Fala da Presidência durante a 239ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Realização da Sessão Solene com o objetivo de devolução dos titulos aos Senadores cassados no período da Ditatura Militar.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Fala da Presidência
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Realização da Sessão Solene com o objetivo de devolução dos titulos aos Senadores cassados no período da Ditatura Militar.
Publicação
Publicação no DSF de 21/12/2012 - Página 75551
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • EXECUÇÃO, SERVIÇO DE SOM, REFERENCIA, GRAVAÇÃO, DISCURSO, JUSCELINO KUBITSCHEK, EX SENADOR, ESTADO DE GOIAS (GO), MOTIVO, REALIZAÇÃO, SESSÃO SOLENE, DEVOLUÇÃO, TITULARIDADE, SENADOR, FATO, CASSAÇÃO, DIPLOMA, PERIODO, DITADURA.

            O SR. PRESIDENTE (José Sarney. Bloco/PMDB - AP. Com revisão do Presidente.) - Quero agradecer, em nome do Senado Federal, a presença dos familiares de nossos homenageados que aqui abrilhantam esta sessão e que, ao mesmo tempo, dão a ela um realce muito maior.

            Agradeço também aos amigos dos Senadores que homenageamos e que aqui se encontram. Entre eles, vejo algumas pessoas de Brasília muito ligadas ao Presidente Kubitschek.

            Fechamos esta Sessão Legislativa com chave de ouro: a realização desta sessão. Realizamos um ato histórico de extrema justiça, que, na sua simbologia, representa, sem dúvida, um resgate da memória nacional.

            Restauração dos Títulos de Senadores

            A anistia na história brasileira foi dada muitas vezes por graça dos reis, mas foi com a Independência que tomou forma constitucional, na Carta de 1824.

            No Maranhão, quando houve a rebelião contra a Companhia do Comércio do Maranhão e Grão Pará, Gomes Freire de Andrade, que para lá fora mandado para debelar a Revolta, em 1684, concede anistia aos revoltados, não sem antes mandar enforcar a Bequimão, herói precursor de nosso desejo de independência.

            Rui Barbosa esteve sempre envolvido com as anistias das revoltas contra a República. Ele defendia sempre a tese de que anistia era perdão, esquecimento, o generalis abolitio. Há um debate seu com Gomes de Castro em que ele fixa bem o sentido de que anistiar é esquecer, é perdão. Não é um gesto jurídico, mas uma manifestação política.

            Em relação a 1964, recordo-me que quem primeiro tratou da necessidade da anistia foi Marcos Freire, ainda no calor mais alto do movimento militar. Ele inteligentemente valeu-se do assunto, lembrando a Confederação do Equador, para falar da anistia como tradição nacional, da qual foi excluído Frei Caneca, enforcado. Século e meio depois, quando os ossos de Dom Pedro I passaram em Pernambuco (1972), houve um protesto dos intelectuais, e os boêmios fizeram-lhe uma visita no Palácio das Princesas, onde o caixão estava, considerando-o ossos non grata na cidade do Recife.

            Foi no Governo Figueiredo que o assunto amadureceu. Ele encaminhou um projeto que foi além do que a oposição pensava que pudesse ser feito. A anistia, como não podia deixar de ser, era ampla, atingindo os dois lados envolvidos na luta. Com essa interpretação, o Ministro Petrônio Portella, que foi quem negociou o texto, conseguiu a aprovação dos militares e, portanto, sua transformação em lei. Mas não era completa. Ela isentava “os condenados pela Justiça Militar, em razão de atos de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. No meu Governo, em novembro de 1985, a anistia completou-se, quando abolimos esse dispositivo. A partir de então, não haveria mais presos políticos no Brasil e concluía-se um ciclo histórico.

            Como consequência da anistia, houve compensações, como a reinserção dos cassados nas suas carreiras, reparando, na medida do possível, as perdas causadas pelas ausência de progressão funcional. Resta a resgatar, ainda que de maneira simbólica, os mandatos dos parlamentares que os tiveram cassados por força de atos emitidos pelo regime militar. É o que o Senado Federal está fazendo nesta Sessão Solene.

            Estamos entregando às famílias dos Senadores que foram punidos pelo regime militar diplomas devolvendo simbolicamente seus mandatos. Tratam-se dos Senadores Juscelino Kubitschek de Oliveira, cassado em 1964; Aarão Steinbruch, Arthur Virgílio do Carmo Ribeiro Filho, João Abraão Sobrinho, Marcelo Nunes de Alencar, Mário de Souza Martins e Pedro Ludovico Teixeira, cassados em 1969; e Wilson de Queiroz Campos, cassado em 1975. Todos tiveram também seus direitos políticos suspensos.

            A cassação de mandatos era, na Constituição de 1946, por seu artigo 48, competência de sua “Câmara”, isto é, Senado Federal ou Câmara dos Deputados. Foi o que defendi, como Deputado Federal, em discurso no dia 7 de abril de 1964: “A democracia se mostra com vitalidade bastante para reagir contra os que a ameaçam, usando para isso simplesmente os instrumentos jurídicos de que dispõe. Todos os recursos legais podem ser empregados, mas não concordo em que se caia no arbítrio e na violência a pretexto de defender o regime das liberdades. Aqui não se cassa mandato de ninguém fora dos termos previstos na Constituição. A nossa Carta Magna deve ser respeitada a qualquer preço.”

            Infelizmente não foi o que prevaleceu. Por ciclos, sucederam-se as suspensões de direitos políticos e as cassações de mandato, empobrecendo os quadros políticos brasileiros e penalizando cruelmente aos que a elas eram submetidos.

            Quero lembrar a todos, lembrando o primeiro deles: Juscelino Kubitschek. Juscelino foi o primeiro cassado; e, sem desdouro para os outros, é o primeiro por seu papel fundamental na História do Brasil. Ele soube de sua cassação, já esperada, pela Voz do Brasil, que anunciou o que era, na realidade, o afastamento da candidatura do ex-Presidente às eleições de 1965. O ato de 8 de junho de 1964 abria caminho para a “força dura”, chefiada pelo General Costa e Silva, promover a continuidade do regime militar.

            Juscelino profetizou: “Este ato não marcará o fim do arbítrio. O vendaval de insânias arrastará na sua violenta arrancada mesmo os meus mais rancorosos desafetos. Um por um, eles sentirão os efeitos da tirania que ajudaram a instalar no poder.” E assim aconteceu com Carlos Lacerda, que terminaria por ser cassado quatro anos mais tarde.

            Juscelino nasceu no dia 12 de setembro de 1902, há 110 anos, num sobrado da Rua Direita, em Diamantina. Em suas memórias Juscelino conta que a mais antiga lembrança que guardou foi de quando, aos três anos, viu da sacada a passagem do enterro de seu pai.

            A infância e juventude de Juscelino Kubitschek marcaram a extraordinária personalidade do Presidente, sua capacidade de encarar os desafios da vida, de ser um pioneiro, um desbravador de caminhos. Desde cedo, aprendeu a coragem, a conciliação, a tolerância, a ausência de ressentimentos, a bondade de ser.

            Afonso Arinos, que fora seu grande adversário, ao sucedê-lo na Academia Mineira de Letras, disse que a marca que Juscelino deixou foi de “humano, tolerante, amigo da liberdade”.

            Como Afonso Arinos, fui da UDN durante seu governo. O Presidente conhecia, como antigo congressista, todas as artes que se exercitavam no debate parlamentar. Fazíamos um esforço imenso para combatê-lo. A UDN não lhe dava tréguas e nós a acompanhávamos.

            Juscelino enfrentava com grande sabedoria o desenrolar da luta política. Não era homem de represálias, ao contrário, era de abrir portas e, generoso, acreditava mais no convencimento do que nos instrumentos de coação do Governo. A nossa grande dificuldade era defender a bancada dos encantos do Presidente, da admirável figura humana que era. A grande luta se concentrava na mudança da capital para Brasília, que passou a ser fundamental para seu Governo.

            Com o tempo, foi se consolidando a minha visão de que Juscelino teria sido deposto, se tivesse permanecido no Rio de Janeiro, pelo tamanho da oposição que o combatia, de natureza política e militar. Como Dom João VI fez quando acossado pelas tropas de Napoleão, Juscelino tomou o rumo do Planalto Central. E então, com a imagem da construção de Brasília, com o símbolo de Brasília, conseguiu fugir do fantasma da deposição que rondava o seu governo e das dificuldades maiores que o cercavam. Sua determinação era um gesto político que evitava que o Brasil sofresse uma ruptura do processo democrático.

            Todos os presidentes têm momentos de dificuldades. Ninguém mais do que ele os teve. Mas ninguém mais do que ele teve a competência de atravessá-los.

            A ideia da construção de uma capital no interior refletia a visão geográfica de José Bonifácio, o sonho secular do Patriarca, nas palavras de Lúcio Costa.

            Fui um dos poucos deputados da UDN a apoiar a construção de Brasília e o primeiro congressista a mudar-se para a nova capital. Meu gesto, de um deputado da oposição, da UDN, era também uma decisão pessoal de afirmar sua irreversibilidade, tão temerosa naqueles tempos.

            Hoje é fácil avaliar o quanto devem o Brasil e suas instituições ao gesto do Presidente Juscelino de fundar Brasília, onde as tensões se dissipam nos espaços do Planalto Central. Não tenho dúvida que Brasília foi e é um fator de estabilidade para a democracia brasileira.

            Seu esforço para concluir o seu mandato dentro das liberdades públicas foi memorável. Enfrentou as revoltas de Aragarças e Jacareacanga. Sua resposta foi dar anistia aos revoltosos. Sua preocupação maior era a meta democrática -- a mais importante de todas.

            Relembro aquele tempo, com a visão dos homens que faziam política, que, por mais dura que fosse, tinham o brilho do talento e o respeito à coisa pública, cientes dos valores morais e da força da austeridade e da dignidade.

            Sou uma das poucas testemunhas políticas daqueles tempos. Conservo de Juscelino lembranças de grande emoção, que correspondem à admiração pelo homem de Estado. Nunca fui de sua bancada de apoio durante o seu governo e com ele muitas vezes, no embate parlamentar, certamente fui injusto.

            Em 1965, fui eleito, em eleições diretas, Governador do Maranhão. Juscelino já se encontrava com seus direitos políticos cassados. De junho de 1964 a abril de 1967, vivera no exílio. Em 1968, em plena efervescência do regime militar, os estudantes de economia da Universidade do Maranhão convidaram-no para paraninfo da turma e a mim para patrono. Os militares o tinham como inimigo. Todos indagavam se eu teria coragem de recebê-lo. Eu o recebi, juntos participamos da festa de formatura e ofereci-lhe um jantar. Falei, chamei-o -- como devia -- de Presidente e ressaltei o quanto ele tinha trabalhado pelo Brasil. Era o depoimento de um adversário que o tinha combatido enquanto vice-líder da oposição durante o seu governo.

            Ele agradeceu e depois chamou-me e disse: “Governador Sarney, o senhor foi da oposição e me recebe assim. Deu-me uma das maiores alegrias de quem vive perseguido. Em Minas Gerais, minha terra, onde o governador é meu correligionário e amigo, pediram-me que, se o fosse visitar, entrasse furtivamente no Palácio da Liberdade para que os militares não me vissem. Nunca mais ali coloquei meus pés”. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Eu vi o homem sofrido, vítima de tantas injustiças.

            Em seguida continuou: “O senhor foi o amigo do meu ostracismo. Nada posso lhe dar senão a gratidão pelo seu gesto”. E quedou-se num longo silêncio.

            No dia seguinte, 13 de dezembro de l968, viajamos juntos no mesmo avião, um Caravelle da linha regular. Eu ficaria em Recife para uma reunião da Sudene, ele seguiria para o Rio de Janeiro. Neste dia, à noite, foi editado o AI-5. Ao chegar à Guanabara, Juscelino foi preso.

            Alguns dias depois as autoridades militares da área do Maranhão abriam um inquérito sobre a passagem do ex-Presidente pelo Estado, e eu, Governador, respondi a esse inquérito, fui ameaçado de cassação por tê-lo recebido e saudado com as palavras com que o fiz. É um dos orgulhos da minha vida este gesto de justiça.

            Sobre esse fato, dele recebi, alguns meses depois, uma carta extremamente generosa, falando de sua visita ao meu Estado. Dizia ele:

             “Aquele discurso pronunciado no jantar do Club, realizado em minha homenagem, deixou-me muito sensibilizado e, ao mesmo tempo, preocupado. Temi, sinceramente, pelas consequências de suas palavras generosas a meu respeito, porém, bravas e corajosas no tocante às afirmações que fazia.”

            “Voltei para o Sul convencido de que, na fileira das boas figuras do país, o governador do Maranhão se colocava, incontestavelmente, em primeiro lugar.”

            Sei que não merecia as palavras de extrema bondade, que dizem do homem bom e sensível, generoso e humano que era.

            Cinco dias antes do seu falecimento, tomei um avião para São Paulo. Nesse avião viajavam Juscelino e Ulysses Guimarães. O avião, pelo mau tempo em São Paulo, pousou em Campinas e os passageiros foram de ônibus. Ficamos no salão do aeroporto esperando a condução. Sentamos em um sofá. Ele relembrou junto a Ulysses os episódios de 68 no Maranhão. Seguiu para São Paulo num ¬automóvel com Ulysses Guimarães. Os demais passageiros, entre quais eu estava com minha mulher, fomos de ônibus.

            Em São Paulo, alguns dias depois -- era domingo --, Marly me chamou chorando. A televisão acabara de noticiar o acidente com o Presidente Juscelino na Via Dutra. Ouvi a notícia. Fiquei calado. Também chorei.

            Senhoras Senadoras, Senhores Senadores, famílias dos homenageados,

            O Senado faz, no dia de hoje, um ato de justiça. No esquecimento que significa a anistia, lembramos nossos colegas que aqui sentaram, aqui debateram, aqui legislaram, nossos iguais, Senadores da República Federativa do Brasil. Bem vindo, Presidente Juscelino Kubitschek, bem vindo, Senador Aarão Steinbruch, bem vindo, Senador Arthur Virgílio, bem vindo, Senador João Abraão, bem vindo, Senador Marcelo Alencar, bem vindo, Senador Mário Martins, bem vindo, Senador Pedro Ludovico, bem vindo Senador Wilson Campos. Vossas Excelências estão novamente entre nós. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/12/2012 - Página 75551