reflexão final capaz de, quem sabe, aperfeiçoar as instituições e os sistemas político e jurídico do país. Podemos até imaginar, se confirmada uma possível e tendente saturação mundial desse modelo de poderes concebido por Locke e Montesquieu há mais de 300 anos, a possibilidade de nos dedicar a reformular suas bases, e talvez até conceber e assumir novos paradigmas de estruturação e desenho de nossa organização política e institucional.

            A verdade, Sr. Presidente, é que vemos o crescimento de uma tendência autoritária de poderes e subpoderes da qual o Brasil custou a se livrar, e que ameaça voltar e se transformar em uma aguda e irreversível crise institucional, ou como já disse, no esfacelamento de nossas instituições democráticas. E como já afirmei, o próprio Congresso Nacional, em grande parte, é o culpado por esse estado de descrédito e de perda de funções, na medida em que abre mão de suas prerrogativas e competências constitucionais, ou seja, de suas atribuições parlamentares conferidas pela legitimidade das urnas. Tudo isso, seja causa ou consequência, o torna submisso aos demais poderes e instituições e, pior, o deixa rebaixado perante a opinião pública e a mídia.

            Era o que tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/11/2012 - Página 60734